Internacional

Crise econômica de 2008 em expansão pelo planeta aprofunda a concentração de renda, destrói empregos e aumenta desigualdades

A reestruturação do capitalismo fragiliza o Estado na capacidade de promover reformas que garantam direitos sociais e desmantela o poder de compra dos trabalhadores. A lógica é manter um padrão de acumulação de capital adaptado ao contexto socioespacial de cada parte do globo terrestre

Movimento do grande capital provoca uma grande onda de desemprego em países euro

Movimento do grande capital provoca onda de desemprego em países europeus como na Espanha. Foto: Susana Vera/Reuters

A crise econômica de 2008, que continua se expandindo pelo globo, se manifesta de forma perversa dentro de uma lógica fundamentada na ampliação da política neoliberal e na concentração de capitais mediante despossessões, fusões e incorporações. Essa crise, como processo de reestruturação do sistema capitalista, contribui para o aprofundamento mundial do neoliberalismo como doutrina sociopolítica, destrói empregos, concentra capital, aumenta significativamente a inflação e busca reduzir o poder de mobilização da classe trabalhadora.

Os efeitos de uma reestruturação capitalista por desregulamentação e livre atuação de agentes hegemônicos do capital provocam o que o renomado geógrafo britânico David Harvey chama de acumulação por despossessão. Perdas de ativos que vão parar nas mãos de especuladores, perda da capacidade de consumo, perda da capacidade do Estado de construir infraestrutura social e perda do poder de compra dos trabalhadores mediante aumento da inflação e congelamento de salários são sintomas visíveis desse processo.

A despossessão fragiliza o Estado, pois restringe sua atuação como provedor de reformas voltadas à construção de infraestruturas sociais e redistribuição de renda. Fragiliza os trabalhadores, corroendo salários, aumentando o desemprego e reduzindo a capacidade de articulação dos sindicatos. Por outro lado, fortalece a acumulação de capitais por meio da concentração de renda em mãos de grandes capitalistas e exacerba o poder social do dinheiro como instrumento de controle dos Estados e dos trabalhadores em uma escala global.

Em sintonia com David Harvey, o professor Milton Santos também põe o dinheiro na centralidade do processo de globalização do capital. Para ele, o dinheiro em estado puro e os grandes conglomerados da mídia têm papel essencial no processo de reestruturação do modo capitalista de produção. Essa reestruturação vem pautada por uma agenda globalitária impositiva, na qual os países pobres são forçados a mergulhar numa lógica de perversidade fundamentada na ampliação do poder de decisão dos conglomerados internacionais sediados nos países ricos e na limitação do poder de ação dos Estados e de parte das organizações populares.

A geografia da acumulação por despossessão se materializa no espaço de forma diferenciada, pois a lógica é manter um padrão de acumulação de capital adaptado ao contexto socioespacial de cada parte do globo terrestre.

Na Europa as incursões do capital objetivam fazer um desmonte do Estado de Bem-Estar Social, com o aprofundamento do neoliberalismo, a maximização da “austeridade fiscal”, a diminuição da capacidade de intervenção do Estado na economia, arrocho salarial, desmonte da legislação trabalhista, destruição da previdência social e privatização de serviços essenciais como educação e saúde. É válido salientar que áreas estratégicas como educação e saúde interessam bastante aos agentes hegemônicos do capital. A necessidade de acesso à saúde e a importância estratégica da educação para a emancipação social fazem com que haja uma grande demanda por serviços nesses setores, cuja exploração privada pode gerar grandes lucros.

Os efeitos desse revigorado formato de atuação dos grandes capitalistas praticamente quebrou a economia da Grécia, deixando o país totalmente dependente de empréstimos a juros da União Europeia e de outros organismos financeiros. Há, no entanto, um amplo processo de resistência popular às mudanças neoliberais. O enfrentamento pela permanência e ampliação de direitos sociais e autonomia socioeconômica envolvem grande parte da população grega numa luta contra a chamada “troika interna”, que desrespeita procedimentos parlamentares com a imposição de medidas de “austeridade” e cortes de direitos sociais histórica e legitimamente conquistados. Os “atos de conteúdo legislativo”, que não precisam ser submetidos ao Parlamento, estão sendo constantemente utilizados contra os trabalhadores pelo novo governo do país.

Essa reestruturação do modo capitalista de produção desarticulou politicamente a Itália, fazendo com que grupos de extrema direita e aqueles que pregam a desvalorização da ação política ganhassem maior espaço no Parlamento e no governo. Reduziu os direitos trabalhistas e os rendimentos familiares de trabalhadores portugueses, espanhóis, gregos, franceses e italianos, entre outros. Esse movimento do grande capital vem provocando uma grande onda de desemprego sobretudo na Espanha, onde a taxa chega a 27% no geral e a 57% na população jovem.

Esse contexto de crise coloca em teste a resistência da União Europeia aos movimentos de aprofundamento do neoliberalismo. A atualidade nos traz um diferente movimento do capital fundamentado não somente nas privatizações de empresas estratégicas e lucrativas em países pobres e no controle estatal destes, mas também em um amplo processo de destruição do modelo de bem-estar social que foi construído na Europa no seio do próprio sistema. O rompimento da estrutura que sustenta a proposta do Estado de Bem-Estar Social europeu, que já tem suas desigualdades internas, reflete a retirada de direitos sociais e de parte da renda dos trabalhadores da Europa. Dessa forma, maximiza-se o processo da acumulação de capital por despossessão da dignidade social e do tempo de trabalho desses homens e mulheres.

Na América Latina

Na América Latina, a acumulação por despossessão se materializa na pressão sobre o preço das mercadorias, principalmente nas commodities e nos produtos da cesta básica. A alta de preços se traduz na inflação e em um amplo processo de redução da capacidade de compra e consumo das famílias. Tal lógica penaliza duramente os mais pobres, os quais são forçados a aumentar seu tempo de labor e se sujeitar a péssimas condições de trabalho como estratégia de sobrevivência. A inflação age como elemento de sucção da renda, pois corrói, por meio do encarecimento do custo de vida, grande parte dos ganhos dos trabalhadores.

Na Argentina, o governo federal vem adotando a política de congelamento de preços para tentar minimizar a inflação, que chegou a 10,8% em 2012. Na Venezuela a inflação foi de 27,2% em 2010, 27,6% em 2011 e 19,9% em 2012, mesmo com o preço dos combustíveis controlado pelo Estado, que os comercializa por um valor bem abaixo da média mundial – o litro da gasolina varia entre R$ 0,07 e R$0,15, enquanto no Brasil fica entre R$ 2,75 e R$3,30.

No Brasil, a pressão do grande capital em prol da privatização dos portos, aeroportos e rodovias é latente. Internamente, encontra grande sustentação em parcela da mídia nacional e em setores conservadores da política. Verificamos também a participação do grande capital no processo de desindustrialização nacional, mediante imposições na racionalização da produção, do mercado e da concorrência predatória, por meio de fusões e incorporações promovidas por grandes empresas, em muitos casos com o aval do governo e financiamento do BNDES.

Ainda no Brasil destacamos a atuação do grande capital no crescimento político e material do agrofúndio, com o aumento na concentração da terra e da bancada ruralista no Congresso Nacional e a recente reforma do Código Florestal. Sem falar na inflação, que provoca elevação nos preços das mercadorias, reduzindo drasticamente o poder de compra das famílias, principalmente das que ganham entre 1 e 3,5 salários mínimos, e submete os trabalhadores a péssimas condições de vida.

A expropriação da renda do trabalhador por meio da redução de direitos sociais e do encarecimento do custo de vida como um processo de acomodação das novas bases do modo capitalista de produção, atrelado à falta de vontade política de parte expressiva dos dirigentes do Executivo, do Legislativo e do Judiciário em fazer as transformações estruturais, tem gerado mobilizações populares com pautas que destacam no geral a deterioração das condições de vida. Nesse contexto, destacamos no Brasil a falta de infraestrutura social, sobretudo de serviços de educação e saúde, a falta de mobilidade urbana e de acesso qualificado aos espaços de construção coletiva das decisões políticas do país.

Apontamos essas questões que devem ser atacadas, mas reconhecemos que nos últimos dez anos houve muitos avanços no Brasil, entre os quais destacamos a expansão do ensino superior, com a criação de novas universidades federais no interior do país, a ampliação do acesso das famílias pobres à energia elétrica (Programa Luz Para Todos), ao saneamento básico (Programa de Aceleração do Crescimento), à moradia (Programa Minha Casa, Minha Vida), aos cursos técnicos, com o Pronatec, e à política de renda mínima, com o Bolsa Família. Foram avanços importantes que refletem na prática mais inserções sociais e maior dignidade para a população de menor renda do país, mas não podemos perder de vista que é preciso dar um salto de qualidade, ou seja, avançar para além desses e de outros programas existentes.

Qualificar serviços, principalmente na saúde e na educação, fazer uma reforma política estrutural com ampla participação popular, abrir novos canais de comunicação com a população de forma participativa, priorizar a utilização de nossos recursos naturais de forma sustentável e voltada à melhoria da qualidade de vida da população, direcionar investimentos para projetos de desenvolvimento local e regional, priorizando a distribuição da renda e a desconcentração produtiva, são caminhos que certamente poderão se contrapor aos processos de reestruturação do modo capitalista de produção e suas ferramentas de acumulação por despossessão da renda dos trabalhadores.

Neste breve texto apontamos de forma didática apenas algumas das transformações causadas pela atual crise do sistema capitalista, sustentada em um amplo processo de reestruturação sociopolítica que vem se materializando em um movimento de acumulação de capital por despossessões – ou seja, perda de direitos sociais, aumento na exploração do tempo de trabalho e concentração das riquezas em um restrito e seleto grupo de capitalistas.

José Antonio Lobo dos Santos é doutor em Geografia Humana pela USP e professor adjunto do Departamento de Geografia/Igeo/UFBA. E-mail: [email protected]