Internacional

Curuguaty, 15 de junho de 2012: o massacre que foi manipulado para justificar o julgamento político no Paraguai

A negação histórica da existência de um povo palestino, necessária para afirmar o status da terra como res nullius, como uma terra sem povo destinada ao povo a que fora prometida, mantém-se constante até hoje e é acompanhada da vilificação daqueles que estão “do outro lado”, daqueles menos civilizados, dos radicais, dos amantes da morte

e policiais resultou na maior matança desde a ditadura

Enfretamento entre camponeses e policiais resultou na maior matança desde a ditadura. Foto: Stringer/Reuters

“O que aconteceu em Curuguaty?”, clamam todas as forças políticas e sociais que se opõem ao golpe de Estado parlamentar no qual o presidente Fernando Lugo foi destituído em 22 de junho de 2012. Uma semana antes, um massacre de camponeses e policiais ocorrido nesse município foi manipulado para justificar o julgamento político. Passados mais de seis meses, nenhuma explicação oficial coerente foi dada sobre o episódio, mas três investigações independentes (disponíveis em espanhol no site http://quepasoencuruguaty.org) 1 reforçam suspeitas sobre uma possível conspiração e mostram uma evidente manipulação dos fatos.

Não obstante, no final de dezembro passado, a Fiscalía (equivalente paraguaio ao Ministério Público brasileiro) formalizou a acusação contra catorze camponeses como responsáveis pelo massacre, enquanto mantém implicados cerca de quarenta lavradores que permanecem foragidos. Na manhã de 15 de junho de 2012, a mando da Fiscalía, um contingente de mais de trezentos policiais iniciou operação em um acampamento de sem-terra, ao redor do qual estavam sessenta camponeses. Conhecido como Marina Kue (“foi da Marinha”, em guarani), de lá para cá o lugar passou a ser chamado pela imprensa e a Fiscalía de Campos Morombi. O terreno fica no município de Curuguaty, departamento de Canendiyu, perto da fronteira com o estado de Mato Grosso do Sul.

Minutos após o início da operação, ocorreu um “enfrentamento” que resultou na morte de onze camponeses e seis policiais e em um número indefinido de feridos. Foi a maior matança já registrada em qualquer tipo de conflito desde o término da ditadura de Stroessner, em 1989.

Imediatamente, o episódio teve um resultado político duplo. Foi utilizado pelos setores conservadores anti-Lugo para acusá-lo de mau desempenho de suas funções, e com isso exigir sua destituição, já que seu suposto apoio aos sem-terra os teria incitado a enfrentar violentamente a polícia. Ao mesmo tempo, paralisou os setores de esquerda que apoiavam Lugo, uma vez que camponeses sem-terra haviam sido mortos por policiais em seu governo e o Ministério do Interior estava sob o comando do senador Carlos Filizzola, conhecido dirigente do progressismo paraguaio.

As duas principais organizações de grandes produtores de soja e pecuaristas, a Unión de Gremios de la Producción (UGP) e a Asociación Rural del Paraguay (ARP), pressionaram rapidamente os partidos políticos tradicionais para que houvesse um julgamento político visando à destituição do presidente.

O presidente Lugo reage com a nomeação de novo ministro do Interior, Rubén Candia Amarilla, ex-fiscal-geral da República, repressor ligado aos colorados, que supostamente deveria acalmar as entidades empresariais. Tal designação é prontamente utilizada pelo Partido Liberal Radical Auténtico (PLRA), que integra o governo, para romper com Lugo. Seu presidente, o senador Blas Llano, concorda com o pedido de julgamento político. Por sua vez, o então principal pré-candidato presidencial colorado, o empresário Horacio Cartes, posteriormente confirmado na convenção interna do partido, impulsiona igual medida. O resultado foi o regresso de seus tradicionais adversários ao Palácio dos López, do qual estavam alijados desde 1940. Finalmente, os liberais chegavam à Presidência de mãos dadas com os colorados.

Em agosto de 2008, a poucos dias de assumir como vice de Lugo, Federico Franco declarou que, caso necessário, estava disposto a assumir a Presidência. O ambiente o estimulava, pois durante os quase quatro anos de gestão Lugo foi acossado por nada menos que 23 pedidos e ameaças de julgamento político, que não se efetivaram sempre por falta de alguns votos. Curuguaty reuniu os votos necessários e forjou um raro consenso dos setores de direita e conservadores.

Um pouco antes houve um princípio de crise em outro distrito, Ñacunday, no vizinho departamento de Alto Paraná, onde milhares de camponeses reivindicavam terras ocupadas por Tranquilo Favero, o rei da soja “brasiguaio”. Nesse caso, o governo Lugo detectou precocemente a presença de matadores de aluguel com armas de grosso calibre, pessoas alheias ao conflito introduzidas por gente vinculada ao crime organizado, e interveio para que os próprios dirigentes camponeses resolvessem a situação. A tentativa de promover um massacre fracassou nesse lugar, mas o governo foi surpreendido em outro.

É preciso salientar que o que quase ocorreu em Ñacunday e se efetivou em Curuguaty não era um padrão durante o governo Lugo. Filizzola relata que sob sua gestão foram realizadas mais de cem desocupações de áreas tomadas pelos sem-terra e em nenhum caso anterior a 15 de junho a situação descambou para a violência grave.

Esse conflito teve contornos muito específicos e suspeitos. A empresa que reivindica as terras em disputa pertence a Blas Riquelme, empresário que enriqueceu com os favores da ditadura de Stroessner.

Todavia, a Campos Morombi não tem título de propriedade da área em conflito, doada ao Estado paraguaio décadas atrás e pertencente à Armada nacional, que a ocupou até 2004 – daí sua denominação Marina Kue.

Em consequência, Riquelme não poderia exigir a expulsão dos camponeses de uma terra que não era sua. Ele, porém, contava com apoios políticos. No início de 2012, o deputado colorado Oscar Tuma, um dos que posteriormente impulsionaram o julgamento político, apresentou uma moção no Congresso que exigia a expulsão dos camponeses, em benefício da Campos Morombi. Juízes e fiscais da região que também agiam em prol de Riquelme lideraram a força policial com uma ordem de averiguação que se transformaria em ordem de despejo.

Todos os relatos dos camponeses que estiveram no conflito reforçam que eles solicitaram às autoridades a apresentação do título de propriedade de Riquelme. O documento jamais lhes foi mostrado, pois simplesmente não existe.

Os policiais mortos foram atingidos por tiros de armas de grosso calibre, que os camponeses não portavam. Há indícios de torturas e execuções sumárias de camponeses, mas o Estado se nega a analisar. Por parte da Fiscalía, o poder judicial e a polícia não cumpriram as normas de praxe para isolar a cena do crime e preservar as provas, dificultando assim o trabalho dos peritos.

Por fim, o fiscal encarregado do caso culpabilizou catorze camponeses, mesmo sem provas de que tenham participado dos crimes em questão. Manipulado para derrubar o presidente Lugo, o massacre termina em um nevoeiro judicial. O único ponto claro é a determinação oficial de condená-los para satisfazer os ritos processuais, sem jamais esclarecer o que de fato ocorreu.

Com a pergunta insistente – “O que aconteceu em Curuguaty?” –, quer se saber também quem foi o responsável pela conspiração e pela execução do massacre que serviu para justificar o golpe de Estado parlamentar que derrubou o presidente Lugo.

Gustavo Codas é jornalista, economista e mestre em Relações Internacionais