Nacional

Uma reflexão organizada em três momentos: o debate sobre as manifestações de junho, a violência e a paz; a perspectiva da Copa na virada do ano; os rolezinhos
 

Junho decretou seu fim do ciclo político-institucional aberto pela transição da ditadura à democracia, que pode aparecer como aprofundamento democrático ou como explicitação do conteúdo neoescravagista, autoritário e racista da democracia formal brasileira. Para o PT, partido dotado de um histórico de esquerda, isso impõe desafios urgentes

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A classe sem nome se afirma a despeito dos rótulos, nova classe média, classe C...Foto: Marcelo Casall/ABr

A proposta de escrever este artigo surgiu a partir dos debates sobre o movimento de junho de 2013, em ocasião do seminário “Construindo o comum”, em novembro. De lá para cá, aos argumentos e polêmicas sobre as significações do movimento de junho se juntaram dois desdobramentos: a polarização em torno da questão da Copa (entre o #nãovaitercopa e o #vaitercopa) e a multiplicação dos “rolezinhos”. A ambos poderemos juntar a crise da penitenciária do Maranhão e também as prisões de dirigentes petistas na Papuda.

Tudo isso dá ainda mais força e, acreditamos, também desperta maior interesse à reflexão que propomos, organizada em três momentos: o debate sobre junho, a violência e a paz; a perspectiva da Copa na virada do ano; os rolezinhos.

Em junho de 2013 findou-se o ciclo político-institucional aberto pela transição da ditadura à democracia. Sempre governado pelas elites, esse ciclo tinha (ainda tem) em seu cerne o PMDB (por um bom momento foi o PFL e é só ver a trajetória de muitos líderes do PMDB para apreender o funcionamento desse “bloco do biopoder”). Seu marco formal foi a Constituição de 1988 e sua constituição material foi preenchida pela domesticação do “novo sindicalismo”. Junho decretou seu fim, que pode aparecer como aprofundamento democrático (o que o movimento começou a constituir) ou como explicitação do conteúdo neoescravagista, autoritário e racista da democracia formal brasileira (que pode ser o que o governo esteja querendo fazer). Para o PT, enquanto partido dotado de um histórico de esquerda, isso impõe desafios urgentes.

Os ventos de junho continuam soprando: a construção da paz

No debate que se seguiu à palestra do filósofo italiano Antonio Negri, no dia 19 de novembro, entre outras considerações foram colocadas duas questões bem importantes.

Em primeiro lugar, um advogado ativista relatou o comentário surpreendente de um ex-ministro do STF, respondendo-lhe sobre o problema da multiplicação de ações incompatíveis com a Constituição e a democracia mais em geral como forma de repressão às manifestações: “Nunca viu um Estado em guerra (!) respeitar plenamente as Convenções de Genebra”. Em segundo lugar, alguém disse que a violência praticada pelos jovens adeptos da tática black bloc não era um problema moral, mas sim político, e sua dimensão negativa estaria no fato de ter “afastado os manifestantes das ruas e enfraquecido o movimento de junho”.

O interesse dessas duas colocações aparece claramente quando as juntamos e, ao mesmo tempo, as fazemos funcionar pelo avesso, ou seja, na perspectiva que os ventos de junho lhe deram. No que diz respeito à primeira anedota, qual seja a declaração explícita de um alto magistrado de que estaríamos numa “guerra”, é inevitável lembrar o que disse o então ministro da Justiça francês sobre o movimento pela independência da Argélia – e este então ministro era ninguém mais, ninguém menos que o socialista François Mitterrand: “Pra guerra como na guerra” (“À la guerre comme à la guerre”). Ambas as declarações foram de uma rara sinceridade: o Estado e a elite se consideram, sempre que postos em xeque pelas demandas da multidão, numa “guerra” que travam sem respeitar nenhum Estado de direito, nenhuma regra. Claro, é estarrecedor que alguém que até ontem julgava em nome dos princípios constitucionais possa hoje falar tão abertamente e associar as mobilizações de rua a um “conflito armado”. Contudo, o cinismo dessa fala tem um lado interessante: torna explícito o incômodo da elite diante da ameaça democrática.

Esse lado se torna explícito quando o passamos ao crivo da verdade. Com efeito, como qualquer pessoa sã sabe, a guerra não começou em junho. Muito pelo contrário. Trata-se de uma dura e triste realidade que foi se amplificando – como por acaso – junto com o processo de “abertura democrática”. Saímos da ditadura formal e generalizada para uma ditadura de fato exercida contra os jovens, pobres e negros das favelas, das periferias e dos subúrbios. Na ditadura “formalizada” havia uma relação nítida amigo/inimigo, oriunda do mundo bipolar da competição entre os blocos: a guerra (“fria” e “quente”) era travada entre dois modelos. Na ditadura de fato, não se sabe mais quem é o amigo e quem é o inimigo. Na primeira, o conflito tinha uma formulação ideológica e queria ser entre projetos antagônicos, entre duas teleologias: a atual presidenta Dilma era massacrada enquanto “inimiga do Brasil”. Na segunda, o conflito se organiza a partir da proibição de determinadas substâncias (chamadas de drogas ou entorpecentes) e acontece na mais total falta de sentido (a ex-presa política chama os manifestantes que criticam o modelo elitista e neocolonialista da Copa de “sabotadores” do Brasil, transformando o debate democrático em uma “guerra psicológica”). Nas duas ditaduras, tortura-se, mata-se e faz-se desaparecer – inclusive e sobretudo quem deveria estar sob a custódia do Estado.

Paradoxalmente, a ditadura de fato mata, tortura e prende mais do que a outra e não respeita, faz tempo, nenhuma regra de direito e nem sequer de convenção nenhuma. A ditadura formal produzia arquivos (que ainda não foram abertos). A ditadura de fato nem sequer os arquivos de seu horror está produzindo. Nem haverá como abri-los um dia: a ossada do Amarildo nunca foi encontrada. Matando, torturando e roubando, seus atores de elite se tornaram tropa de cinema e “especialista” de TV. Os números dessa guerra são absurdos e ultrapassam as estatísticas de mortalidade dos territórios atravessados por guerras “oficialmente” conflagradas.

Pois bem: nem com esse cinismo escancarado o alto magistrado disse a verdade, pois a guerra sem regras que trata os pobres como o inimigo ocorre há muito tempo. A novidade é o movimento de junho e seus desdobramentos, em particular no Rio de Janeiro, e ela vai exatamente no sentido contrário à segunda colocação mencionada anteriormente. A novidade do levante de junho está não apenas em sua massificação, mas também na determinação que a multidão teve de resistir. Se o estopim da massificação foram os R$ 0,20, o mote geral de uma luta “por uma vida sem catracas” continha muito mais, ou seja uma nova e inesperada capacidade de preencher a “liberdade” de uma nova efetividade. Pela primeira vez houve uma nítida correlação inversa entre o nível da truculência da repressão estatal e a propagação das mobilizações para todas as cidades e todas as periferias. Ousando saber, a multidão não apenas produziu uma nova luz, mas ao resistir soube ousar, dando a essa luz uma significação diferente. A novidade de junho é mesmo a abertura de uma grande brecha democrática, dentro da qual os jovens das periferias e das favelas, juntando-se ao novo alunado superior massificado (mas também precarizado), encontraram uma alternativa potente à guerra insensata que o poder lhes obriga a mover. Não por acaso, a cidade onde o movimento mais se manteve foi o Rio de Janeiro, na qual essa tática – aquela dos black blocs – foi a mais presente e combativa. As ruas ficaram mais mobilizadas, a ponto de a multidão voltar a massificar-se e fechar a Avenida Rio Branco duas vezes, nos dias 7 e 15 de outubro.

Há uma mentira e uma mistificação que foram veiculadas pela grande mídia, dessa vez firme aliada do governo federal (o que deveria fazer todo mundo refletir). A mentira foi dizer que o esvaziamento das ruas se deu por causa da presença de mascarados, quando, na realidade, as ruas se mantiveram firmemente articuladas às redes no Rio de Janeiro, onde os mascarados conduziram as ocupações da Câmara e do Leblon e as manifestações na Alerj e no Palácio Guanabara, durante a visita do papa, até que se construísse esse sincretismo com a greve dos professores, constituindo na resistência o embrião de uma nova institucionalidade, de tipo metropolitano, radicalmente democrática. A mistificação é clássica e consistiu em atribuir a violência aos manifestantes. Contudo, trata-se de uma operação ironicamente difícil: o nível de violência do poder – em particular de seu sistema de Justiça – tornou-se tão grande e explícito que a repressão aos manifestantes não consegue alcançar nível algum de legitimidade.

Na realidade, as manifestações de rua – em particular no Rio de Janeiro –, inclusive a tática black bloc, se constituíram como uma grande brecha democrática, uma potente linha de fuga, fora do regime de guerra e terror que o Estado toca para regular os pobres. Contrariamente ao que o poder, a mídia e até alguns intelectuais de gabinete tentaram dizer, a tática black bloc não se configura como “violência”, mas sim como desconstrução da guerra – da qual falou cinicamente e como um absurdo soldado o alto magistrado –, e isso por meio da construção de experiências de democracia radical. A da resistência praticada nas manifestações do Rio tem uma dimensão ética que envergonha o sistema institucional brasileiro: a tortura, as chacinas, os presídios e sua Justiça injusta. Não houve nenhum tipo de agressão física a pessoas, a proteção foi feita unicamente queimando lixo e lixeiras e as destruições são simbólicas: caixas eletrônicos ou ícones do capitalismo multinacional (ou seja, figuras simbólicas estigmatizadas na retórica da esquerda, inclusive naquela do governo!). No dia 20 de junho, na Avenida Presidente Vargas, manifestantes chegaram a “passear” em cima do “caveirão”, a máquina mortífera da Polícia Militar do Rio que entra nas favelas com sua caveira e semeando o terror. São cenas de libertação sonhadas por milhões de jovens: os mesmos que agora dão um rolê nos shopping centers. Muito raramente foram queimados carros, e sempre “de função” ou ônibus. “Nada”, se comparado ao que as indignações populares fazem e continuam fazendo.

O que os manifestantes afirmaram foi a verdade do poder e aqueles que adotaram a tática black bloc deram coragem a essa fala verdadeira: eles disseram e dizem que, por meio dos megaeventos, rios de dinheiro comum foram, e são, usados para encher o bolso de alguns – sempre os mesmos privados – e hierarquizar ainda mais a cidade; eles dizem que a corrupção do poder não é desvio das regras, mas seu pleno funcionamento; dizem também que é possível lutar: ousar ter a coragem de produzir verdade, isto é, narrar do ponto de vista, e da dor, dos oprimidos.

A verdade diz que o poder não produz nada, a não ser destruição e dor: o poder é vazio, niilismo total. O poder diz, apenas e tão somente, “não!”, sem parar; ter poder é apenas exercer vetos, interditar fluxos que a vida produz. A coragem de dizer essa verdade passa pela desconstrução da violência estatal: cadê o Amarildo? A luta dos mascarados é amor e construção da paz, da única verdadeira paz. Sem rosto, eles são o escudo, a antimilícia da classe sem nome.

(Não) Vai ter Copa?

O futebol é o esporte das multidões pelo mundo. Cria bastarda da aristocracia britânica, tornou-se o desporto dos operários de Manchester e Turim e do Terceiro Mundo, do negro, do mestiço, do excluído e deveio global. Isso não apenas porque mobiliza um sem-número de pessoas em torno de si, enquanto evento, mas porque, em si, abre espaço para n biótipos, n jeitos de sinestesia: do alto ao baixo, do forte ao veloz, mas sempre do múltiplo, de um agenciamento ímpar de ímpares. Futebol é das mais intensas paixões das gentes ao redor do planeta e, não à toa, dos brasileiros: é, pois, das máximas expressões do ócio criativo local, da arte da multidão.

Não à toa, o futebol precisa ser colonizado, capturado, posto em função de algo. Ele prova que o ócio está a favor da vida, e não contra; o ócio não é a morte, ao contrário do que o pai, a escola e o Estado nos dizem. Contra isso, o futebol responde: trabalhe para viver, e não viva de trabalhar, seu neurótico! Seu potencial de magnetização fez com que ele não pudesse ser apagado, sendo primeiro tolerado e depois moldado aos interesses do capital: futebol como prêmio ao dia de descanso do trabalhador, aquele que deve trabalhar todos os dias, bônus para estudante que vai bem nas aulas e por isso pode jogar na hora certa – futebol narrado como outorga no capitalismo industrial e, hoje, como negócio do capitalismo cognitivo.

Mesmo na captura, o futebol mantém abertas brechas que nos permitem pensar: a positividade, a vida, está no ócio; a morte está no neg-ócio, seu antônimo. Essa inversão, um verdadeiro desentendido ontológico, é a própria tentativa de captura, por inversão dos polos, do esporte bretão. Nesse sentido vem a Copa do Mundo no Brasil: desejo das multidões em ver a competição máxima de seu esporte favorito, e o esporte que as favorece, em seu solo comum, mas desejo capturado. Nenhum problema em uma Copa no Brasil: desde que fosse, é claro, uma Copa do Mundo pelo Brasil e uma Copa no Brasil pelo Mundo, mas é justamente o fato de essa oportunidade ter sido jogada pela janela – quando ela existiu – que torna tudo mais grave.

A oportunidade de ver legados como um esporte de base servindo, ao mesmo tempo, de uma educação para o ócio e de uma pré-saúde preventiva, de alguma mobilidade nas metrópoles – ou, no microcosmo –, de ver um elogio à jinga dos corpos e à cultura do ócio, foi abandonada pelos negócios: tudo se tornou o dever infinito de realizar o evento, fazê-lo a qualquer custo em nome da paranoia de ser “civilizado”, “desenvolvido” ou, ao menos, parecer isso diante da “comunidade internacional”. A partir daí, não é espantoso ver um início de 2014 marcado pela paranoia, nas redes e nas ruas, com o anúncio, por parte do governo federal, de uma tropa de choque imensa para conter manifestações, aviões-robô – como os drones americanos – de espionagem e patrulhamento, centrais de flagrante prontas a julgar (e condenar) sumariamente quem sair da linha durante o evento, além das grandes obras públicas – com as terríveis remoções de pobres –, em prol dos poucos proprietários dos espaços urbanos.

No Rio de Janeiro, cidade-sede da final da Copa e da Olimpíada, onde uma orgia de obras suntuosas é realizada, continua faltando infraestrutura básica, a ponto de prejudicar os tais de “negócios” que deveriam ser o “legado” dos megaeventos. A água falta por semanas e é intermitente em favelas e bairros pobres. O saneamento básico não existe em favelas que receberam teleférico faraônico e inútil e as praias turísticas são grandes esgotos. Depois da tragédia do bondinho de Santa Teresa, o trenzinho do Corcovado funciona mal, com filas de quatro horas em meio a um calor infernal. A luz é intermitente em todos os bairros, sobretudo os mais pobres. Os mais chiques e turísticos não fogem à regra e, em janeiro, restaurantes, hotéis e supermercados de Ipanema funcionam com geradores de energia particulares. Os ônibus circulam lotados e em velocidades absurdas – e o próprio Tribunal de Contas do Município não tem acesso às suas contas. Vândalo é mesmo o poder. Essa é a verdade, e só os manifestantes e os black blocs têm a “coragem de dizê-la”. Criticá-lo significa encontrar o jeito de ter essa coragem e não juntar-se ao poder mafioso que vive da mentira.

O “legado da Copa”, a partir daí, passa a ser maior exclusão habitacional, um aparato de espionagem que fica e, a exemplo do STF montado nos anos Lula, pode se voltar contra seus próprios criadores, justa ou injustamente, antes mesmo de se voltar contra a sociedade – é um esporte dominado por oligarcas endinheirados. Mas existe um outro legado, que é o que nos interessa, expresso na forma dos Comitês Populares da Copa, articulados em rede e desde baixo pelo país, e no grito #nãovaitercopa – um “não” que não é como o do poder, mas sim uma afirmação de que é possível acontecer outra coisa além do real, do necessário e do esperado; é um surrealismo político a favor de um porvir de sonhos vivos, no qual as coisas são mais do que aquilo que é pensado pela cabeça do rei, o dito “real”.

Os rolezinhos

Entre o final de 2013 e o início deste 2014, os rolezinhos agitam o país. São flashmobs de multidão convocados nas redes sociais, nos quais jovens da periferia marcam de se encontrar nos shoppings: querem namorar, passear, viver… E fazem isso não por lhes faltar algo – as tais “opções de lazer na periferia” – nem por ser “carentes”, mas pelo que lhes sobra: desejo! Esses jovens são parte, pois, da primeira geração brasileira de excluídos que se sentem autorizados a desejar, que não aceitam o confinamento nos bairros pobres – como em coisas como o fabuloso rodoanel de pobreza em torno da capital de São Paulo – e querem ser felizes imediatamente, e não no além.

Não há como entender o rolezinho sem pensar, conjuntamente, as novas formas de convivência trazidas pelas internet e suas redes sociais e, na outra ponta, a dinâmica da nova composição de classe resultante dos últimos anos. Embora o PT e o governo Dilma não saibam coexistir e cocriar com a vida desejante que produziram, é fato que, mais do que alavancagem financeira, houve um agenciamento desejante potente nos últimos anos, fazendo de uma multidão de resignados gente ativa. Mas tanto a presidenta quanto o partido do governo agem como um Dr. Frankenstein, perseguidor paranoico de sua própria criatura.

A novidade dessa nova composição de classe é uma classe sem nome, incontrolável, indisciplinável e imponderável, pronta a fazer movimentos livres, não homologáveis, a qualquer momento. Ela não vai pedir autorização para fazer o que já é seu de direito. Foi-se o tempo dos salamaleques com o poder. O rolezinho é, pois, o inverso da Copa no Brasil: é o ócio investindo diretamente contra o negócio, tempo livre contra roubo de tempo de vida, ocupação de espaço versus confinamento.

É justamente aí – entre a má consciência da velha esquerda nossa de cada dia, que vê nos rolezinhos uma escravidão ao “consumo”, e a direita, que surta ao ver os bons costumes e a “propriedade” ameaçados – que o fracasso do velho socialismo de Estado e a verdade sobre o capitalismo emergem na prática: o velho bolchevique é, ele sim, o escravo de um empreendimento negocial, só que coletivizado, e a tal economia de mercado não é direito à propriedade ou ao lucro, mas sim forma de controle e roubo de tempo de vida. Fosse o contrário, os rolezinhos seriam aclamados, pois não ameaçariam a “propriedade privada” nos shoppings e poderiam até aumentar-lhes as vendas; mas, no mundo dos negócios, não é disso que se trata, e sim de hierarquia, comando de corpos sobre corpos, mobilidade de uns assentada na fixação de outros, de privação de propriedade, de exclusividade, do meu mando sobre a sua vida. “Socialismo” e “Capitalismo” como formas de poucos terem tempo de vida às custas da negociação, da negativa ao sossego de muitos. O Brasil “pós-junho” nos mostra como o socialismo de Estado e o capitalismo, já como os vimos na relação perversa entre o stalinismo e fordismo, são na realidade as duas faces de uma mesma desrazão: aquela de um “progresso” linear e teleológico que acaba destruindo a própria vida.

Conclusões

Em junho acabou o período de transição que se abriu no fim dos anos 1970, teve seu auge na Constituição de 1988 e seu maior desdobramento nas ambivalências da década de 2000. O potente ciclo constituinte de direitos dos anos 1970-1980, e de efetivação de direitos na primeira década do século 21, não ocorreu sem a mediação do PMDB, a expressão onipresente do cordialismo, do projeto misterioso de Estado e do poder constituído do Brasil – pronto a neutralizar tudo o que for intenso.

Esse esgotamento não contém nenhum determinismo, mas abre uma alternativa: de um lado, o mais provável, é a explicitação das dimensões racistas, totalitárias e demofóbicas da elite: é ao que estamos assistindo nos presídios do Maranhão, nos anúncios do governo (centrais de flagrantes) e leis (de exceção) que estão sendo discutidas para coibir as manifestações democráticas. De outro lado, temos a deflagração de um novo ciclo democrático, a prática de novos modos de existência e novas estratégias de resistência, e 2014 será o teatro desse embate.

O Brasil Maior está em convulsão. Caíram por terra, nos últimos meses, as certezas garantidas e homologadas a partir da verdade transcendente, e prescritiva, das pesquisas de opinião – das quais emanam os rótulos conceituais dos cientistas e filósofos régios –, das políticas de pacificação e do grande consenso político-gerencial com vistas à conciliação entre classes: o acordo entre agressores e agredidos enquanto agressores e agredidos. Esse tripé, aliás, é a própria forma do desenvolvimentismo, a arte de governo pela qual se resolveu dar um jeito nas perturbações à ordem que as políticas do governo federal, nos últimos dez anos, direta ou colateralmente causaram.

As manifestações ocorridas desde o mês de junho por todo o Brasil consistem, não à toa, em um ponto de convergência das diversas lutas em curso no sentido de divergir da ordem imperial global. Na especificidade da realidade brasileira atual, trata-se de um processo de combate contra um projeto de futuro no qual cada um terá seu lugar, mas apenas e tão somente como engrenagem de uma máquina. Antes, no entanto, é preciso relembrar como aqui chegamos.

O processo político que desemboca no governo Lula nasce, em 2002, de uma campanha eleitoral vitoriosa na qual, não à toa, o grande mote era uma falácia: a esperança sobreveio, pela primeira vez, como remédio para o medo que nos impedia de ser felizes. Esperança e medo, todavia, são um par afetivo que jamais esteve desvinculado na modernidade. O discurso hegemônico é, precisamente, que estamos voltados à realização de um futuro necessário, que sujeita assim o aqui-agora, logo mesmo as nossas paixões presentes estão deslocadas; nada de alegria ou tristeza, mas esperança e medo. Fazemos e deixamos de fazer as coisas em nome dessas virtualidades que, ressalte-se, jamais estiveram separadas.

Mas o governo Lula não foi apenas isso. Houve espaço para um lapso de alegria e atualidade, que permitiram, para além dos dogmas de velhos e novos socialismos e do burocratismo do partido e do Estado, um movimento antipoder no poder, que permitiram processos curiosos como a diminuição da desigualdade social – inclusive racial –, o aumento da vida média do brasileiro, o empoderamento dos mais pobres não apenas por políticas salariais, mas também de constituição de biorrendas, como o Bolsa Família ou os Pontos de Cultura, entre outros.

Esse furo nos cânones modernos, de esquerda e de direita, provocado em grande parte por movimentos empíricos e pragmáticos, transformou o Brasil, causando um significativo abalo. É o que chamamos de Ascensão Selvagem da Classe sem Nome: um processo no qual as minorias brasileiras, no contexto do capitalismo global e cognitivo, se afirmaram a despeito de rótulos que buscaram lhes imputar – nova classe média, classe C, e tantos outros – e das convenções de cordialidade cruel que marcam estas terras há tempos. E o efeito pedra no lago igualmente se evaporou: a classe média já não forma opinião dos seus subordinados; os mais pobres passaram a frequentar aeroportos, redes sociais e tudo o mais.

Tudo isso, dentro de uma aliança política entre um partido nascido das revoltas operárias do final dos anos 1970, das pastorais católicas e dos movimentos sociais com, vejamos nós, setores relevantes do empresariado nacional frustrado com os descaminhos do capitalismo brasileiro. Nada revolucionário, pois. Agora, como essa enorme articulação poderia dar conta da balbúrdia inevitável dessas transformações sociais? A partir da colocação dessa questão é que começa a se desenhar a transição que Lula, ele mesmo, coordena de forma centralizada e vertical, um adeus ao lulismo – o plano B do petismo – dentro do lulismo, uma transição coordenada, na forma de sua ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff.

Nesse processo, o que menos importa são as personalidades envolvidas, não existem sujeitos históricos transcendentes, muito menos pessoalmente transcendentes. Mas é preciso indagar como personalidades imanentes ao processo histórico atuaram. E é nesse sentido que em 2011 as ambivalências dos oito anos iniciais parecem, afinal, se resolver na forma dessa nova forma de governança ordeira, cuja grande meta é um país pacífico – ou melhor, passivo – de classe média, no qual o capitalismo científico, abastecido pelos fundos de pensão e gerido tecnicamente pelas melhores mentes, promove o bem-estar da Nação: o “Brasil país de todos” dá lugar ao “País rico é país sem miséria”.

Essa transição coordenada, da revolução política dentro da democracia para a normalidade da nova Pax, à qual o politburo petista não só aderiu como levou a cabo com empenho, foi decidida à distância dos desejos de sua base social e política. Afinal, era para o nosso bem. O progresso demanda ordem; a ordem, sacrifícios, como determina o mantra brasileiro desde o final do século 19. Era preciso pôr as coisas nos trilhos, para que todos pudessem “melhorar de vida” sem abalos, sem soluços. Ele quer o seu carro, sua casa, seus eletrodomésticos, viver uma vidinha calcada nos valores do trabalho.

O próprio par esperança-medo, no momento em que se tornou absoluto, virou vapor diante da ascensão de uma nova virtualidade: a ditadura da segurança, nacional, econômica, social e, afinal de contas, biopolítica mediante a qual já não está em jogo o que podemos ganhar, mas o que vamos perder. O homem de bem demanda, pois, segurança. É o momento no qual vivemos, pois; é aquele no qual o Bolsa Família tornou-se menos importante do que as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) – e as UPPs, por tabela, tornaram-se, assim, um novo modelo possível para a paz verdadeira na exceção permanente própria ao Brasil, como nos aponta a captura, tortura e morte do ajudante de pedreiro Amarildo, na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, recentemente.

Considerar essa transição não se trata, por óbvio, de qualquer tipo de generosidade para com o governo anterior, mas da compreensão da dinâmica própria do dispositivo em curso. Sem o conhecimento do que se passou, em nome de uma filosofia da história que das aparências do presente constrói e arbitra o que se deve lembrar – esquecer – do passado, não é simplesmente possível confrontar o poder na forma determinada na qual ele se manifesta. A transição em curso, que chegou ao momento atual, é muito mais do que mera escolha moral, muito menos algo restrito à conjuntura brasileira atual. Ao contrário, existe aí a manifestação, ela mesma, da modernidade. É o efeito que Orwell tão bem demonstrou, na forma de fábula, em seu A Revolução dos Bichos.

O processo em questão é aquilo que, não raro, se convenciona por Termidor – referência ao mês do calendário republicano instituído pela Revolução Francesa, o qual, por sua vez, diz respeito aos treze anos (entre 1792 e 1805) nos quais daquela revolução surgiu uma nova ordem, com práticas tão velhas. É o momento, ele mesmo, que de um levante plural contra a opressão do velho regime a burguesia tomou conta do processo, ocupando, dali em diante, o lugar da nobreza de sangue como a nova classe opressora. O fim, todos sabemos, é a chegada de Napoleão Bonaparte ao poder proclamando o fim da revolução com o advento da Constituição.

Em uma das mais instigantes páginas da história da filosofia, Antonio Negri, em seu Poder Constituinte, desmontou como ninguém esse fenômeno: ele está na forma como, na modernidade, a revolução é esvaziada pelo dispositivo que separa o poder constituinte e o poder constituído; a revolução, a forma própria pela qual se manifesta o investimento permanente do desejo humano por uma coexistência melhor, é reduzida a mero mito fundador de uma nova ordem, um poder constituído. O poder constituído tem a legitimidade de ter nascido da revolução e, em virtude disso, está autorizado a fazer o que for preciso para efetuar o bem.

A Constituição à qual fez referência Napoleão nada mais é do que um contrato. Um amplo contrato social que vincula a coletividade por inteiro. Nada de novo sob o sol: a burguesia, desde que existe, conhece uma forma possível de resolver seus problemas, qual seja, o contrato. Não é de estranhar, pois, que a ordem burguesa venha acompanhada de um grande contrato que, por seu turno, nos torne, a todos, sócios. É dessa forma que os franceses, sob o impacto dos ideais americanos, dão à luz o Leviatã.

Também não é de estranhar que a nova ordem, por seu turno, repita a velha repressão, uma vez que sua entificação é ungida; logo, sua repressão é uma repressão boa, bem como passa a ser criminalizada a resistência a essa mesma repressão, seja perpetrada até mesmo por velhos revolucionários. Aquela violência libertadora teria, pois, significado apenas na derrubada da velha ordem; agora, sob a nova ordem, mesmo que se repitam as mesmas violências, é preciso ponderar que elas agora são para o bem, o que torna a resistência maléfica. A mesma peça, novo figurino e novos atores – e uma plateia praticamente igual. A metafísica spinoziana, sobre a qual Negri se assenta, não aceita isso: radicalmente imanentista, é inaceitável que velhas relações de opressão sejam toleradas apenas por ser perpetradas por novos atores.

A moral, para variar, é um saber ineficaz para explicar ou combater isso. Não é um mal inerente aos indivíduos que participam desse agenciamento que causa isso. Aliás, leituras moralizantes do processo levam a crer que, se de um lado existem personagens puramente maus, poderiam existir os bons – e é justamente a crença no sujeito histórico transcendente, própria aos voluntarismos, que alimenta esse dispositivo circular. Achar que todos são maus é, por outro lado, o conservadorismo que naturaliza e normaliza esse formidável desastre.

Voltemos, pois, ao Brasil de 2013. Estaríamos repetindo a França revolucionária ou, pior, a Rússia? De certa forma, sim. Existe uma desvinculação de toda a luta constituinte antiditadura, alterglobalista, antineoliberal que o Partido dos Trabalhadores empenhou antes de chegar ao comando do governo e a necessidade de manter a ordem, sustentar a razão de Estado, uma vez governante. Existe um fenômeno historicamente recorrente, que não é, contudo, natural ou inevitável.

Ao se colocar a serviço de uma noção abstrata de progresso e civilização, ou de uma razão de Estado tão pouco concreta quanto, esquecendo justamente a sua maior riqueza, o PT entra, edipianamente, em choque com sua criatura. Como no Frankenstein de Mary Shelley, o criacionismo próprio da cultura ocidental entra em choque com uma particular problemática: ter dado não apenas vida, mas vida desejante a uma colcha de retalhos. É a hora em que Prometheus encontra Édipo. Essa multidão, filha bastarda do lulismo, é a classe sem nome. E ela não tem nome justamente porque se basta a si mesma, não tem nome porque não quer, nem pode, ser objeto de ordens. Não é sujeito histórico transcendente, é um sujeito comum. São todas as minorias, retalhadas juntas e fundidas como uma nova liga, as mesmas que a direita sempre apontou como incapazes, destinadas à tutela do varão branco da Casa Grande, e que a esquerda só defendeu pelo viés da possibilidade de sua civilização. A própria experiência que a defendeu como tal, que defendeu o povão como a razão de ser do Brasil, é aquela que se quedou à ideia de que a classe sem nome deveria, agora, ser batizada e educada para se sentar à mesa da Casa Grande – quando fosse convidada, por certo.

Não à toa, em um mundo no qual uma miríade de movimentos identitários desafia a ordem imperial global, no Brasil o movimento não tem nome. Seu sistema imunológico face às movimentações, ele mesmo, não tem rosto nem bandeira: são os black blocs. A postura de condenação, absolutamente medíocre, é explicada pelo fato de eles não terem rosto. Como se alguém pudesse tê-lo sob repressão. Ou como se o problema fosse uma violência difusa causada pela ação direta, a mesma que o próprio PT jamais condenou em movimentos como o MST. Não possuem rosto, identidade, líderes, existência contínua, são incapturáveis enquanto tais. Com a classe sem Nome, a ortodoxia policial talvez não ajude, mas pipocam os conceitos – prescritivos, todos – dos cientistas régios: nova classe média, classe C, e por aí vai.

O ponto é que mesmo aquilo que possa ser capturado na forma universal da classe média não encontrará, assim, sua passividade: por sinal, uma das novidades que as jornadas de junho trouxeram é que a classe média chegou a seu ponto de saturação. Sim, vândalos. Vândalos num sentido extramoral, movidos todos por uma condição afetiva impossível. O homem médio, de classe média, de gostos médios, escravo da media e das médias escolares e profissionais de desempenho não aguenta mais a sua vida. Tornaram-se, pois, bárbaros! A questão, mais do que a própria ascensão selvagem, é a própria insuficiência do solvente universal que imaginaram. Não é apenas que os jovens da periferia não aceitam mais o destino de sujeição de seus pais e avós, mas o próprio filho da classe média não suporta a perspectiva de uma vida monótona, de festas, viagens e objetos vazios. A aritmética das pesquisas jamais entenderá esse ritmo, como não entendeu nem anteviu, e não adianta falar no quadro em que vivemos como um mero “soluço”.

Paradoxalmente, em uma época na qual os povos nativos do Brasil assistem a uma escalada ímpar de ofensivas contra si, é quando o índio se mostra a fuga para tanto. Não é que eles pertençam a um fora que nos permita fugir do mundo, mas sim porque estão tão dentro quanto nós estamos do Império: sincrônicos à contemporaneidade global e, ao mesmo tempo, suficientemente potentes para resistir à devoração dos homens da máquina capitalista e, ainda, viver sua vida. Na era das grandes obras e contratos, de uma vida toda de trabalho, os índios ousam apenas trabalhar para viver; ócio, em vez de negócio. O devir índio é a própria experiência intensiva de afirmar, vejamos nós, uma outra vida que não a de colaborador de uma colonização de terras, corpos e mentes: ser estrangeiro e desterrado nas próprias terras, estar tomado por um estranhamento capaz de nos mover para fora de qualquer sedentarismo, qualquer zona de conforto. Do mesmo modo que, para Spinoza, conhecer a realidade exigia não somente distingui-la da imaginação, mas também saber imaginar, os índios sabem bem que, para viver, é preciso saber o que é próprio e o que é causado por feitiços, tendo de saber, inclusive, fazer magia.

O capitalismo científico dilmista é o sonho da máquina administrada por um governo técnico de consenso, chefiado por uma hierarquia de burocratas que comandam trabalhadores profissionais, bem alimentados, tecnicamente instruídos, com sua vidinha previsível de classe média, todos juntos operando um patrimônio cuja propriedade está pulverizada na forma de ações – quiçá nas mãos dos fundos de pensão dos próprios trabalhadores; sem luta social, sem greves, sem violência, tudo absolutamente seguro. No fim da linha estão as grandes obras, o domínio de uma hipotética natureza natural – má e negativa – e uma sensação de que está tudo bem movido, por seu turno, pelo grito uníssono de gol da seleção. Esse futuro, no entanto, foi recusado. O problema é justamente o risco de isso acontecer. E os jovens perceberam isso.

Enquanto o Brasil busca se tornar o Primeiro Mundo, o Primeiro Mundo cada vez mais abraça a realidade fraca do Brasil, violento, díspare, inclemente. O Brasil Maior é, antes de tudo, um fraco, pois se ampara nos ricos e poderosos. É a variação fraca do Brasil. O brasil menor é o Brasil dos pobres e das minorias, é a verdadeira potência deste país, daqueles que bastam a si mesmos e aos parasitas do sistema, daquele que copula com o mundo na experiência antropofágica. Esse Brasil, ora silenciado, fez-se ouvir. Enquanto a mesquinhez burocrática e o idealismo perverso do progressismo o ignoraram. Não há mais dúvidas de que esse projeto desenvolvimentista se foi. Defendê-lo agora é tão idealista quanto o idealismo que imputam aos seus críticos, supostos loucos que não se quedam à ,.

A questão deixa de ser, a priori, qual sacrifício precisamos cometer aqui-agora em nome do futuro para tornar-se a ação desesperada em não perder o que se conquistou e, até mesmo, o que se conquistará. Os megaeventos como ponto de honra, de uma honra que não mais há. A partir daqui, já não é possível nos orientarmos por um realismo maior, uma vez que é a própria concepção de mundo de acordo com a cabeça do rei. E as cabeças dos reis são sempre neuróticas, uma vez que a bênção de serem mais legítimas que as dos comuns é acompanhada, não por acaso, da maldição de poderem rolar da pior forma possível a qualquer minuto. Como índios, é preciso nos livrarmos da Lei e do Rei, dos negócios e dos contratos. É preciso embarcar em uma aventura na qual a paz se faz entre homens livres, pelo amor, e não pela falsidade de uma guerra permanente e unilateral. Sem nome, sem rosto: na imanência.

Giuseppe Cocco é professor da UFRJ, membro da rede Universidade Nômade do Rio de Janeiro, autor de MundoBraz: o Devir-Brasil do Mundo e o Devir-Mundo do Brasil (Record, 2009)

Hugo Albuquerque é jurista, mestrando em Direito Constitucional pela PUC-SP, membro da rede Universidade Nômade de São Paulo, editor do blogue O Descurvo