Economia

Apoio à formação de uma burguesia regional a partir da formulação de políticas que evitem a fuga de capitais deve fazer parte de uma política de esquerda

A ansiedade privatista do prefeito e sua pressa em busca de seu projeto de poder o impedem de compreender as potencialidades de São Paulo

Plantio de soja no sul do Piauí: burguesia agrária garantiu espaço na classe dom

Plantio de soja no sul do Piauí: burguesia agrária garantiu espaço na classe dominante local. Foto: Márcio Fernandes/Estadão Conteúdo

O cientista político grego Nicos Poulantzas, no livro As Classes Sociais no Capitalismo de Hoje, indica o fracionamento da classe dominante do ponto de vista das relações inter-regionais de um país. A classe capitalista no espaço regional está dividida em três frações: burguesia associada, burguesia interna e burguesia regional.

A burguesia associada diz respeito aos capitais subordinados aos capitais externos, nacionais e internacionais. A subordinação econômica corresponde a uma atitude de subserviência política aos interesses desses capitais externos. O capital comercial tende a ser o núcleo da burguesia associada da região periférica.

A burguesia interna se refere aos capitais que possuem uma base de acumulação nativa mas, por serem dependentes financeira e tecnologicamente de capitais externos, mantêm uma postura ambígua politicamente, ora apoiando os interesses desses capitais externos, ora se contrapondo a eles. O centro da burguesia interna à região periférica tende a ser constituído por capitais produtivos, agrários e industriais.

Por fim, a burguesia regional está relacionada aos capitais nativos independentes, que assumem no plano político uma posição de defesa da região – por exemplo, evitando a fuga de capitais. É mais difícil a formação da burguesia regionalista na periferia nacional.

Pode ocorrer de formarem-se conglomerados econômicos que atuam em mais de uma esfera do capital (indústria, banco, comércio). No entanto, isso não anula a existência das frações de classe, uma vez que tais conglomerados tendem a sofrer o recorte dos interesses setoriais, em razão do impacto diferenciado das políticas do Estado no seio deles. No Piauí, por exemplo, o Grupo Claudino, diante de certas políticas governamentais, pode perder como comerciante, mas ganhar como industrial.

Nas décadas de 1980 e 1990, em parte por efeito das inovações técnicas informacionais e sua vaga de desemprego tecnológico, houve um novo surto de individualismo e o declínio das identidades de classes na maioria dos países. Na década de 2000, porém, especialmente na América Latina, por influência da ascensão de partidos de esquerda, há uma retomada dos conflitos de classe na cena política. Por exemplo, em 2006 Lula se reelege presidente, sendo visto como o candidato defensor dos “pobres”, contra Alckmin, identificado com os “ricos”.

A minha hipótese de trabalho é de que no Piauí atual temos a disputa de dois modelos políticos: de um lado, o modelo da burguesia associada, com a inserção “passiva” do estado na Federação; de outro, o modelo da burguesia interna, com a presença relativamente “ativa” da sociedade local no cenário nacional.As noções de inserção “passiva” e presença “ativa” no contexto federativo encontram-se em Medeiros (1996).

A burguesia associada e a inserção “passiva” na Federação

A preponderância econômica atual da burguesia associada no Piauí teve início com a passagem do capital mercantil (exportador de bens extrativos) para o comercial (importador de bens manufaturados) nas décadas de 1950 e 1960. O fim do ciclo agroexportador piauiense para o mercado internacional, determinado pelas mudanças no uso de matérias-primas, retraiu sua agricultura para o mercado regional de alimentos, ao tempo que a construção de estradas nacionais permitia a ocupação do mercado local pelos produtos manufaturados do Sudeste. Crescentemente, o déficit na balança comercial do estado foi financiado pelas transferências de recursos governamentais federais, compostos pelos Fundo de Participação dos Estados (FPE) e Fundo de Participação dos Municípios (FPM), empregos públicos federais e programas de desenvolvimento regional.

Paralelamente à ascensão econômica do capital comercial, associado às indústrias do Sudeste, deu-se sua conquista da hegemonia política no estado, possibilitando que as políticas governamentais locais estivessem predominantemente orientadas para seus interesses. Assim, a política de estradas pavimentadas ligava sobretudo as grandes cidades locais às estradas federais. As estradas rurais estavam sempre em dificuldades, pois, sob a responsabilidade das municipalidades, estas não dispunham dos recursos para melhorá-las. A montagem do sistema de estradas favorecia, portanto, o transporte de produtos de outros estados, em detrimento da produção agrícola local.

A política de energia elétrica também favorecia o capital comercial. Como em outros estados, uma usina de energia elétrica foi construída no Piauí durante os anos 1960. Mas o governo local não foi capaz de estabelecer uma política de preços diferenciados que beneficiasse o consumo produtivo de energia, como foi o caso de outros estados. No Piauí, os representantes do capital comercial manifestaram uma forte oposição à prática de preços diferenciados para a energia, inclusive ameaçando transferir suas atividades para outras regiões. Argumentavam que uma prática de preços reduzidos para certos segmentos sociais implicaria necessariamente uma elevação de impostos locais, o que o comércio não estava em situação de suportar. O comércio aparecia como o principal consumidor local de energia elétrica.

As condições de crédito foram favoráveis às atividades comerciais. O setor tornou-se o primeiro a beneficiar-se de linhas de crédito governamentais locais. Como mostra a análise das operações do banco local, em 1971 o comércio ficou com 44,5% das aplicações creditícias, enquanto a agricultura obteve 29,6%.

A apatia política, no contexto nacional, da classe dominante local, sob a hegemonia do capital comercial, ficou patente quando: o Departamento Nacional de Obras contra as Secas (Dnocs) foi inviabilizado no estado e não se levantaram protestos; não houve reações contra a burocratização que criava grandes obstáculos aos empréstimos da carteira agrícola do Banco do Brasil; não teve oposição ao corte dos subsídios nacionais para a eletrificação rural. O sentimento de indiferença se difundia, porque a fração hegemônica não tinha compromissos com as questões da acumulação interna.

A burguesia interna e a presença relativamente “ativa” no cenário nacional

Um duplo processo caracterizou as transformações na estrutura agrária do Piauí na década de 1980. De um lado, ocorre a modernização do latifúndio tradicional, através do crescimento da agropecuária capitalizada, tendo como principal incentivo as linhas de crédito do governo federal, o que implicou a expulsão do trabalhador-morador das grandes propriedades e a adoção crescente do trabalho assalariado ou semiassalariado (pequenos rendeiros moradores de ponta de rua dos núcleos urbanos). O fato sociológico novo é que a secular aristocracia agrária tornou-se classe capitalista. De outro lado, os projetos governamentais de apoio à “pequena produção” – especialmente    aqueles que, em razão da forte pressão demográfica e dos conflitos de terra, adotaram uma política de redistribuição de terras – contribuíram para a renovação da pequena propriedade independente, voltada para a produção mercantil de alimentos. Um indício de que a agropecuária no estado já não estava predominantemente ligada ao latifúndio senhorial é o fato de que, após algumas décadas de estagnação, as atividades agropecuárias voltaram a crescer e registrar ganhos de produtividade. Foi a década também em que chegaram os primeiros projetos de ocupação econômica dos cerrados do sul do estado, através da produção de grãos e fruticultura.

No plano político, produziram-se as condições para o fim da política oligárquica-coronelista, anteriormente assentada nos votos do latifúndio senhorial e, nas últimas décadas, ligada à hegemonia do capital comercial associado. A vitória do PMDB ao governo estadual em 1994, depois de décadas de gestão conservadora de Arena e PFL, significou uma nova orientação na política local, voltada em especial para os interesses da emergente burguesia agrária. Nas gestões do PT iniciadas em 2002 e 2006 e do PSB em 2010, tal orientação se mantém e aparentemente se consolida.

A política de estradas se altera, tendo o início da pavimentação das vias rurais pelo governo estadual. Assim, no ano de 2007, a pavimentação de estradas estaduais (2.415 quilômetros) supera a de federais (2.238 quilômetros). Em relação à energia elétrica, os representantes do setor agrário, através da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Piauí (Faepi), passaram a reivindicar a “tarifa verde”, aprovada, mas ainda limitada. Sobre o crédito, as condições foram favoráveis às atividades produtivas. No Piauí, o Banco do Nordeste do Brasil (BNB) aplicou cerca de R$ 790 milhões em 2008, representando um aumento de 62% em relação a 2007. Na avaliação do presidente da Faepi, as agências de fomento ao crédito no estado – BB e BNB – têm tido uma atuação positiva para o agronegócio.

A política econômica governamental (infraestrutura, crédito) voltada preferencialmente para a atividade produtiva refletiu-se no maior dinamismo do setor agrícola e pecuário. Assim, no período de 2002 a 2004, a participação da atividade primária no valor adicionado no estado passou de 9% para 13%, enquanto a atividade terciária decresceu do patamar de 65% para 60%. A arrecadação do ICMS mostrou uma variação positiva do setor primário de 173% de recolhimento entre 2007 e 2008, ao passo que o setor terciário teve uma oscilação de 12% no mesmo período.

A conquista da hegemonia política pela burguesia agrária, embora esta não detenha a preponderância da economia, possibilitou uma presença mais “ativa” da classe dominante local no cenário nacional. Assim, os representantes da burguesia agrária, através da Faepi e de parlamentares federais, manifestaram-se contrários à legislação ambiental do governo federal, que se adequaria mais aos interesses dos estados desenvolvidos, onde inexistem novas áreas a serem exploradas na agricultura, diferentemente de estados como o Piauí.

O conflito da burguesia interna aos estados periféricos com a burguesia da região polo se manifestou recentemente em torno da questão dos royalties do petróleo. O senador João Vicente Claudino (PTB), liderança empresarial no Piauí, expressou forte oposição ao fato de estados da região polo concentrarem em torno de 80% dos recursos dali provenientes. Para ele, isso significava “um acinte em um país com graves carências” (Pronunciamento no Senado em 19/4/2007). O senador Wellington Dias (PT), liderança dos bancários e um aliado dos interesses progressistas da burguesia interna piauiense, foi o autor do projeto eixo das votações no Congresso Nacional sobre a distribuição dos royalties do petróleo aos estados e municípios, cuja regra era: distribuir proporcional à população e inversamente proporcional à pobreza. Em resposta ao veto presidencial ao seu dispositivo, Dias declarou: “Sou do partido da presidenta da República, mas nesse caso já manifestei ao meu líder e ao meu governo que estarei defendendo os interesses maiores do povo que represento aqui, do estado do Piauí” (Pronunciamento no Senado em 4/12/2012).

As relações centro-periferia no Brasil das décadas de 1990-2000

François Perroux contribuiu para desenvolver a ideia de polarização de um lugar central, subjacente ao conceito de região. Ele define espaço “por sua natureza ‘econômica’ e posição de força ou dominância. Ou seja, a hierarquia urbana é replicada no espaço como um processo de dominação econômica entre regiões, que resulta na existência de localidades polos e áreas dominadas” (Diniz et al, 2003, p. 669).

O diagnóstico de Celso Furtado na década de 1950 foi que “o livre jogo das forças do mercado tenderia a perpetuar a miséria e a pobreza nordestina e aprofundar o abismo entre o Nordeste e o Sul. Logo a conclusão se impõe, era necessária uma política de desenvolvimento para o Nordeste” (Aureliano, 2007, p. 263). Segundo Liana Aureliano, a lição dos últimos quarenta anos é que “mesmo com todas as limitações, com todas as distorções, esse pequeno avanço do Nordeste só foi possível graças aos instrumentos diretos de política regional e graças aos gastos diretos federais e das empresas públicas” (Ibidem, p. 264).

Para a década de 1990, período de governos sob a hegemonia neoliberal e de desmonte das políticas regionais, alguns estudiosos, como Clélio Campolina Diniz, chegam a diagnosticar uma reconcentração regional no país. Na atual conjuntura, a partir da ação do Ministério da Integração Nacional, houve uma retomada das políticas nacionais de desenvolvimento regional, uma vez que a maioria dos governos estaduais e municipais não tem condições para buscar "escolhas estratégicas" nas regiões periféricas (Araújo, 2007).

O discurso da globalização, na linha de que se estaria constituindo um espaço homogêneo de acumulação de capitais, tem uma dupla consequência: de um lado, minimiza o movimento de polarização econômica, desconsiderando a tendência à concentração e centralização do capital e à desigualdade do desenvolvimento das forças produtivas no espaço geográfico; de outro, subestima o papel de políticas compensatórias para o desagravo das desigualdades regionais e para diminuir as tensões políticas separacionistas, especialmente das regiões mais ricas.

Os processos de polarização econômica e hegemonia política da burguesia da região-centro foram percebidos no discurso do senador Wellington Dias. Depois de apontar as políticas do comércio eletrônico, Fundeb, per capita/SUS, salário-educação, Lei Kandir (isenções de tributos para incentivar as exportações), BNDES, como favoráveis à região polo, o senador conclui: “Praticamente estamos colocando incentivo para regiões desenvolvidas, convenhamos aqui. Então, isso é inaceitável. (...) Precisamos tratar, junto com esse pacto federativo, as condições de desenvolvimento das regiões não desenvolvidas” (Pronunciamento no Senado em 29/2/2012).

Conclusão

Em síntese, afirmamos a coexistência tensa no Piauí atual entre, de um lado, a preponderância econômica, mas em declínio, da burguesia associada e, de outro lado, a hegemonia da burguesia interna, e em ascensão econômica, num contexto nacional de competição pelos recursos das políticas de desenvolvimento regional.

Nesse cenário, uma política de esquerda poderia conter ao menos três dimensões: uma aliança com os interesses progressistas da burguesia interna, em torno de ampliar o espaço da agricultura familiar e das políticas sociais; o apoio à formação de uma burguesia regional a partir da formulação de políticas autonomistas, que evitem a fuga de capitais e de cérebros; a indicação dos limites das políticas de desenvolvimento capitalista para os interesses estratégicos (fim da exploração do trabalho, satisfação das necessidades materiais e potencialidades culturais) da classe trabalhadora.

Referências

ARAÚJO, Tânia Bacelar de. “Brasil: desafios de uma Política Nacional de Desenvolvimento Regional contemporânea”.  In DINIZ, Clélio Campolina (org.). Política de Desenvolvimento Regional: Desafios e Perspectivas à Luz das Experiências da União Europeia e do Brasil. Brasília: UnB, 2007.

AURELIANO, Liana. “No modelo neoliberal vigente, não há futuro para o Brasil nem para o Nordeste”. In FORMIGA, Marcos; SACHS, Ignacy (orgs.). Celso Furtado, a Sudene e o Futuro do Nordeste. Recife: Sudene, 2007.

DINIZ, Clélio Campolina et al. “A nova configuração regional brasileira e sua geografia econômica”. Estudos Econômicos. São Paulo, v. 33, nº 4, 2003.

MEDEIROS, Antônio José. Movimentos Sociais e Participação Política. Teresina: Cepac, 1996.

Francisco Pereira de Farias é professor de Ciência Política na Universidade Federal do Piauí