Economia

Em artigo, Henrique Meirelles, ex-presidente do BC no governo Lula, deixa de guardar as aparências e se torna um dos expoentes do retorno ao neoliberalismo

Ao contrário do que propala Henrique Meirelles, países de estruturas políticas e econômicas tão diversas quanto Reino Unido, China e Índia não caminham na mesma direção. A redução do papel e do tamanho do Estado no Reino Unido nada tem a ver com a abertura financeira indiana e, muito menos, com as mudanças nas funções estatais na China

Abertura do sistema financeiro da Índia anunciado pelo chefe do banco central

Abertura anunciada pelo chefe do Banco Central da Índia segue padrão de incerteza. Foto: Danish Siddiqui/Reuters

Quem diria que, um dia, o ex-presidente do Banco Central do governo Lula, Henrique Meirelles, deixaria de guardar as aparências e se tornaria um dos expoentes abertos e sem rebuços do retorno ao neoliberalismo. Em artiguete recente, intitulado “A grande marcha”, ele embrulha num mesmo pacote o que chama de “três fatos cruciais da atualidade”: as recentes reformas da China, as mudanças no sistema financeiro da Índia e o surpreendente crescimento da economia do Reino Unido.

Nesse pacote ele tenta demonstrar que esses três países caminham na mesma direção, reduzindo o papel e o tamanho do Estado, realizando maior abertura ao setor privado e buscando maior eficiência e produtividade e concentração estatal na regulação de determinados mercados e na provisão de serviços essenciais. Ou seja, relembrando um passado não muito distante, estariam aplicando, agora com sucesso, as receitas recomendadas pelo FMI e pelo Banco Mundial nos anos 1990, que causaram a devastação neoliberal.

Comecemos pelo terceiro “fato crucial”, o crescimento da economia do Reino Unido. Segundo Meirelles, o governo conservador britânico teria implementado um processo de consolidação fiscal, com corte consistente de despesas e diminuição do tamanho do Estado. Assim, ao contrário de Espanha, Grécia, Irlanda e, de certa maneira, Itália, que só adotaram tal responsabilidade fiscal de forma hesitante e após grandes dificuldades de financiamento, as medidas britânicas teriam sido decididas de forma espontânea e soberana.

Londres continuaria tendo acesso amplo a crédito, com juros baixos, mas, para horror de muitos, em plena crise, teria não só passado a liberar ainda mais os mercados como iniciado um processo agressivo de redução de despesas, consolidação fiscal e melhora nas condições de financiamento às empresas. Ou seja, o corte de despesas teria resultado em reformas produtivas, o que não ocorreu no sul da Europa. Ainda segundo ele, muitos esperavam que a austeridade trouxesse severa contração à economia britânica, como nos países em crise, mas teria ocorrido o contrário. As medidas, a partir de determinado momento, aumentaram a confiança de consumidores, empresários e investidores na solidez do país. E, ao reduzirem a necessidade de financiamento do Estado, teriam liberado recursos ao setor privado, o que elevou a produtividade.

Meirelles se dá ao luxo de não apontar dado algum. Mesmo porque, se apontasse, o tal “surpreendente crescimento” não passaria de um blefe. O governo daquele país considerava que uma maior estabilidade nos mercados de exportação deveria impulsionar os investimentos e fazer com que a economia crescesse entre 1,7% e 2%, em 2013. No entanto, o Banco da Inglaterra (BoE) fez uma revisão para baixo nesses cálculos já pífios. O crescimento da economia britânica deve girar em torno de 1%. O índice acima de 1% no terceiro trimestre, após nove meses de recessão, levou o governo britânico a cantar vitória antes do tempo.

Hoje, a maioria dos analistas atribui esse pique sazonal a fatores excepcionais e considera a economia britânica longe de ter superado todas as dificuldades. Para o BoE, a trajetória positiva continua dependendo de maneira crítica dos acontecimentos no ambiente econômico mundial, onde as pressões na Zona do Euro geram o maior risco para uma recuperação sustentável. Portanto, a perspectiva de crescimento do Reino Unido continua incerta. Um cenário pouco favorável para o trabalho, cuja taxa de desemprego passou de 8%, em 2011, para 8,5%, em 2012, devendo manter-se nesse patamar em 2013.

O segundo fato crucial da atualidade, isto é, a abertura e a modernização do sistema financeiro indiano, propostas pelo novo presidente do Banco Central da Índia, Raghuram Rajan, parece seguir o mesmo padrão de incerteza. Segundo Meirelles, haveria uma expectativa geral de que ocorra um processo mais abrangente de liberalização da economia indiana, com redução de controles e burocracias que emperram o desenvolvimento, apesar do alto potencial baseado na massa de jovens entrando no mercado de trabalho daquele país.

Raghuram Rajan foi economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI) e teve o mérito de avisar a seus pares, desde 2005, que a crise viria.  Mas ele não acredita que os banqueiros e os brokers sejam os únicos responsáveis por ela. Em sua opinião, se forem focadas apenas algumas maçãs podres, como os banqueiros, se falhará no ponto central de ver que se trata de uma crise sistêmica. Em vários países do mundo, em especial os Estados Unidos, o Estado tem problemas de fundo que vão muito além do sistema financeiro. Assim, embora não consiga enxergar devidamente tais problemas de fundo, ele tem o mérito de haver deduzido que fazem parte de um todo sistêmico, o que aponta para situações nos países capitalistas centrais ainda mais críticas no futuro.

Ao assumir a presidência do Banco Central indiano, Rajan declarou que promoverá a abertura do sistema bancário do país, o qual, conforme afirma, permanece nas mãos do governo desde a independência do país, em 1947. Na verdade, a Índia possui 27 bancos públicos, 31 bancos privados nacionais e 38 estrangeiros. Somente os públicos operam no interior e nas zonas rurais, realizando a movimentação das contas correntes e das poupanças e a arrecadação de taxas e impostos. Mas Rajan acredita que isso não é suficiente para estimular a concorrência financeira nas áreas rurais.

Pensa ser necessário permitir que os bancos privados e estrangeiros abram agências nessas áreas e ofereçam mais crédito para agricultores e pequenas empresas. E pretende reduzir os requisitos para que os bancos invistam em títulos do governo e liberem linhas a juros menores para o setor produtivo. Ao anunciar essas medidas, Rajan reconheceu os riscos de uma abertura do sistema bancário. Segundo ele, essas mudanças só se justificam pelo fato de a Índia estar se desenvolvendo. A ausência de mudanças nessa área poderia “representar um risco ainda maior”.

Num passe de mágica, a abertura limitada do sistema bancário indiano foi transformada em um fato consumado e crucial embora ainda não tenha passado pelo teste da prática, sendo considerada arriscada até mesmo por seu mentor. Apesar disso, Meirelles não vacilou em transformar magnetita em pérola negra quando afirma, sem nenhum esforço de argumentação comprobatória, que as “abrangentes reformas chinesas” preveem “a abertura de mercados e a retirada gradual do Estado de diversas atividades”. No popular, ele ouviu o galo cantar e são sabe onde.

As novas reformas chinesas são continuidade e aprofundamento daquelas em curso desde 1980. Elas reiteraram que, quando a China foca no crescimento do PIB, foca principalmente no crescimento do emprego. Cada percentual de expansão do PIB precisa corresponder ao incremento de pelo menos 1 milhão de postos de trabalho. Assim, com uma taxa entre 7% e 7,5%, o país pode criar de 8 milhões a 10 milhões de novos postos de trabalho a cada ano.

A China, portanto, não manterá mais o modelo de alto investimento e alto consumo de energia nem as vantagens competitivas de baixos custos. O mundo está avisado de que o país avançará num modelo de crescimento médio de 7% ao ano, elevará o padrão de vida por meio do aumento dos salários, e consequentemente do aumento dos custos. Entre outras coisas, transformará radicalmente os povoados rurais e urbanos, com a construção de 36 milhões de moradias, nos próximos cinco anos, que reduzirá os gaps regionais e eliminará o sistema urbano dual. E criará as condições para um amplo desenvolvimento das micro e pequenas empresas, através do redirecionamento de recursos públicos e da redução e eliminação de impostos.

É com esse propósito que as agências do governo central cortam despesas administrativas, isentam de tributos empresas com baixo rendimento, implementam políticas proativas de emprego, reformam o sistema de investimento e reduzem o número de instituições governamentais através de sua transformação em empresas que elevem a capacidade produtiva. Esse conjunto de medidas exige a simplificação radical da governança e a descentralização do poder, de modo a agilizar a aprovação e a realização de negócios pelas empresas estatais e privadas.

Isso significa transformar as funções do Estado, tendo como objetivo incrementar a criação de novos empregos, facilitar o empreendedorismo, eliminar os procedimentos e inspeções que dificultam a abertura de negócios e estabelecer um mecanismo de emergência de segurança social. Ou seja, a redução do tamanho da administração do governo tem como meta a elevação do desenvolvimento econômico e social e do padrão de vida do povo, a prevenção e a redução das disputas sociais, a estabilidade social e a salvaguarda da segurança do Estado popular.

Em termos estratégicos, as reformas chinesas reafirmaram que ainda é cedo para tornar social a propriedade de todos os meios de produção, circulação e distribuição e descartar o papel do mercado. O Estado continua, portanto, com a função de orientar o mercado e corrigir seus desvios e sua tendência ao caos através das políticas macroeconômicas e da operação concorrencial das empresas estatais.

Em resumo, ao contrário do que propala Meirelles, países de estruturas políticas e econômicas tão diversas quanto Reino Unido, China e Índia não caminham na mesma direção. A redução do papel e do tamanho do Estado no Reino Unido nada tem a ver com a abertura financeira indiana e, muito menos, com as mudanças nas funções estatais na China.

A abertura maior ao setor privado no Reino Unido está totalmente voltada para salvaguardar o sistema financeiro centralizado, à custa do sistema produtivo e das pequenas e médias empresas. Na Índia e na China, essa abertura visa reforçar os pequenos empreendimentos e desenvolver as forças produtivas.

A busca de maior eficiência e produtividade no Reino Unido não passa de uma declaração de intenções. Na Índia, ainda demanda comprovação prática. Na China, vem sendo alcançada pela crescente oferta internacional de produtos de maior tecnologia e pelo aumento dos salários internos.

A concentração estatal na regulação de determinados mercados e na provisão de serviços essenciais, no Reino Unido, tem se resumido a facilitar a vida do sistema financeiro. Na Índia, continua alta em diversos setores, mesmo não estratégicos, tendo em conta o grau de pobreza lá existente, o que torna a regulação dos mercados e a provisão de serviços essenciais uma tarefa de difícil execução universal.

Na China, ocorre em setores estratégicos, mas através de várias empresas estatais que disputam o mercado entre si e também com empresas privadas. A regulação dos mercados combina maior abertura, impedimento da formação de monopólios estatais e privados e crescente observação à elevação do padrão de vida da população e de melhoria e conservação do meio ambiente. E a provisão de serviços essenciais tende para a universalização prática, tanto nas zonas urbanas quanto nas rurais.

Assim, em meio ao turbilhão diário de notícias, o improvável eixo Pequim-Nova Déli-Londres oferece grande lição de política econômica, conforme supõe Meirelles, mas em sentido inverso ao que ele pensa e apresenta. A rigor, visando à situação brasileira, ele tenta vender gato por lebre, induzindo à adoção das políticas que praticou quando esteve à frente do Banco Central – o que, pela legislação que regula o Conar, poderia ser caracterizado como publicidade enganosa.

Wladimir Pomar é membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate