Economia

Dizer-se desenvolvimentista deixou de ser pejorativo. Parece que vivemos um importante momento de transição. Como assegurar que não se trata de mera onda?

A negação histórica da existência de um povo palestino, necessária para afirmar o status da terra como res nullius, como uma terra sem povo destinada ao povo a que fora prometida, mantém-se constante até hoje e é acompanhada da vilificação daqueles que estão “do outro lado”, daqueles menos civilizados, dos radicais, dos amantes da morte

A palavra desenvolvimento voltou a ser proferida no Brasil. E mais: dizer-se desenvolvimentista deixou de soar pejorativo. Tudo indica que vivemos um importante momento de transição.

Como assegurar que não se trata de mera onda? Pode-se falar de um “novo desenvolvimentismo”, ainda em gestação? E o que este teria de novo? Enfim, qual o sentido do desenvolvimentismo no Brasil de hoje e, ainda por cima, no atual contexto global?

Desenvolvimentismo ontem

Para esboçar algumas hipóteses às perguntas acima lançadas é preciso, antes, compreender o que foi o “bom e velho desenvolvimentismo”. Essa afirmação não remete a um passado nostálgico, mas a um conjunto de propostas concretas – muitas das quais jamais vieram à luz – para o desenvolvimento nacional, embasadas na interpretação da realidade brasileira e ancoradas num conjunto de forças sociais. Esqueçam a cantilena neoliberal: o desenvolvimentismo não foi inflacionista, autoritário, nem buscou isolar o Brasil do mundo.

Seus expoentes viam o desenvolvimento como um processo de criação de novos alicerces para a Nação. Esta era a categoria central. A economia entrava na equação, pois se tratava de integrar o território, dotando-o de infraestrutura, emprego e tecnologia. Uma sociedade democrática e moderna daria novo sentido à “civilização brasileira”, como então se dizia.

Herdeiros dos positivistas, mas com a mente aberta para as várias correntes modernistas, os desenvolvimentistas faziam parte de uma contraelite dirigente aninhada no setor público ao longo dos anos 1950 e início dos 1960. Apesar de terem de conviver com as classes dominantes velhas e novas, nossos construtores de instituições revolucionaram a forma de pensar e praticar o desenvolvimento.

O novo termo deslocava a noção de progresso, que sugeria um raciocínio etapista. Admitiam-se, agora, várias vias para o desenvolvimento. Mas jamais seríamos iguais a “eles”, os desenvolvidos. Nesse sentido, a “teoria do subdesenvolvimento” funcionava como uma ferramenta metodológica essencial para a compreensão de nossa formação, da situação concreta daquele presente e das possibilidades futuras.

O desenvolvimento exigia, antes de tudo, autoestima nacional, fermento para qualquer ideologia transformadora. Mas não apenas. Partia de uma interpretação autônoma sobre os processos econômicos e sociais repletos de historicidade e de uma concepção acerca do papel do Brasil no mundo e de sua condição periférica. Encontrava respaldo numa nova liderança – o Estado, pilotado pela contraelite de servidores públicos – capaz de acionar políticas e reformas, canalizando os anseios do desenvolvimento nacional, apesar da sua relação por vezes contraditória com os atores sociais e econômicos.

Se não compreendermos essas várias dimensões, corremos o risco de cair num anacronismo com resultados funestos para o período atual, a ponto de acharmos que “somos todos desenvolvimentistas agora”.

Os desenvolvimentistas

Romulo Almeida - Baiano, foi chefe da Assessoria Econômica de Vargas. Com sua equipe, cria a Petrobras, uma nova política para o setor energético, a Capes e o Banco do Nordeste do Brasil. Encarrega-se da elaboração de projetos que se ocupam da habitação popular, das cooperativas agrícolas e do desenvolvimento da Amazônia. É o “praxista” construtor de instituições. Depois volta a sua terra natal, para comandar uma experiência inovadora de planejamento regional. Participa da iniciativa frustrada de integração latino-americana, como primeiro secretário executivo da Alalc.

Ignácio Rangel -  Maranhense, funcionário de carreira do BNDES, filiado ao PCB e membro ativo do Iseb. Foi parceiro de Romulo na assessoria de Vargas e interlocutor de Celso Furtado no debate intelectual, tendo optado pelos bastidores da vida pública. Propôs diagnósticos originais sobre o problema da inflação, do crédito e da tecnologia. As desigualdades sociais e regionais não aparecem como sintomas do atraso ou de uma modernização limitada, e sim como resultantes de um capitalismo dinâmico, mas sem controle estatal efetivo e infenso a reformas estruturais.

Celso Furtado - Paraibano, com doutorado em Economia pela Sorbonne, herda a interpretação cepalina de Raúl Prebisch e a transforma na teoria do subdesenvolvimento. Cria e gere a Sudene; depois assume o Ministério do Planejamento num momento de radicalização política do país. Fornece um dos grandes afrescos para a interpretação do Brasil, com foco na dimensão econômica, mas integrada a uma proposta de afirmação nacional. Exilado, reconstrói seu percurso analítico, enriquecendo-o. Na volta ao país, sonha em prosseguir a construção interrompida.

Nordestinos, servidores públicos e socializados na capital federal a partir dos anos 1940,  muitas das instituições por eles criadas – BNDES, Capes, Petrobras, BNB, Eletrobrás, Sudene – estão aí para quem quiser ver, algumas desvirtuadas, outras returbinadas. Não atuavam isolados, antes somavam forças com outros desenvolvimentistas não economistas, como Josué de Castro, Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro e Helio Jaguaribe. A lista é extensa, com ramificações por vários setores da burocracia e da sociedade civil.

Pensaram o país para além da sua região – buscando integrar social e economicamente os vários territórios nacionais –, ao mesmo tempo em que procuraram alterar as relações de dependência com as potências dominantes.

A partir do Estado, tentaram ativar e direcionar as forças latentes da sociedade em ebulição. Jamais se entregaram, apesar de terem sido derrotados. Seus legados seguem atuais. As sementes que deixaram podem assumir novas configurações, não antevistas por seus modelos e utopias.

Leia na próxima edição “Novo desenvolvimentismo?”.

Alexandre de Freitas Barbosa é professor de História Econômica e Economia Brasileira/Internacional do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP)