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O golpe de 1964 faz 50 anos, e é possível constatar que a vitória da direita – civil e militar – não significou seu triunfo na batalha da memória

Pelos labirintos tortuosos da história, construiu-se uma memória social crítica, hegemônica nos espaços e instituições sociais e políticas mais prestigiados, gerando ressentimento do lado militar. Claramente perceptível nos inúmeros depoimentos e entrevistas coletados em trabalhos jornalísticos e acadêmicos, essa operação de memória se consagrou entre 1979 e 1994, aproximadamente, e foi dominante até a virada do século 21

Cerimônia de sepultamento de João Goulart com honras de chefe de Estado

2014: A direita viu o Estado consagrar João Goulart, derrotado em 1964. Foto: Marcelo Casall Jr./ABr

O golpe de 1964 faz 50 anos, número redondo que sugere um grande distanciamento em relação aos processos e eventos que culminaram no conhecido desfecho daquela conjuntura política. Em dois dias fatais para as forças de esquerda, 31 de março e 1º de abril, um projeto de país entrou em colapso para dar lugar a outro. Mas a vitória da direita – civil e militar – não significou seu triunfo na batalha da memória. Apesar do seu poder político, suficientemente forte para ser um ator fundamental na própria transição para o governo civil e para a democracia política, os militares se sentiram traídos pela história. O que poderíamos chamar de uma “memória hegemônica” construída na confluência entre valores liberais democráticos e perspectivas críticas de esquerda colocou os militares na berlinda, como vilões da história, afirmando-se sobre o ideal de uma resistência democrática predominantemente civil, disseminada na “sociedade-vítima” do Estado autoritário.

Obviamente, derrubar governos eleitos e instaurar um regime autoritário tem seus riscos, mas é fato que os militares não agiram sozinhos. Muitos setores que posteriormente se afirmarão como parte da “resistência” aplaudiram o golpe de 1964, e não raro também silenciaram diante da brutal repressão contra os opositores mais radicalizados. No entanto, a memória, em meados dos anos 1970, começou a pender para a esquerda. A derrota política desta se transformava em um triunfo simbólico que, sem dúvida, desgastou os então donos do poder. O ano 1979 selou essa perspectiva crítica da memória dominante, ajudada sobretudo pelo colapso econômico que privava os militares de seu único trunfo – o crescimento econômico –, com especial apelo à classe média. Perdida esta, estariam perdidos também os esforços pela legitimação do regime. A partir daí, restou uma longa e negociada transição. Os militares ganharam a impunidade, em nome de uma Lei de Anistia até hoje questionada por muitos, mas perderam prestígio, mesmo entre civis liberais que outrora não hesitavam em bater às portas dos quartéis para manter o status quo social e político.

Para aumentar ainda mais seu ressentimento, a direita militar viu a cena cultural brasileira consagrar os derrotados de 1964, bem como os guerrilheiros que se opuseram ao regime, como reservas morais da Nação e “heróis da resistência”. Mesmo os setores liberais, ancorados na imprensa, em associações civis e em parte do empresariado, não propuseram uma visão radicalmente diferente da história, ainda que nunca tenham endossado a luta armada, por exemplo. Nessa perspectiva que se tornou dominante, a ditadura, sobretudo após o AI-5, era um regime cruel e opressivo, contra o qual a resistência tornara-se não apenas uma opção política, mas um imperativo moral e ético. Mesmo os guerrilheiros passaram a ser considerados jovens idealistas, ainda que equivocados em sua opção armada. O crédito da violência foi todo depositado na conta dos militares e seus agentes policiais, ainda que a memória liberal destaque a existência e o protagonismo do porão incontrolável dos DOI-Codis como o principal responsável pelas torturas. Nessa engenhosa operação de memória, de uma só tacada muitos setores civis liberais se recolocaram como atores políticos fundamentais da transição, autoabsolvendo-se das culpas sobre 1964 e se situando do lado da resistência democrática. Ao mesmo tempo, incorporavam os cacos de uma memória de esquerda, ao chancelar a vigorosa cultura de protesto dos anos 1960 e 1970, sancionar parte das críticas marxistas ao modelo econômico concentracionista e compreender até a ação dos temíveis guerrilheiros de outrora.

Em resumo, pelos labirintos tortuosos da história, construiu-se uma memória social crítica, hegemônica nos espaços e instituições sociais e políticas mais prestigiadas – universidades, imprensa, sistema partidário, circuitos artístico-culturais de elite –, gerando ressentimento do lado militar. Claramente perceptível nos inúmeros depoimentos e entrevistas coletados em trabalhos jornalísticos e acadêmicos, essa operação de memória se consagrou entre 1979 e 1994, aproximadamente, e foi dominante até a virada do século 21.

Mas não é de hoje que as novas configurações políticas da sociedade brasileira vêm causando fissuras nessa memória hegemônica. O símbolo maior dessa nova cena política é a tensão constante entre dois partidos que se consideram os filhos mais ilustres da resistência democrática contra a ditadura, o PT e o PSDB. Ambos, no poder, foram para a direita, em nome da governabilidade. Os resultados dessa guinada, porém, foram distintos em relação à memória do regime. No caso dos petistas, a crítica ao nacional-estatismo e ao sindicalismo oficial que marcaram os primeiros anos do partido se arrefeceu, com implicações profundas na compreensão do quadro pré-golpe de 1964, absolvendo Jango, Getúlio e companhia dos pecados do populismo. No caso dos tucanos, a ida para a direita levou consigo boa parte da classe média que se considera órfã do Estado e “vítima” da corrupção. Isso deu nova força a seu velho elitismo e ao desgastado liberalismo de corte oligárquico que em alguns casos flerta abertamente com opiniões espúrias de extrema direita e de ódio social aberto. Basta ler algumas colunas de jornais e comentários de internautas.

Esse processo teve consequências indiretas sobre a memória do regime, reeditando uma espécie de versão udenista da história que ganha cada vez mais força no debate público atual. Nessa revisão, o edifício da memória hegemônica começou a rachar, com o afastamento do discurso liberal em relação a seus pressupostos. Como resultado, temos um conjunto de novos elementos de interpretação sobre o golpe e o regime: a ação golpista foi puramente reativa, a esquerda como um todo sofria de déficit democrático (portanto não foi vítima da história), os guerrilheiros não foram heróis da resistência e a volta da democracia se deve mais à “abertura” de cima do que às pressões de baixo. Pegando carona nesse revisionismo ideológico liberal, a extrema direita também saiu do armário. Hoje em dia, muitas vozes públicas não ficam ruborizadas ao dizer que o único defeito do regime foi ter matado pouco, argumento convincente para aqueles que avaliam se um regime é mais ou menos ditatorial pela contabilidade macabra que produz, esquecendo todos os outros aspectos político-institucionais.

Enfim, nesta efeméride de 50 anos, assistimos à virtual implosão do edifício da memória hegemônica calcada nos mitos e verdades da resistência, desenhando um debate rico e complexo que comporta vários atores cuja fronteira não é apenas ideológica, mas também institucional.

Numa direção, o debate se polariza entre a memória hegemônica e o revisionismo ideológico conservador resumidos nas linhas anteriores. Mas há outras perspectivas em jogo. A historiografia acadêmica está produzindo um rico debate, também marcado por uma série de revisionismos, partindo mesmo de historiadores de esquerda, que nem sempre confirmam a memória hegemônica sobre a resistência. Nesse campo, vários trabalhos, ancorados em pesquisas amplas e aprofundadas, vem tentando compreender a complexidade e contradições do regime militar sem necessariamente absolver seu caráter ditatorial. E, por fim, não se pode esquecer de uma linhagem de  memória setorial, com certas dificuldades para se disseminar no tecido social mais amplo, mas com força política e apelo universal, produzida pela luta dos movimentos de direitos humanos e de familiares de vítimas. Esses grupos nunca se sentiram plenamente contemplados pelas tímidas políticas de Estado em relação aos mortos e desaparecidos.

Em meio a esta nova batalha da memória, todos os olhos estão voltados para a Comissão Nacional da Verdade, que caminha pelo fio tênue que une e separa, a um só tempo, a memória e a história.

Marcos Napolitano é professor no Departamento de História da USP e autor do livro 1964: História do Regime Militar Brasileiro (Contexto, 2014)