Sociedade

A universidade, por meio de sua cúpula dirigente, resiste sistematicamente em responder aos movimentos que, por décadas, reivindicam sua democratização interna

Refém de sua própria estrutura antidemocrática, a USP por meio de mecanismos institucionais restringe qualquer possibilidade mais profunda de mudança. Nesse terreno “brotam” as ocupações em 2007, 2011 e 2013, e as greves de 2000, 2002, 2005, 2007, 2008, 2009, 2011 e 2013, manifestações quase “naturais”, diante da incapacidade da estrutura de promover mudanças que correspondam às demandas do corpo universitário

Foram duas décadas de mobilizações para que a USP colocasse a eleição para reito

USP: o verdadeiro problema encontra-se enraizado em sua estrutura de poder. Foto: JF Diorio/Estadão Conteúdo

O pior diagnóstico é aquele em que os sintomas são entendidos como a própria doença. É o equívoco que comete o atual reitor da Universidade de São Paulo (USP), João Grandino Rodas, quando, em entrevista à Folha de S.Paulo1, afirma que a queda da instituição no ranking de avaliação Times Higher Education (THE) está diretamente relacionada a “tomadas violentas de espaço”, referindo-se à recente ocupação da reitoria dessa universidade. Sem entrar na (necessária) discussão do mérito desses indicadores internacionais de classificação, a relação de causalidade proposta por Rodas é, no mínimo, equivocada. Seguindo essa mesma lógica direta, seria possível concluir que as ocupações anteriores da mesma reitoria, em 2007 e 2011, teriam influenciado a subida da USP em 75 posições nesse mesmo ranking em anos anteriores. A inversão do argumento torna evidente o absurdo da correlação sugerida por Rodas. Em certo sentido, tentar opor a “USP líder nos rankings” à “USP palco de protestos” é mais uma tentativa de reduzir a crise da universidade a falsas oposições2. Em outras palavras, é confundir a doença com seu sintoma.

Não é de hoje a resistência da administração central da Universidade de São Paulo em aceitar o sentido profundo dos acontecimentos políticos que vêm se repetindo ao longo de sua história recente. É dessa resistência que se alimenta a recusa sistemática dos dirigentes da USP em aceitar o movimento estudantil como ator político efetivo, o que explica, em parte ao menos, porque as greves e ocupações precisam assumir um caráter progressivamente radical. “Para se fazer ouvir, é preciso gritar.” Esse é um sentimento difundido que, na sua raiz, nega a própria política e ajuda a explicar o mal-estar que impera na USP. Mas, ao contrário do que insiste a reitoria, as explosões do movimento estudantil e seu caráter de enfrentamento cego não se explicam apenas pelos erros e acertos de grupos e indivíduos isolados, e sim pela estrutura de um sistema organizacional que não permite enxergar, além das aparências, o que está na raiz de sua crise.

Pelo menos desde a década de 1960, mas sobretudo a partir do fortalecimento da luta pela redemocratização do país nos anos 1980, as “diretas já” são palavras de ordem que expressam reivindicações pela democratização das instituições através de alterações na escolha de seus dirigentes. Do mesmo modo e de forma ainda mais profunda, as lutas por “estatuinte”3, correlato institucional da disputa nacional pela Constituinte, traduzem os anseios por reformas democráticas e pela ampliação da participação política nas diferentes instituições. Nos dois casos, entende-se a participação política como um direito fundamental que, nas democracias maduras, não se limita à participação eleitoral stricto sensu, espraiando-se para todas as instituições sociais. Diante disso, é pressuposto que as instituições, em especial as instituições públicas, sejam capazes de responder às reivindicações por democratização, reconhecendo o contexto histórico em que se inserem.

Mas a Universidade de São Paulo, por meio de sua cúpula dirigente, resiste sistematicamente em responder aos movimentos que, por décadas, reivindicam sua democratização interna, seja pela revisão do seu processo eleitoral (como pedem os que querem “diretas já”), seja pela construção democrática das suas regras de funcionamento (como esperam os que exigem uma “estatuinte livre, democrática e soberana”).

Para ter uma ideia do contexto nacional, as diretas para reitor já são realidade na esmagadora maioria das universidades federais. Além disso, em 2012, 68% das 54 Instituições Federais de Ensino Superior4 elegiam seus dirigentes por voto direto e paritário, atribuindo o mesmo peso para as três categorias da universidade: professores, funcionários e estudantes. No campo das universidades estaduais, há anos a Unicamp promove uma consulta pública por voto direto na proporção 60%, 20%, 20% (ou seja, 60% de votos dos professores, 20% dos alunos e 20% dos funcionários. Na contramão desse processo, porém, encontra-se a Universidade de São Paulo. Foram quase duas décadas, inúmeras greves e ocupações e o impacto social dos movimentos de junho para que a USP colocasse a eleição para reitor na pauta do seu Conselho Universitário. Ainda que essa reunião de 1º de outubro tenha aprovado mudanças que foram consideradas por muitos um “grande avanço”, o resultado é no mínimo tímido para os que ansiavam pela democratização da universidade: a ampliação do colégio eleitoral para cerca de 2% da comunidade universitária. Ou seja, com esse “grande avanço”, a USP ainda se encontra muito distante da realidade de grande parte das universidades públicas federais e estaduais do país.

A USP, no entanto, quer reformas democrática5. Prova disso é que essa mesma reunião do Conselho Universitário – que, vale dizer, congrega pouco mais de 120 pessoas, das quais mais de 70% professores titulares – também aprovou, por maioria simples, a realização de um “processo estatuinte” pelo qual a USP reformaria seu estatuto e, portanto, sua estrutura de poder e seu sistema eleitoral. No entanto, o que poderia ter sido a maior vitória da história do movimento pela democratização da USP resultou, na verdade, em nada. O próprio estatuto da USP, mantido quase intacto desde a ditadura militar, restringe as mudanças estatutárias à aprovação de um “quórum qualificado”, composto por dois terços dos membros do Conselho Universitário. Mesmo em um colégio restrito como o Conselho Universitário da USP fica explícito que a maioria da USP quer mudanças, mas a universidade segue refém de uma minoria que, nesse registro podemos chamar, conservadora.

É esse cenário de imobilismo que dá razão aos (muitos) que afirmam que a USP se encontra refém de sua própria estrutura antidemocrática, que por meio de mecanismos institucionais restringe qualquer possibilidade mais profunda de mudança ou reforma. Não é outro o terreno em que “brotam” as ocupações em 2007, 2011 e 2013, e as greves de 2000, 2002, 2005, 2007, 2008, 2009, 2011 e 2013. Essas são manifestações quase “naturais”, diante da incapacidade da estrutura de promover mudanças que correspondam às demandas do corpo da universidade.

Por não haver espaços em que a comunidade universitária possa influir na USP por dentro da estrutura, parte dessa busca construí-los “por fora”, confrontando a legalidade estabelecida, como, no mais, qualquer movimento social o faz. Ou seja, não se trata de julgar tais movimentos a partir de uma ótica embasada pela ordem institucional constituída, que é exatamente aquela que está sendo confrontada. O movimento pela democratização da universidade, ao lançar mão da interrupção das atividades didáticas e administrativas, através da greve e das ocupações, comporta-se como um movimento legítimo, reivindicando uma pauta específica, que é nada mais, nada menos do que um espaço amplo de participação política – com isso a necessidade de uma reforma da estrutura de poder da USP. Reconhecer a legitimidade dos instrumentos políticos utilizados pelo movimento estudantil da USP – particularmente a greve e as ocupações de prédios públicos – não significa, no entanto, corroborar excessos individuais e/ou coletivos que não têm qualquer função política, pelo menos nenhuma função política reivindicada. Mas, assim como não se pode legitimar o movimento como um todo, não é possível criminalizá-lo como um todo, como parece querer fazer a reitoria ao silenciar diante da prisão arbitrária de dois estudantes do curso de Filosofia que nada tinham a ver com a ocupação do prédio reintegrado no dia 12 de novembro.

A criminalização do movimento estudantil corrobora a criminalização das organizações políticas como um todo, tais quais sindicatos, associações, grupos, coletivos e também partidos, os quais constituem instrumento de organização social fundamental não só para a garantia de direitos fundamentais já reconhecidos como também para a conquista de novos direitos, como o de ampla participação política no interior das instituições sociais, o que só se faz por um questionamento radical do status quo.

Nesse sentido, é fundamental reconhecer que as mobilizações estudantis da USP de 2000, 2002 e 2007 resultaram em conquistas essenciais para a consolidação da universidade pública, tais como a garantia da autonomia universitária, a atualização salarial do corpo docente, a contratação de mais professores e a ampliação de políticas de permanência estudantil. Todas foram fruto do enfrentamento direto dos movimentos sociais da universidade com a legalidade estabelecida, pela qual eram recriminados, sem que, por isso, fossem considerados ilegítimos.

Diante disso, é fundamental que o corpo dirigente da Universidade de São Paulo deixe de confundir os sintomas com a doença e passe a compreender que o verdadeiro problema se encontra enraizado em sua própria estrutura de poder. A partir de então será preciso que essa universidade passe a assumir a necessidade de um processo real de democratização, criando espaços efetivos em que a diversidade e pluralidade, de que é constituída, possa encontrar a concretização de seus anseios por meio da participação política.

Tomás C. A. Marques é mestrando em Ciência da Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo

Maria Caramez Carlotto é doutoranda em Sociologia pela Universidade de São Paulo