Política

Uma vitória consagradora, uma derrota para o projeto neoliberal e, inegavelmente, uma derrota rotunda para a mídia hegemônica

A simulação da mídia de neutralidade tenta passar a ideia de que todos os candidatos são iguais, mas são desiguais quando se trata da capacidade de tranquilizar o mercado. Tentava criar um clima de medo na população e mostrar que não era bom que Lula ganhasse a eleição, e que a vitória de José Serra seria muito melhor

Em 1º de janeiro de 2003: Lula toma posse

Para além do tambor da velha mídia, principiava o Brasil da Silva

A operação política das eleições presidenciais de 2002 teve ingredientes brutais. Quando despontou a estrela de Roseana Sarney em evidente ascensão, parecia que a direita havia encontrado o nome ideal. A chamada Operação Lunus, de março de daquele ano, com a exibição de uma montanha de dinheiro, mais de R$ 1 milhão, jogou por terra qualquer pretensão do clã maranhense. Nela ficaram mais que evidentes as digitais de FHC e Serra, e Sarney foi muito duro na crítica ao método adotado. Era necessário tirá-la do caminho de modo a facilitar a vida da candidatura Serra. Quem quiser consulte a mídia da época para perceber como as edições carregaram nas tintas, seguindo um roteiro que serviu como uma luva ao candidato oficial.

Sarney chegou a falar na necessidade de observadores internacionais fiscalizarem as eleições brasileiras face à truculência utilizada contra sua filha, e aqui nem cabe a análise do mérito. Como diz Leandro Fortes, em texto publicado no site da revista CartaCapital, em 17 de agosto de 2010, tratando especificamente da Operação Lunus, Serra havia montado uma verdadeira máquina de moer inimigos, comandada pelo delegado da Polícia Federal Marcelo Itagiba.

Do ponto de vista da Polícia Federal, foi só desgaste: o STF arquivou o processo contra Roseana Sarney por falta de provas. O objetivo político, no entanto, foi alcançado e com a sincera e aplicada ajuda da mídia hegemônica, que nunca negou sua colaboração a Serra. A Polícia Federal, sem que a mídia demonstrasse isso, salvo sempre as exceções, a mais notável delas, então, CartaCapital, era usada escandalosamente a favor dos interesses do governo e, nas eleições de 2002, da candidatura Serra.

A segunda etapa seria tirar Ciro Gomes do caminho, impedir que continuasse a crescer. Como diz Bob Fernandes, tratava-se de liquidar Ciro Gomes e mirar em Lula, este o alvo principal nessa terceira etapa, a mais importante. Eliminar o inimigo interno, Roseana, depois o secundário, Ciro, e colocar as tropas em formação para o ataque ao inimigo principal, Lula. A mídia agia assim, sem meios-termos e sem esconder-se, até porque impossível. A simulação de neutralidade ia para o ralo.

Levantamento feito pela assessoria de Lula sobre exposição nos jornais O Estado de S. Paulo, Folha de S.Paulo, Jornal do Brasil e O Globo entre 31 de agosto e 6 de setembro aponta 106 notícias negativas para Ciro Gomes, noventa para Lula e, anotem, 43 para Serra. Positivas para Ciro Gomes, 42. Para Serra, 71. Houve uma nítida atuação da mídia destinada à desconstrução da candidatura de Ciro Gomes. Sobre a etapa de liquidação de Ciro Gomes, Jânio de Freitas, na Folha de S.Paulo (3/9/2002), afirma que “há uma diferença adicional, esta por parte da mídia: é a diferença de tratamento entre a tolerância silenciosa e o rigor”.

Até mesmo o então ombudsman da Folha de S.Paulo, Bernardo Ajzenberg (8/9/2002), afirma que aquela semana podia ser considerada de comemoração para serristas, e, quanto a lulistas e ciristas, inegavelmente, tinham sido “maltratados” pela mídia. Mal terminada a operação Ciro Gomes, ou nem terminada, preparava-se, como diz Bob Fernandes, aquele que será o maior bombardeio de que já se teve notícia num ano eleitoral. Bombardeio contra o candidato Lula.

Por isso, compartilhando dessa análise, creio que se equivocam os que, nem que de leve, tenham admitido a possibilidade de as eleições de 2002 terem sido cobertas de maneira equilibrada por parte da mídia. Esta veio com toda a sua artilharia contra Lula, mais uma vez, e com toda ferocidade, até porque havia a real possibilidade de vitória, e esse era um risco que o partido político midiático não queria correr.

Era o momento, aquele início de agosto, em que a mídia fazia de tudo para salvar Serra, como registra Mino Carta. Não era uma operação fácil, mas ela não regatearia esforços para tanto. Para a mídia hegemônica não parecia que o Brasil estava quebrado, e ela, ao contrário, celebra, comemora a ajuda de US$ 30 bilhões do FMI na segunda quinzena de agosto, como se isso fosse positivo, como se não fosse uma evidência gritante da quebradeira do país, como, aliás, ocorrera no início de 1999, quando FHC também apelara ao FMI para socorrer o Brasil. Nada disso era relevante: o que realmente interessava à mídia era liquidar Lula, salvar Serra.

Este, como é de público conhecimento, ligava todos os dias para dirigentes e editores da mídia, orientando-os como se devia dar a cobertura, e normalmente era bem atendido. Na segunda semana de setembro, Lula ganhava as páginas, de todas as maneiras, e todas negativas, como convinha ao bombardeio.

As manchetes, fotos, chamadas de primeira página, títulos, matérias, reportagens, artigos faziam de tudo no sentido de evidenciar a ligação de Lula com o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, punham o candidato oficial cobrando clareza de Lula sobre o movimento, indicavam que o candidato operário não iria reprimir o MST, que pecado. Criminalização dos movimentos sociais é com o PSDB mesmo, desde antanho.

E quanto a isso havia uma impressionante convergência – era O Globo, O Estado de S. Paulo, a Folha de S.Paulo... E voltou Santo André, sacado da algibeira nos últimos anos a cada momento que se considere necessário. E voltaram os ataques a José Rainha do MST, a Olívio Dutra. Agora é Lula! E qualquer jogo valia a pena, pouco importando a veracidade das coisas, pouco importando fossem matérias de cozinha, mais que requentadas, que se danasse aquilo que se conhece como jornalismo, ao lixo com os escrúpulos. À mídia hegemônica, conservadora, só interessava evitar a chegada de Lula à Presidência da República. Só. Bob Fernandes perguntava, com propriedade:

Por que razão a mídia, que vive quase toda ela uma situação de extremada penúria, não levou à população, aos seus telespectadores, ouvintes e leitores, o debate sobre o ingresso ou não de capital estrangeiro para as atividades no setor? Não levou porque esse é, foi, um jogo e um acerto para portas fechadas, entre meia dúzia de senhores.

Perguntava mais, tentando procurar alguma lógica jornalística na ação da mídia, o que era impossível, e ele sabia que impossível:

– Onde está Ricardo Sérgio, aquele que foi tesoureiro de campanhas de José Serra e personagem central no processo de privatização do Sistema Telebras?
– Por que sumiram, na Sabesp, a companhia de águas de São Paulo, os adendos que tratavam do bilionário projeto de despoluição do Rio Tietê?
– Por que, um dia, o ministro Paulo Renato, sentiu-se alvo de um conjunto de informações que ligava o alto tucanato ao bilionário empréstimo do BID para a despoluição do Tietê?

Eram perguntas que permaneceriam sem resposta, ao menos resposta da mídia. Por que ela trataria desses assuntos se eles prejudicariam, como evidente, a candidatura Serra? A mídia hegemônica brasileira sabe quais são os seus interesses de classe – os seus e os das classes abastadas, dominantes, se quisermos.

A mídia conservadora foi longe. Amplificou ao máximo a declaração de Serra de que Lula era a favor da bomba atômica – o que era rematada mentira. Como insistiu nas relações entre o MST e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), e daí, se o PT tem relações com o MST, então se conclui que Lula é ligado às Farc. E volta Santo André, a morte do prefeito petista Celso Daniel, propina, caixa paralelo, e Lula, como se tudo tivesse a ver. Não havia, como se vê, nenhuma novidade, mas a velha mídia sempre tenta fazer parecer que tudo é novo.

E Lula, apesar da artilharia pesada, nessa segunda quinzena de setembro de 2002, estava a quase 2% de votos válidos para ganhar no primeiro turno. Daí o desespero e o bombardeio incessante. Que persistiria até o último instante. E que teria o efeito de jogar de fato a eleição para o segundo turno, com Lula alcançando, no dia 6 de outubro daquele ano, mais de 46% dos votos válidos, contra pouco mais de 23% de Serra. Para tanto bombardeio, o resultado foi pífio para o candidato oficial. E olhe que não faltaram mimos, e gordos, para a mídia, e não apenas sob a forma de publicidade.

Vamos ao maior dos mimos. Às portas do primeiro turno, no dia 2 de outubro, o Diário Oficial publicava Medida Provisória assinada por Fernando Henrique Cardoso em atendimento a uma reivindicação muito cara à mídia hegemônica: a regulamentação da participação do capital estrangeiro, até o limite de 30%, nas emissoras de televisão e de rádio e, também, nas empresas de mídia impressa. Isso ficou conhecido como Proer da mídia.

Na emergência, a velha mídia foi pra cima do governo, e conseguiu o que queria. Um toma-lá-dá-cá mais do que conveniente. Se já não havia dúvida quanto ao apoio da mídia a Serra, agora se batia o martelo de modo definitivo. Uma mídia em dificuldades financeiras recebia o socorro de que necessitava.

A ofensiva midiática não surtiu efeito: Lula, no segundo turno, no dia 27 de outubro, obteve mais de 61% dos votos válidos, contra pouco mais de 38% para Serra. Um feito inédito: o primeiro operário eleito presidente da República. Apesar de você...

Foi uma vitória consagradora, uma derrota para o projeto neoliberal e, inegavelmente, uma derrota rotunda para a mídia hegemônica, a provar que o povo brasileiro amadurecera, e resolvera tomar o país em suas próprias mãos. Começava uma era em que as maiorias raciocinavam por si mesmas, para além do tambor da velha mídia, agora numa depressão monumental e dívidas abissais, quase de pires na mão. Principiava o Brasil da Silva.

E o Silva, Lula, podia dizer, com muita convicção: “Nós vamos melhorar o Brasil”. Dizer que recebia a tarefa como a maior responsabilidade que já tivera na vida porque sabia o tamanho da esperança do povo brasileiro, o que esse povo esperava dele. “Nunca tive medo das coisas difíceis, e acho que vai ser muito bom para o Brasil passar por essa experiência do PT. Nós vamos mudar o Brasil.”

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Emiliano José é professor-doutor (aposentado) em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia, jornalista, escritor e integrante do Conselho de Redação de Teoria e Debate