Economia

Os investimentos devem tornar-se indutores do consumo, combinando o uso intensivo de bens de capital com o uso intensivo de trabalho
 

O governo Dilma tem procurado acelerar o consumo geral através dos projetos de infraestrutura, estimulando o consumo familiar corrente, seja por meio dos programas de erradicação da miséria, seja pela redução das taxas de juros bancárias. Mas o sistema financeiro não gostou da baixa de juros e ignorou a ação dos bancos estatais. Também os empresários puxaram os freios dos investimentos diante do empenho do governo em estabelecer taxas de lucratividade civilizadas

O consumo familiar é apenas um dos setores do consumo econômico

O consumo familiar é apenas um dos setores do consumo econômico. Foto: Marcello Casal/ABr

Um dos problemas recorrentes nos debates atuais sobre os caminhos do governo Dilma consiste em que, às vezes, parecemos esquecer que vivemos num país cujo modo de produção é predominantemente capitalista. E que tal modo de produzir possui leis de funcionamento que condicionam todas as demais formas produtivas presentes na sociedade brasileira, a exemplo da economia familiar rural, dos empreendedores individuais, da economia solidária, das comunidades indígenas e, inclusive, das empresas públicas e estatais.

Tendo por base a taxa de exploração da força de trabalho assalariada, a produção capitalista tem de se realizar no mercado. Isto é, tem de ser consumida, em concorrência com outros capitalistas. Esse consumo, no entanto, não está restrito aos bens de consumo familiar corrente, como alimentos, roupas, aparelhos domésticos, cosméticos etc. Se o consumo se reduzisse a isso, a produção capitalista tenderia a encurtar os períodos de suas crises cíclicas de superprodução, uma das leis de funcionamento desse modo de produção. Por isso, os economistas que avaliam que o consumo na economia brasileira atingiu seu limite pelo excesso de endividamento das famílias estão errados, porque o consumo familiar é apenas um dos setores do consumo econômico.

A cadeia de consumo, da mesma maneira que a cadeia produtiva, compreende diferentes departamentos, ramos e setores. Para ser mais preciso, no Brasil atual, ao lado do setor de consumo familiar corrente, há outros fundamentais para permitir a reprodução ampliada do capital, reprodução que é outra das leis fundamentais desse modo de produção. As obras de infraestrutura energética, ferroviária, marítima, fluvial e rodoviária representam um setor de alto consumo atual da economia nacional. O mesmo se pode dizer das obras de infraestrutura urbana, principalmente se levarmos em conta os déficits brutais em saneamento básico, tratamento e distribuição de água, distribuição de energia elétrica, arborização, construção de áreas de lazer e no reequilíbrio entre construções e espaços públicos e entre vias de veículos e vias de pedestres e ciclistas.

Outros setores da economia que representam grandes condições de consumo são o agrícola e o industrial, que necessitam de equipamentos modernos para elevar sua competitividade no mercado interno e internacional. Sem uma reestruturação tecnológica séria, as indústrias sucateadas ou destruídas durante a década neoliberal continuarão mendigando protecionismo comercial eternamente, impondo preços elevados à economia brasileira, sem jamais conseguir disputar o próprio mercado doméstico com as empresas estrangeiras. E parte do agronegócio continuará tentando se expandir pelo aumento das áreas plantadas, e não da produtividade.

A agricultura familiar também representa um setor de consumo de equipamentos e tecnologias que lhe permitam elevar a produção de alimentos para o mercado doméstico, livrando-se da pecha de principal fator de pressão inflacionária. Se o governo for mais ágil no assentamento dos poucos milhões de sem-terra ainda existentes no Brasil, essa demanda de equipamentos e tecnologias poderá ser ainda mais intensa. E, se levarmos em conta as demandas de recuperação ambiental, assim como de instalação de novas indústrias que fechem as lacunas das cadeias produtivas brasileiras – que se assemelham a um queijo suíço cheio de espaços vazios –, teremos novos setores de consumo de bens de produção e poderemos ter uma ideia menos parcial do conceito de consumo na economia. Portanto, também estão errados aqueles que pensam que o consumo familiar é a base do crescimento da economia.

Ao reiniciar o processo de crescimento da economia brasileira, após mais de vinte anos de estagnação, em meio à qual ocorreu uma verdadeira destruição de parte considerável do parque produtivo brasileiro, o governo Lula concentrou sua atenção na redistribuição da renda e na elevação do consumo familiar corrente. As principais dificuldades desse processo consistiram na pequena oferta relativa de alimentos e no alto custo da produção industrial brasileira. De um lado, a agricultura familiar, responsável principal pela produção de alimentos, não conseguia expandir sua produção, não recebia o apoio merecido por manter a seguridade alimentar do país e estava constantemente ameaçada pela expansão e concentração do agronegócio. De outro, a economia brasileira era oligopolizada por grandes corporações, que praticavam preços de monopólio, enquanto milhões de micro, pequenas e médias empresas estavam tecnologicamente atrasadas ou atreladas aos oligopólios estrangeiros. Desse modo, qualquer aumento do consumo, ao invés de permitir preços mais baixos, pressionava a inflação e levava o Banco Central a vacilar quanto à aceleração da queda da taxa de juros. É verdade que o lançamento do PAC abriu novas áreas de consumo e contribuiu para o crescimento industrial e do emprego. Mas isso não chegou a permitir um desafogo consistente na pressão da demanda, mesmo porque não ocorreram mudanças significativas na situação da agricultura familiar e na oligopolização da economia brasileira.

O governo Dilma tem procurado acelerar o consumo geral através dos projetos de infraestrutura, ao mesmo tempo em que continuou estimulando o consumo familiar corrente, seja por meio dos programas de erradicação da miséria, seja pela redução das taxas de juros bancárias. No entanto, pelo menos dois novos obstáculos articulados elevaram-se diante desses esforços. O sistema financeiro, também oligopolizado por alguns grandes bancos nacionais e estrangeiros, não gostou da baixa de juros promovida pelo governo e simplesmente ignorou a ação dos bancos estatais. As taxas reais de juros se mantiveram entre 90% e 100% ao ano, em alguns casos chegando a cerca de 200% ao ano, como nos cartões de crédito. Diante disso, e também diante do empenho do governo em estabelecer taxas de rentabilidade ou de lucratividade civilizadas nas obras de infraestrutura, os empresários puxaram os freios dos investimentos.

Afinal, outra lei sacrossanta do modo de produção capitalista é que a taxa de lucro seja sempre superior à taxa de juros. Se esta for superior à de lucro, os capitalistas, em especial os brasileiros, que dificilmente colocam a mão no bolso para tirar dinheiro e investir em empreendimentos de risco, preferem investir no mercado financeiro e gerar dinheiro fictício. Nessas condições, criaram-se duas novas travas ao processo de crescimento. Aparentemente, uma sobre o consumo familiar corrente e outra sobre o consumo de bens e equipamentos necessários às obras de infraestrutura. Para destravar o consumo familiar corrente, o governo reduziu os impostos sobre automóveis, geladeiras, máquinas de lavar e outros aparelhos domésticos; para destravar o consumo de bens e equipamentos de infraestrutura, reduziu os impostos sobre os materiais de construção civil. Além disso, para quarenta setores econômicos, eliminou a cota patronal de 20% sobre a folha de pagamentos, substituindo-a por uma cota de 1% a 2% sobre o faturamento.

No entanto, tudo indica que essas desonerações são limitadas, têm efeito reduzido sobre os setores que utilizam o poder de monopólio para praticar preços administrados, como o automobilístico, e incidem negativamente sobre a capacidade de investimento do Estado, em particular em períodos de crescimento econômico medíocre e queda da receita. É evidente que, se o governo superar suas vacilações frente ao sistema financeiro e continuar reduzindo as taxas de juros, isso terá um resultado positivo imediato sobre o consumo familiar corrente e mesmo sobre alguns outros setores de consumo. Mesmo que não haja crescimento no salário nominal, o salário real aumentará, estimulando a produção e o crescimento em certa medida.

O problema consiste em que, dependendo do grau da queda dos juros, assim como da definição da taxa de câmbio, isso talvez não resolva a contradição entre as taxas de lucro inferiores às taxas de juros, contradição que está freando a decisão de grande parte da burguesia em correr o risco de investir. Delfim Netto tem chamado a atenção para o clima de incerteza existente no meio empresarial brasileiro, especialmente financeiro. Ele considera que tal clima possui um teor ideológico, acentuado pelos temores da crise econômica mundial, resultando na paralisia do investimento privado, mesmo diante de uma sensação de melhora de situação econômica.
Diante disso, defende a ação econômica do Estado brasileiro com vistas a reanimar o espírito animal do empresariado através da queda dos juros, das desonerações e dos investimentos públicos.

Outros ideólogos da burguesia têm proclamado que o problema atual da economia brasileira está no investimento. Em termos mais sumários, tanto Delfim Netto quanto eles estão simplesmente avisando que o empresariado privado somente investirá se a taxa de lucro for superior à taxa de juros e se não correrem perigo com variações cambiais bruscas e taxas de câmbio valorizadas. E Delfim, mais sagaz que os demais, fez questão de ressaltar que seria um erro fazer com que o investimento substituísse totalmente o consumo. Mudando sua antiga máxima de primeiro crescer o bolo para depois dividi-lo, defende os investimentos públicos na área social, para melhorar os níveis de igualdade, passo a passo com a reativação econômica.

Essa é uma discussão de mais de 150 anos que sempre retorna enviesada. Investimento e consumo são aspectos que não podem ser dissociados, em especial se os investimentos forem direcionados para a produção de bens que atendam tanto ao uso familiar corrente quanto ao uso industrial e agrícola. No entanto, não se pode esquecer que no modo de produção capitalista o consumo é função dos investimentos na produção, e não o contrário. A produção industrial se impõe ao consumo, criando produtos, demandas e modismos, gerando uma contradição flagrante entre a elevação da produtividade, que aumenta a capacidade produtiva, e a diminuição da força de trabalho necessária, que reduz a capacidade de consumo das camadas assalariadas.

Com a Primeira Guerra Mundial o capital descobriu fórmulas de resolver, em parte, essa contradição, por meio de gastos do Estado, inclusive para a fabricação de armamentos e para a guerra, e da especulação financeira. No entanto, como a crise dos anos 1930 mostrou, tais fórmulas para solucionar os problemas do consumo conduziam a crises cíclicas ainda mais profundas. Depois disso, Keynes pareceu haver encontrado novas fórmulas. As crises dos anos 1980, porém, demonstraram que estas não eram tão eficazes quanto pareciam, abrindo a chance para as fórmulas neoliberais de subconsumo, que começaram a sucumbir nos anos 1998-1999.

No caso do Brasil, parece predominar em alguns círculos econômicos a ideia de que nosso país obteve taxas de crescimento relativamente altas, apenas puxadas pelo consumo, com taxas de investimento relativamente baixas. Mas o exame atencioso da experiência brasileira dos anos 1950 e 1960 indica que a combinação de alto crescimento com baixo investimento só parece verdadeira se for considerada a média dos dez anos. Na prática, o crescimento dessas décadas foi muito baixo durante os primeiros seis a sete anos e alto somente nos três a quatro anos finais, puxado por altos investimentos estrangeiros e estatais. Estes produziram ainda o crescimento dos dois primeiros anos da década de 1970. Em seguida, com a crise do petróleo,  os investimentos e o crescimento entraram em declínio. Nos anos 1980, os investimentos foram, em grande parte, direcionados para setores não produtivos, gerando baixas taxas de crescimento. E, nos anos 1990 e 2000, as baixas taxas de investimento corresponderam a baixas taxas de crescimento.

Nessas condições, uma análise mais adequada da experiência brasileira, em comparação com a experiência internacional, pode demonstrar que o crescimento por soluço da economia brasileira estaria relacionado a uma combinação inadequada de investimentos produtivos e improdutivos com a expansão também inadequada dos diversos setores do consumo. Mesmo a expansão entre 2004 e 2008, que continuou sendo empurrada principalmente pelo consumo das famílias, apresentou dificuldades para escapar da síndrome do soluço, embora tenha demonstrado uma resistência razoável à onda de choque da crise dos Estados Unidos. Os anos posteriores a 2008 mostraram que, para manter um crescimento sustentado com base no consumo familiar, em especial num período de agravamento de crise nos países capitalistas avançados, seria necessário fazer com que a massa salarial aumentasse substancialmente. Ou que o governo se dispusesse a sangrar continuamente para baixar os preços e que a indústria instalada e as importações mantivessem o país livre da inflação de demanda. O que, aliás, é o que o governo vem fazendo, chegando próximo dos limites intransponíveis.

Nessas condições, a sugestão de que o Brasil invista entre 25% e 30% de seu PIB para elevar sua capacidade e diversidade produtiva, criar maior número de empregos e aumentar a capacidade de consumo, tanto familiar quanto industrial e agrícola, nada tem de antagônica com a importância que o consumo interno deve ter no desenvolvimento do país, desde que se admita que isso terá de ser realizado com uma atração de capitais externos, planejada e sob condições, considerando as limitações de investimentos estatais. Se houver uma adequada combinação entre investimentos intensivos em capital e intensivos em trabalho, aproximando o país da possibilidade de pleno emprego, certamente haverá uma ampliação do consumo familiar e dos demais setores de consumo. É lógico que se os investimentos forem direcionados para a produção armamentista, mesmo tendo como parâmetro a destruição das armas pela obsolescência programada, terão pouco ou nenhum efeito sobre o aumento do consumo corrente e sobre o consumo de vários outros setores industriais e agrícolas, como ocorre hoje nos Estados Unidos.

Por outro lado, se o consumo ficar restrito ao consumo familiar corrente, apenas alguns poucos setores industriais e agrícolas crescerão e a economia do país continuará dependente de insumos tecnológicos e bens de capital externos. Além disso, nas condições brasileiras, é preciso ter em conta que o chamado pleno emprego, ou apagão de mão de obra, é uma ficção resultante das metodologias utilizadas para medir a população ativa realmente empregada. Estudos recentes mostram que há mais de 8 milhões de jovens que nunca procuraram trabalho por não apresentar as condições mínimas para acessar empregos. Se considerarmos o crescimento populacional dos últimos trinta anos e as taxas medíocres de crescimento desse período, talvez haja um número muito maior de pessoas nas mesmas condições daqueles jovens. Em outras palavras, podemos ter um enorme exército industrial de reserva ignorado pelas estatísticas e praticamente excluído do atual mercado de trabalho.

Portanto, quando falamos em investimento e consumo, precisamos falar em investimentos que industrializem o país, criando mais empregos, numa época em que a principal tendência industrial é de uso intensivo de bens de capital, como tecnologias e inovações poupadoras de mão de obra. Portanto, se quisermos que o consumo familiar corrente aumente, como decorrência do aumento real da massa salarial, isso só será possível se invertermos a relação entre investimentos e consumo. Os investimentos devem tornar-se indutores do consumo, combinando o uso intensivo de bens de capital com o uso intensivo de trabalho. Combinação que só pode ser realizada através de uma ação consciente do Estado, direcionando os investimentos para adensar as cadeias produtivas estratégicas, utilizando as empresas estatais como instrumentos de indução industrial e agrícola, aproveitando capitais nacionais e estrangeiros para desenvolver os meios de produção e investindo pesadamente na formação profissional da força de trabalho, em especial daquela que se encontra sem acesso ao mercado.

Mas, por incrível que pareça, todo esse arcabouço estrutural, para ser colocado em pé, neste momento está dependendo da solução das contradições entre a taxa de lucro e a taxa de juros e de uma taxa de câmbio cuja manutenção seja confiável.

Wladimir Pomar é membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate