Economia

Pode a tríade ideologia nacional transformadora, reflexão autônoma e mobilização das forças sociais ser recuperada em bases efetivamente democráticas?

Não é uma tarefa fácil recuperar a tradição desenvolvimentista. O termo adquire vários usos, geralmente ao sabor das conveniências políticas. Paralelamente, o capitalismo brasileiro avança, utilizando-se de seus escombros. Pode o desenvolvimentismo dar o troco e reger o capitalismo, enfrentando suas desigualdades intrínsecas, com regulação pública, participação social e ampliação dos espaços democráticos?

O desenvolvimentismo na longa duração

Parece-nos uma simplificação, com significados políticos nefastos, tomar como um bloco o período que vai de 1930 a 1980 e rotulá-lo de “desenvolvimentista”. É certo que a Revolução de 1930 mostrou-se fundamental para a ruptura com o molde econômico e social anterior. Já o Estado Novo permitiu que uma nova postura do Estado emergisse, mas a sua forma autoritária não contribuiu para que a sociedade se fizesse partícipe desse esforço de autotransformação.

O “bom e velho desenvolvimentismo” originou-se de um consenso estruturado por um grupo de intelectuais orgânicos do aparelho estatal – em sintonia com parcelas expressivas da sociedade – que prevaleceu durante o período 1946-1964. O mote era o desenvolvimento nacional autônomo. Dizer que isso era ingenuidade e que o capitalismo brasileiro teria de se internacionalizar e acentuar sua dinâmica concentradora, como se estivesse na estrutura do seu DNA, significa aceitar que os segmentos conservadores (tradicionais e modernos) teriam de vencer, como se a história estivesse escrita de antemão.

Após o golpe de 1964, o Brasil ingressa na era pós-desenvolvimentista. O milagre econômico e a síndrome do Brasil potência tratariam de fazer crescer o mercado interno, com forte internacionalização e ativismo estatal. Ou seja, o regime militar navegou no rastro de um processo que vinha de longe, fez algumas reformas para alavancar a acumulação de capital e tirou o povo da história.

As últimas duas décadas do século 20 foram não desenvolvimentistas até a medula. Nos anos 1980, prevaleceu o conjunturalismo na economia. Mas floresceram as mobilizações sociais e, no seu rastro, a Constituição de 1988 foi parida. Essa pauta que vinha de baixo, entretanto, não desembocou numa nova perspectiva desenvolvimentista. Já nos 1990, vivemos a febre da abertura sem critérios. Era o tempo de se desfazer dos resquícios do “desenvolvimentismo” para aderir aos ventos aparentemente benignos da “globalização”.

Os antidesenvolvimentistas aproveitaram-se da crise da dívida externa para enfraquecer o mercado interno e o potencial de negociação internacional do país. O Plano Real –  inicialmente um plano de estabilização monetária bem formulado – continha reformas de base pelo avesso. Não tivessem eles sido flagrados pela crise de 1999, o país não teria voltado a pronunciar a palavra desenvolvimento nas décadas seguintes. O tão desprezado mercado interno voltou afoito como um trem desgovernado. Ou ele avança mais uma vez concentrando renda e aprofundando desequilíbrios estruturais, ou logramos inaugurar uma nova perspectiva desenvolvimentista.

Desenvolvimentismo hoje

Ser desenvolvimentista significa pensar a Nação com os olhos no horizonte, além da economia, e os pés fincados na política e na sociedade. Significa transformar as estruturas internas, ao mesmo tempo em que se trata de aproveitar as potencialidades da economia-mundo capitalista em processo de reconfiguração profunda.

Ora, sem uma reflexão sobre a nossa especificidade histórica e o nosso atual enquadramento na nova divisão internacional do trabalho, como propor novas políticas econômicas, sociais, regionais e tecnológicas voltadas para o desenvolvimento? Pode a tríade ideologia nacional transformadora, reflexão autônoma e mobilização das forças sociais ser recuperada em bases efetivamente democráticas?

Para tanto, uma análise crítica do governo Lula se faz necessária, sem olvidar que ele criou as condições para se enxergar a linha do horizonte. As desigualdades sociais e regionais continuaram gritantes ou mudaram de forma, o que não invalida a constatação de que as condições de vida melhoraram na base da pirâmide. O sistema produtivo se dinamizou, mas continua refém das pressões competitivas externas ou apenas acompanha, de maneira defasada, o movimento da demanda. O Estado recuperou sua capacidade de formulação, mas se ressente da excessiva fragmentação.

Por outro lado, não há como negar o mercado interno robustecido, as instituições públicas eficientes em vários setores, a sociedade civil ativa, a existência de uma agricultura de grande porte capitalizada e competitiva e também de uma pequena produção familiar com enorme potencial para expansão, a indústria ainda minimamente integrada e diversificada, as tecnologias avançadas em várias frentes energéticas e a política externa que logrou recuperar sua velha tradição, apostando em sua identidade Sul, sem se isolar do Norte.

Essas várias potencialidades – que não deixam de revelar, quando tomadas em conjunto, suas facetas contraditórias – precisam estar conectadas em torno de um projeto nacional, enraizado no território, de modo a atender às diversas demandas sociais das áreas rurais e urbanas.

O problema não é apenas econômico. Além do baixo crescimento dos últimos dois anos, uma redefinição dos alicerces da política econômica, ora em curso, pode quando muito – se acompanhada de novas políticas e instituições desenvolvimentistas – criar as condições para a emergência de um novo padrão de desenvolvimento.

Isso porque o dilema essencial reside no campo da ideologia. Precisamos abandonar os figurinos importados e estimular a imaginação criadora nas várias esferas da vida coletiva, permitindo uma nova interação entre o mundo da cultura e da sociedade e o da política. A batalha decisiva se dá na estrutura de poder – que se reproduz por meio dos vários monopólios que oferecem para alguns poucos o acesso privilegiado à política, à riqueza e à informação. É o que falta para ultrapassarmos o limiar que nos separa do pré-desenvolvimentismo.

Alexandre de Freitas Barbosa é professor de História Econômica e Economia Brasileira/Internacional do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP)