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Último artigo da série trata do trabalho metódico, consistente, orientado politicamente, da mídia hegemônica para destruir o PT

O fogo pesado contra a presidenta Dilma recrudescerá, à medida que o principal partido de oposição, a mídia hegemônica, sinta que os efeitos da artilharia estão provocando reflexos, nem que lentos, na popularidade da presidenta. Uma mídia assim partidarizada é inaceitável

A entrevista de Lula aos blogueiros atiçou a arrogância da mídia hegemônica

A entrevista de Lula aos blogueiros atiçou a arrogância da mídia hegemônica. (Foto: Ricardo Stuckert/Instituto Lula)

Concluo aqui. Digo duas ou três palavras. Não foi por acaso que iniciei esta série com o episódio do suicídio de Getúlio Vargas. Uma leitura me impactou de modo muito especial, me emocionou: o texto de Flávio Tavares – “Getúlio, Rio, mar e lama”. Segundo capítulo do livro O Dia em Que Getúlio Matou Allende, vai da página 31 à 98, leitura indispensável a quem queira compreender aqueles dias.

São muitas as tragédias daquele agosto de 1954. Não só pela coragem de Getúlio – sempre resisti a qualquer subestimação quanto ao suicídio em algumas circunstâncias. Tenho discutido isso neste ano de lembranças dos cinquenta anos do golpe militar de 1964. Aqueles que na resistência à ditadura se suicidaram o fizeram num gesto de coragem, não de covardia.

Getúlio tinha a exata dimensão de seu gesto, sabia ser uma atitude política, a única possível para abortar o golpe em andamento. Ele, na solidão, toma a decisão surpreendente.

A carta-testamento evidencia a clareza do ator político. Tudo pode ser dito, vá lá, de um ângulo psicanalítico, análise descartada aqui, por impróprio para os limites deste texto. É inegável, no entanto, a coragem presente no gesto, a convicção quanto ao significado histórico, a “vingança” absolutamente inesperada face a seus algozes, quaisquer fossem.

A correlação de forças se alterava com o gesto. Sair da vida para entrar na história, como registraria no texto inesquecível, memorável, preciso em seu vaticínio.

Tinha noção do impacto do gesto.

No íntimo, Getúlio certamente carregava a convicção de que o sangue derramado levantaria o povo, o levaria às ruas, enfurecido, em busca de seus algozes. Como ocorreu. Conhecia o povo brasileiro.

O golpe foi adiado por dez anos.

Mas, a mim, impressionou-me outra característica daquele momento – as manobras golpistas eram conduzidas pela mídia de então, a mesma mídia que vai reincidir e ser vitoriosa em 1964. Identifiquei um DNA golpista bastante anterior aos dias atuais.

E me impressionou também a tragédia pessoal de um jornalista – Pompeo de Souza, cérebro e mentor principal da “República do Galeão”, onde o golpe, à guisa de apurar a morte do major Vaz, caminhava a passos largos. Tratava-se de transformar o atentado que resultou na morte do oficial da Aeronáutica “em motivo para uma modificação política”, como confessou o coronel Adhemar Scaffa Falcão, que conduzia o inquérito, trinta anos depois daqueles acontecimentos, ao historiador Hélio Silva.

Pompeo de Souza acampou na “República do Galeão”, e de lá orientou toda a operação midiática destinada a criar o cenário favorável ao golpe. Chefe de redação do Diário Carioca, foi repórter, pauteiro, chefe de reportagem, ideólogo de todas as manobras golpistas, aceito pelo restante da mídia, que acolhia tudo o que saía daquela inusitada república golpista.

Quase o vejo diante do espelho, barbeando-se, e a notícia vinda pelas ondas do rádio, e a reação, o choro convulsivo, descontrolado, a vida passada a limpo, e ele, no momento mesmo em que as lágrimas inundavam seu rosto, sentia sumir para sempre em seu coração qualquer raiva contra Getúlio. A catarse veio com a navalha na carne.

Getúlio não era o covarde que ele e Lacerda haviam construído. Tomava consciência disso no exato momento do passar da navalha ao ouvir a notícia.

Chorava de raiva de si próprio.

Contou isso a Flávio Tavares.

Era um homem íntegro, e acreditava fazer o bem ao combater o getulismo. Tavares o define como respeitado, correto e moderado. Católico e filiado ao Partido Socialista. Difícil pensar nele, com tal perfil, envolvido na tarefa antigetulista, cumprida com rigor e consciência até o momento do tiro no coração. Será senador em 1986, eleito pelo PMDB, ao lado de forças políticas próximas ao ideário getulista.

O suicídio do adversário foi sua Estrada de Damasco.

O antigetulismo fora uma “ideologia” plantada na sociedade brasileira, ao menos em parte dela. E a plantação, por obviedade, fora feita por uma mídia raivosa, inconformada com a presença do getulismo na cena brasileira, especialmente contra aquele novo Getúlio nascido das urnas em 1950, pronto a prosseguir um projeto ousado de nação, industrializante e, de alguma forma, preocupado com as reivindicações dos trabalhadores, um governo determinado a melhorar as condições de vida do povo, ao menos do proletariado urbano.

Um governo reformista. Não, com esse projeto reformista, ou com quaisquer outros vindouros, a mídia não concordava, e não vacilou em manchar as mãos de sangue para tentar contê-lo. Nesse caso, deu com os burros n'água. Em 1964, participará decisivamente da articulação e concretização do golpe que mergulhou o país numa noite de terror por 21 anos. Nesse caso, podia considerar-se vitoriosa.

Penso no drama pessoal de Pompeo de Souza, testemunhado por Flávio Tavares, em seus conflitos de consciência, vividos depois do suicídio de Getúlio. Soube recompor-se e situar-se no leito democrático. Quantos jornalistas hoje filiados ao combate sem trégua ao projeto político em andamento no Brasil teriam a dignidade de rever suas posições nos dias atuais? Não creio existirem. Não são capazes de passar a navalha na carne.

É quase cômico, não fosse trágico, ler autocríticas envergonhadas, tímidas, da mídia hegemônica por ter apoiado, colaborado, construído um regime de terror e sangue, a ditadura militar implantada em 1964. Tanto o editorial de O Globo, de 2013, quanto o da Folha de S.Paulo ficaram a meio caminho, e terminam rigorosamente por justificar a ditadura, muito longe de dizer erramos com todas as letras e pedir perdão ao povo brasileiro por terem sido cúmplices ativos da ditadura. Como disse Mino Carta, no editorial publicado por Carta Capital de 11 de setembro de 2013, o editorial de O Globo, pretensa autocrítica, é “obra-prima de tibieza, hipocrisia e mediocridade”.

Por tudo isso, pela hipocrisia e mediocridade, pela continuada defesa dos privilégios seculares que ainda nos atormentam, não vimos e pelo visto não veremos na mídia hegemônica quaisquer gestos como o de Pompeo. Repórteres, colunistas, pauteiros, editores navegam no antipetismo com muito gosto, dando à sociedade brasileira a sensação de oscilarem entre o objetivo político e o gozo sádico – isso ficou muito evidente no processo da AP 470, impropriamente denominado “processo do mensalão”, quando a mídia hegemônica condenou os réus previamente, pouco se importando com a verdade dos fatos.

Ostensivamente, deliciou-se com a perversidade cometida contra os réus, particularmente contra José Genoino e José Dirceu. No momento em que escrevo, Dirceu cumpre ainda pena em regime fechado, contrariando decisão do julgamento draconiano a que foi submetido, que o condenou em regime semiaberto. E Genoino, que estava em prisão domiciliar por conta de cardiopatia grave, foi devolvido ao presídio da Papuda, coincidentemente no 1º de Maio, um feriado, tal como a prisão deles fora decretada noutro feriado, 15 de novembro. São decisões que reclamam auxílio da ciência política, mas não dispensam, por obviedade, o concurso da psicanálise.

No final de abril passado, numa visita de parlamentares da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal ao Presídio da Papuda, onde Dirceu cumpria pena em regime fechado mesmo que condenado ao semiaberto, a mídia, longe de lembrar dessa ilegalidade, deu voz a dois parlamentares da oposição, que consideraram privilégio ter uma televisão na cela. Ou chuveiro quente, notícia falsa. Ou um micro-ondas, notícia falsa. E fossem verdadeiras? A posição da mídia é que prisão deve ser sempre uma tortura.

Voltando ao centro de nosso tema: há um trabalho metódico, consistente, orientado politicamente, para desgastar o PT. Melhor, para destruí-lo. A pretensão é eliminá-lo da cena política brasileira pelo simples fato de que o projeto político em andamento, hegemonizado pelo partido, mudou a composição de classes de nossa sociedade, ao fazer ascender milhões à condição de cidadãos. É um discurso único, sem fissuras. E, nesse momento, o discurso visa construir um sentimento de ódio contra o PT, justo o partido que hegemonizou o maior processo de mudanças que o país já experimentou.

A par disso, a mídia trabalha conscientemente no sentido de criar um clima de pessimismo no país, desconhecendo o fato inegável de que o Brasil é um dos poucos países do mundo que souberam enfrentar a crise econômica iniciada em 2008, ao garantir o emprego da classe trabalhadora, ao não permitir que o mundo do trabalho pagasse o preço de tal crise, como obviamente ocorreu na Europa, por exemplo.

Vai construindo o clima de que “tudo vai mal” – mesmo que os dados apontem o contrário, mesmo que o emprego esteja em seu melhor nível na história (ao menos no momento em que escrevo), que o salário mínimo tenha experimentado ganho real superior a 70% nos anos dos governos petistas, que milhões de brasileiros tenham ascendido a melhores condições de vida por conta das políticas públicas desenvolvidas pelo governo brasileiro nos últimos onze anos. A realidade, ah, pouco importa. O que interessa à mídia é construir, pela ação cotidiana, persistente, um cenário pessimista que facilite o caminho das oposições conservadoras, às quais está intimamente ligada.

No início do governo Dilma, houve uma tentativa de louvar a presidenta, dada como aquela predestinada a consertar o “legado negativo” de Lula. Pretendia, a mídia hegemônica, provocar fraturas entre o ex-presidente e ela. Não conhecia Dilma. Não conhecia Lula. Nem sequer tinha noção de que se trata de um projeto político, e não apenas de personalidades. Quando se deu conta da impossibilidade de separá-los, a velha mídia investiu duramente contra a presidenta, em especial pelo fato de na primeira fase de seu governo ter começado a baixar os juros, política que abandonou, quem sabe, exatamente pelo ataque cerrado a que foi submetida, como o é até hoje.

Distribuem-se críticas a Lula e a Dilma, indistintamente. Críticas emanadas de seus colunistas e do material de reportagem, pouco importando, como sempre ressalto, a materialidade dos fatos, pouco importando a realidade.

A mídia brasileira, desde os anos 1950, recorte sobre o qual me debrucei nesta série, tem uma clara posição política conservadora, alinhada com as teses da direita, com a defesa de privilégios, e por isso mesmo nunca admitiu, como já dito, governo algum que tendesse a promover reformas a favor dos mais pobres. Queria eliminar o getulismo. Quer eliminar o petismo. Ela é a expressão contemporânea do ideário da casa-grande.

O antigetulismo e o antipetismo, construídos pela mídia, são irmãos siameses. São a continuada reação termidoriana diante de qualquer tipo de transformação política à esquerda, tímida que seja. E se nos anos 1950, quando houve a tentativa golpista contra Getúlio, e mesmo em 1964, quando participa da deposição de Goulart, a mídia era fundada principalmente nos meios impressos e radiofônicos, hoje é, sobretudo, baseada num impressionante e complexo aparato eletrônico audiovisual, com destaque para a televisão. O mundo impresso, em franca decadência.

O poder de fogo da mídia atual em construir cenários se ampliou desmesuradamente. E maior ainda se torna, se houver, como há, uma unidade de pontos de vista por parte do reduzido número de famílias que detém a propriedade dos principais meios de comunicação, monopólios e oligopólios.

Como já o disse em diversos momentos neste conjunto de textos sobre a mídia, esta atua como um partido político. Inegavelmente, constitui-se atualmente no principal partido de oposição, e nem aspas cabem aqui – é a pura expressão da verdade. Fosse o caso, poderíamos lembrar o que disse o presidente Barack Obama, dos EUA, ao referir-se à Rede Fox como um “partido político de oposição”. Poderíamos recorrer a Gramsci, qualificando os jornais italianos do início do século 21, em seu conjunto, como um partido político. Ou Octávio Ianni nominando a grande mídia como “Príncipe eletrônico”. Não creio necessário estender-me, dadas as evidências.

No momento em que escrevo, constrói-se o escândalo da Refinaria de Pasadena, não importa seja requentado, tenha acontecido muitos anos antes. Da cozinha da mídia hegemônica brasileira, do caldeirão midiático sai o que interessa ao combate político contra o projeto político atual. Thompson (2000) escreveu um clássico sobre o escândalo político, sobre como o escândalo tornou-se um fenômeno absolutamente usual na cena contemporânea. Creio, no entanto, acrescer à compreensão geral desse fenômeno a contribuição singular da mídia brasileira: há uma nítida, inequívoca seleção dos escândalos.

Estes, se provenientes de personalidades políticas do PT, não importando o que de verdadeiro exista, devem ser potencializados ao máximo e permanecer por longo tempo nas manchetes, com o maior número de suítes possíveis. Não se trata, portanto, apenas de uma tendência geral da mídia à utilização do escândalo como motor da existência da era midiática. No Brasil, com sua partidarização escancarada, com a evidente posição política de direita encarnada por ela, há uma claríssima hierarquização do escândalo. Há muitos episódios merecedores de manchetes, com fatos à mão-cheia, sobre os quais se joga o manto do silêncio simplesmente porque atingiriam forças políticas alinhadas com o partido midiático.

Estão certos os pesquisadores Jeffrey M. Berry e Sarah Sobieraj (2014 apud BENSON, 2014) ao qualificar a mídia atual como a “indústria do ultraje”, que teria tornado ultrapassadas as regras civilizadas que, na opinião deles, regiam outrora o debate público. Essa “indústria do ultraje”, no entanto, no caso brasileiro, tão em voga, tem endereço, e não recai indistintamente sobre todos os atores políticos. Ela dirige sua artilharia para a destruição de políticos vinculados ao projeto político hegemônico em curso no Brasil, e não a quaisquer atores políticos.

Se existe o trabalho cultural e ideológico da mídia em desqualificar a política, e existe, é para afirmar o conceito de que cabe à mídia a função também de representação política, malgrado sem nenhum voto para tanto. Qualquer estudo recente, de 2003 para os dias de hoje, para além dessa disputa pela representação, política, revelará que escândalos foram construídos e que alvos perseguiam, e, também, a imensa zona de silêncio que cobriu outros tantos, guardados a sete chaves pela mídia hegemônica. Em relação a estes, às vezes se levanta a ponta do tapete. Só a ponta, no entanto.

O fogo pesado contra a presidenta Dilma, evidente nos dias que escrevo estas linhas finais, longe de diminuir, recrudescerá. À medida que o principal partido de oposição, a mídia hegemônica, sinta, como vem  sentindo, que os efeitos da artilharia estão provocando reflexos, nem que lentos, na popularidade da presidenta, a tendência é o recrudescimento do ataque, e isso poderemos constatar na sequência – e gostaria muito de estar errado. Uma mídia assim partidarizada é inaceitável.

Por tudo, constitui um risco à democracia essa mídia fortemente concentrada nas mãos de poucas famílias. Concentrada, partidarizada e desregulada. Não há uma legislação capaz de colocá-la sob o jugo da lei, apenas isso que seja, pretensão simples em Estados democráticos. Tampouco de garantir o direito à comunicação, sonegado simplesmente porque somente um seleto grupo oligárquico dita o que pode ser conhecido pela população, e segundo sua específica interpretação.

Não há fatos em estado bruto postos à disposição do jornalismo – há sempre uma construção simbólica deles, uma particular interpretação, a construção social da realidade. Há sempre um jogo político da mídia hegemônica, consciente ou inconsciente. No caso brasileiro, absolutamente consciente, e desde muito longe. Nossa mídia nunca deixou de ser um ator político.

Contra Getúlio. Contra Juscelino. Contra Jango. Conivência com a ditadura. Criou as condições para a eleição de Collor. Defenestrou-o quando não servia mais aos seus interesses. Enamorou-se de Fernando Henrique durante os oito anos de mandato. E nunca descansou um único dia de combater o projeto político iniciado em 2003, com a posse de Lula. Dilma, no momento em que escrevo, recebe um impressionante bombardeio cotidiano, sem que haja preocupação alguma com a veracidade dos fatos.

Inegavelmente, a sociedade brasileira está diante de um desafio essencial: democratizar a mídia. É um desafio político, e não se pode postergá-lo indefinidamente. Mas não creio possa ser enfrentado senão pelo caminho da mobilização das forças políticas e sociais verdadeiramente interessadas em dar um significativo passo adiante na afirmação da democracia em nosso país. A mídia hegemônica, com sua natureza profundamente conservadora, elitista, defensora de privilégios, é um sério obstáculo à democracia, sempre se coloca contra ela, se a pensamos substantivamente.

Trata-se de definir o que pretendemos, porque a cada momento em que isso é dito os monopólios midiáticos colocam todo o seu arsenal discursivo para dizer que regulação é censura. Nós insistimos: somos os maiores defensores da mais ampla liberdade de expressão da sociedade brasileira. Fizemos isso quando da ditadura. E agora lutamos por uma mídia diversa, capaz de expressar os mais diferentes mundos culturais desse Brasil continental.

O povo brasileiro sofre interdições cotidianas, limitações em sua liberdade de expressão, ao se encontrar impossibilitado de ter à mão meios de comunicação capazes de expressar seus mais variados pontos de vista, oriundos de tantas e tão diversas expressões culturais. E políticas, por que não?

As tentativas de interdições, de censura, provêm da mesma mídia hegemônica que acusa o campo democrático e progressista de querer fazê-lo. Seja pela específica interpretação que faz dos acontecimentos, sempre na linha conservadora mais extremada, seja pelo silêncio em torno de fatos que na opinião dela não devam ganhar o terreno público, seja pela censura direta ordenada pelos poderosos managers das redes, a mídia hegemônica intervém limitando o debate, impondo o silêncio ou censurando mesmo. Quer algo mais escandaloso do que o episódio recente sobre a entrevista que o ex-presidente Lula concedeu no primeiro semestre de 2014 aos blogueiros progressistas?

Considerada a impressionante repercussão alcançada pela entrevista, certamente inesperada para a mídia hegemônica, sempre arrogante, ela botou o reportariado atrás dos jornalistas que participaram do encontro, a pretender, com suas perguntas inquisitoriais, desqualificá-los, querendo presunçosamente fossem estranhos ao meio, não fossem profissionais. O jornal O Globo foi o ponta de lança da operação. Fez perguntas assemelhadas a um inquérito policial.

Foi brigar com quem não conhecia – recebeu respostas duríssimas de vários deles, sem vacilação, confrontando a arrogância e defendendo o direito a outra visão, múltipla, do Brasil. Tais respostas demonstraram o quanto aqueles jornalistas respeitavam o ex-presidente, combatido cotidianamente pelas famílias controladoras da mídia hegemônica. O respeito não impediu fosse Lula questionado sobre todos os assuntos, inclusive aqueles pautados pela mídia hegemônica, e a tudo respondeu sinceramente.

O Brasil é talvez o único país do mundo onde o ex-presidente é combatido como se no poder estivesse. Também a ele querem destruir, eliminá-lo da cena política. A mídia dominante acha que pode tudo. Não pode. No entanto, não deve ser subestimada.

Quando se fala em regulação, a mídia quer fazer acreditar que tal pretensão não encontra acolhida nos países democráticos. Como explica Franklin Martins, no prefácio ao livro Para Garantir o Direito à Comunicação, recentemente lançado, as sociedades democráticas nunca se esquivaram de enfrentar o problema, e todas têm legislações a regular os meios de comunicação, especialmente televisão e rádio, objetos de concessão por parte do Estado.

Nos EUA, a regulação é principalmente econômica – é proibida a propriedade cruzada. Com isso, grupos de comunicação não podem possuir simultaneamente emissoras de televisão, emissoras de rádio e jornais numa mesma cidade ou estado. Uma política destinada a favorecer a diversidade de meios à disposição da cidadania.

Em países como Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Espanha e Portugal, a regulação não se limita apenas à vedação da propriedade cruzada. TVs e emissoras de rádio têm de observar princípios: a busca do equilíbrio e da imparcialidade, o respeito à privacidade e à honra dos cidadãos, a garantia de espaço à cultura nacional e às produções locais. Tudo isso é assegurado pela presença vigilante de agências reguladoras. Em caso de excessos, o direito de resposta deve ser exercido rapidamente, em espaço proporcional ao agravo. Um autoritarismo completo, certamente argumentaria nossa mídia.

Nesse livro, organizado por Venício A. de Lima, expõe-se a Ley de Medios argentina, o Relatório Leveson (Inglaterra) e o HGL da União Europeia. A lei argentina, aprovada em outubro de 2009, em substituição a um decreto-lei da ditadura militar, de 1981, estabelece que nenhum dos três setores prestadores de serviços de comunicação audiovisual – de gestão estatal, de gestão privada com fins lucrativos e de gestão privada sem fins lucrativos – poderá controlar mais de um terço das concessões, só outorgadas agora por um prazo máximo de dez anos.

Lima afirma que, com isso, impede-se a concentração da propriedade e garante-se a liberdade de expressão de setores antes excluídos do “espaço público da mídia” – povos originários, sindicatos, associações, fundações, universidades, ou seja, entidades privadas sem fins lucrativos. Garantem-se cotas de exibição para o cinema argentino, para a produção independente nacional, para o fomento à produção de conteúdos educativos e para a infância, e o acesso à transmissão de eventos esportivos.

Novas concessões e renovações terão de enfrentar audiências públicas. Uma Autoridade Federal de sete membros e um Conselho Federal de quinze integrantes zelarão pelo cumprimento da lei. Tudo isso foi sacramentado em 29 de outubro de 2013 pela Suprema Corte argentina, que declarou a constitucionalidade de todos os artigos questionados pelo Grupo Clarín, que detinha mais de 240 licenças de TV aberta e TV a cabo. Enfim, consagra-se a liberdade de expressão na Argentina, consequência de uma iniciativa governamental impulsionada por amplas mobilizações da sociedade do país vizinho.

O Relatório Leveson responde às inquietações da sociedade inglesa diante dos crimes cometidos especialmente pelo grupo Murdoch, com o grampeamento de telefones sem nenhuma base legal, à semelhança do que aconteceu no Brasil no caso de Carlinhos Cachoeira articulado com a revista Veja.

Tal relatório deu base para a Carta Régia de outubro de 2013, assinada pela rainha Elizabeth II, criando-se um marco regulatório para a imprensa escrita. Isso mesmo, marco regulatório para a imprensa escrita – repita-se. Isso até agora nem sequer chegou a ser cogitado no Brasil. Estabeleceram-se penalidades duríssimas para os meios impressos que invadirem a privacidade dos cidadãos, desrespeitarem as leis ou usarem de má-fé no tratamento das notícias.

Comprovaram-se práticas criminosas de oligopólios privados protegidos pelo discurso da liberdade de imprensa, com a cumplicidade da polícia e, em alguns casos, com o conhecimento e envolvimento direto ou indireto de políticos dos altos escalões do poder. A principal recomendação do Relatório Leveson, acatada, foi a criação de uma agência reguladora independente e pública, que substituirá a agência autorreguladora Press Complaints Commission.

A nova agência poderá aplicar multas de até 1 milhão de libras (cerca de R$ 3 milhões) ou até 1% do faturamento das empresas midiáticas, adotar medidas gerais para a proteção do cidadão comum, obrigar jornais, revistas e sites com conteúdo jornalístico a publicar correções de matérias e pedidos de desculpa. O novo órgão regulador, amparado por uma Carta Real, só pode ser modificado pela maioria de dois terços nas duas câmaras do Parlamento britânico. Rádio e televisão já são regulados pelo OfCom.

O terceiro documento apresentado pelo livro é um relatório comissionado pela União Europeia, cujo trabalho iniciou-se em outubro de 2011 e foi concluído em janeiro de 2013. Preparado por um grupo de alto nível, o documento denominado “Uma mídia livre e plural para apoiar a democracia europeia” faz trinta recomendações que assustariam nossa mídia hegemônica, entre as quais a introdução da educação para a leitura crítica da mídia nas escolas secundárias, o monitoramento permanente do conteúdo da mídia por parte de organismo oficial ou por um centro independente ligado à universidade e a publicação regular de relatórios a serem encaminhados ao Parlamento para eventuais medidas garantidoras da liberdade e do pluralismo.

Mais: neutralidade da rede, na internet, fundos estatais para o financiamento da mídia alternativa inviável comercialmente e essencial ao pluralismo, existência de mecanismos garantidores da identificação dos responsáveis por calúnias e a garantia da resposta e da retratação de acusações indevidas. E todos os países da União Europeia devem ter “conselhos de mídia independentes” com poderes legais para impor multas e até cassar status jornalístico.

De arrepiar os cabelos de nossa mídia hegemônica, e o pior: vindo da União Europeia, cuja tradição democrática é bastante conhecida. Àqueles países não se pode imputar o rótulo de autoritários. Nossa mídia, desconhecendo tudo o que ocorre no mundo atual, pretende que tudo continue como dantes no quartel de Abrantes. Eppur si muove. “Apesar de você”, no mundo democrático a mídia é regulada, e uma regulação que acompanha a realidade, que se renova permanentemente.

E o Brasil? Para onde vamos? Sem dúvida, tem crescido a consciência em favor da criação de um cenário garantidor do direito à comunicação. Há a mobilização de setores organizados e há a ampliação dessa consciência para populações mais amplas. A I Conferência Nacional de Comunicação, em 2009, foi um momento alto de intervenção da sociedade civil na defesa da democratização da mídia no Brasil. Convocada pelo governo e aberta à participação de organizações da sociedade civil, empresariais inclusive, produziu um rico debate, e não contou com a participação das Organizações Globo, que não aceitam debate algum que fuja ao script determinado por elas.

Entre as reivindicações mais presentes nas manifestações de junho de 2013 estava a de uma mídia sem catraca. Tão forte que a mídia hegemônica não teve condições de cobri-las in loco. Foi obrigada a recorrer às alturas – seja dos prédios em torno delas, seja de helicópteros, seja solicitando às pessoas que enviassem imagens pelos celulares. A população vai se conscientizando da natureza antipopular da mídia hegemônica, embora ainda tenhamos muito que caminhar para que ganhe mais e mais força.

Não é uma luta fácil. Entidades da sociedade civil sabem disso, e lutam por um projeto de iniciativa popular que consiga levar o país a uma legislação democrática e contemporânea. Temos uma das legislações mais defasadas do mundo. O Código Brasileiro de Telecomunicações, de 1962, já chegou a mais de meio século. Não responde a mais nada.

A sociedade civil sabe que o Congresso Nacional, com sua atual composição, e mesmo com a que virá, não aprovaria uma lei de meios que respondesse ao desafio da democratização da mídia. Nosso projeto político, capaz de impressionantes transformações nas condições de vida do nosso povo, ainda não teve forças, nem quis testar se tinha, para levar à frente um projeto contra esse obstáculo à plena democratização do país.

Corrijo: houve um esforço na etapa final do segundo mandato de Lula. O então ministro Franklin Martins elaborou um anteprojeto sobre a regulação da mídia audiovisual, mas não houve tempo para seu envio ao Congresso Nacional. Sob o governo da presidenta Dilma, também não andou. No 14º Encontro Nacional do PT, realizado em São Paulo no início de maio, o ex-presidente Lula, dirigindo-se à presidenta Dilma, disse claramente da necessidade urgente de enfrentar o problema, propondo providências políticas quanto ao marco regulatório das comunicações.

É impossível não localizar na mídia hegemônica uma força política a atuar ostensivamente no combate ao projeto político em curso no país.

Fosse apenas o exercício do jornalismo, nos padrões liberais, e tudo bem. Fosse um jornalismo que obedecesse aos manuais de redação que os próprios meios da mídia hegemônica elaboram, e tudo bem. Não é. E não se trata de qualquer pretensão de eliminar atores políticos, insista-se. E sabemos, como temos insistido, da condição de atores políticos dos dirigentes da mídia.

Não se pretende eliminar nenhuma voz da cena brasileira. Pretende-se é acrescentar vozes. Garantir a expressão da diversidade. Assegurar a livre manifestação do pensamento, a liberdade de expressão. Sob que parâmetros?

Penso num país regido por um marco regulatório da mídia fundado em 13 pontos fundamentais quanto aos direitos à comunicação, desculpem o número 13:

1) Garantia da liberdade de expressão;

2) Respeito ao sigilo da fonte;

3) Nada de monopólios ou oligopólios. Impedir a concentração dos meios de comunicação social;

4) Garantia da complementaridade nas concessões entre o sistema público, estatal e privado;

5) Assegurar o respeito à intimidade, à privacidade, à imagem e à honra dos cidadãos;

6) Garantir o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material e moral à imagem, à honra dos cidadãos;

7) Assegurar que as emissoras de rádio e televisão darão preferência às finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;

8) Meios de comunicação audiovisuais promoverão e defenderão a cultura nacional e as culturas regionais, consideradas as diversidades culturais do país;

9) Assegurar o estímulo à produção independente;

10) Emissoras de rádio e de televisão deverão ser instrumentos de defesa da família, da criança, do adolescente;

11) Meios de comunicação serão instrumento, também, de defesa contra produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente;

12) Meios de comunicação respeitarão a legislação que coíbe quaisquer práticas e discursos racistas e discriminações de quaisquer espécies;

13) Serão proibidas concessões de emissoras de rádio e televisão a pessoas que gozem de imunidade parlamentar e foro especial, como parlamentares e juízes.

Nenhuma originalidade nesses pontos. Todos compõem determinações constitucionais. Quem quiser pode consultar a Constituição de 1988, especialmente os artigos do Capítulo V, da Comunicação Social, do 220 ao 224. Podem e devem ser consultados, no caso de dúvidas quanto a esses pontos, o artigo 5º (inciso XIV, X, V, XLII), artigo 3º (inciso IV) e artigo 54 (inciso I).  Estes complementam os artigos do Capítulo da Comunicação Social, com propriedade. O jornalista e ex-ministro Franklin Martins tem reiteradamente defendido esta posição: nada além da Constituição. Mas a mídia hegemônica, nesse caso, foge da Carta Magna como o diabo da cruz.

Franklin Martins, no prefácio já citado, relembra a gravidade da paralisia do Congresso Nacional quanto ao assunto. Era tal a natureza absurda da situação que o jurista Fábio Konder Comparato impetrou ação de inconstitucionalidade por omissão contra o Legislativo brasileiro, pedindo fosse fixado prazo para a votação da matéria. Três anos passados, e silêncio do STF. Nenhuma disposição para enfrentar o problema.

De fato, considerando nossa base legal, considerando o Estado de Direito, nada mais seguro do que amparar-se na Constituição. Alguns daqueles itens indicam alguma tentativa de censura? Não, obviamente. Os constituintes de 1988 pensaram em meios de comunicação democráticos, que servissem ao povo brasileiro, concessões públicas que se entendessem como tais, e por isso não se admite que um seleto grupo de famílias, que monopólios e oligopólios pretendam, como até hoje, ser os donos da fala no país. Tolher a fala, no Brasil, é vício antigo. O professor Venício Lima me alertou sobre isso em 2011. E me enviou trecho do Sermão da Visitação de Nossa Senhora, do Padre Vieira, de 1640. Vale a pena a citação:

“Bem sabem, os que sabem a língua latina, que esta palavra – infans, infante – quer dizer o que não fala. Neste estado estava o menino Batista, quando a Senhora o visitou, e neste permaneceu o Brasil muitos anos, que foi, a meu ver, a maior ocasião de seus males. Como o doente não pode falar, toda a outra conjectura dificulta muito a medicina. (...) O pior acidente que teve o Brasil em sua enfermidade foi o tolher-se-lhe a fala: muitas vezes se quis queixar justamente, muitas vezes quis pedir o remédio de seus males, mas sempre lhe afogou as palavras na garganta, ou o respeito, ou a violência; e se alguma vez chegou algum gemido aos ouvidos de quem o deveria remediar, chegaram também as vozes do poder, e venceram os clamores da razão”.  (VIEIRA, S.J., Pe. Antônio, 1959).

Até hoje, de alguma forma, persiste a tentativa de tolher a fala do povo brasileiro. É esse o esforço cotidiano de nossa mídia hegemônica. Todo esforço da sociedade civil na luta em defesa da liberdade de expressão não se concentra, para insistir ad nauseam, na eliminação de nenhum ator. Agora, quer, e é correto que o queira, ver a Constituição cumprida.

Na Argentina, houve avanços, os monopólios perderam força. No Equador, da mesma maneira, o setor formulou uma legislação equilibrada para a divisão do espectro eletromagnético: 34% das emissoras de rádio e TV para as comunidades, 33% para os meios privados, 33% para o setor público, tal e qual na Argentina. No Uruguai, projeto de lei foi enviado pelo presidente Pepe Mujica ao Parlamento, e imagina-se seja aprovado brevemente. A América Latina avança. Os EUA já regularam a mídia há muito tempo, a Europa da mesma maneira. E todos o fizeram democraticamente, sob o Estado de Direito. E nós? Até agora, em compasso de espera.

O que se poderia propugnar, e isso me parece muito próprio, e quem sabe acompanhando modelos democráticos argentinos e equatorianos, é a linha defendida por Venício Lima da “máxima dispersão da propriedade”. E não a máxima concentração, como ocorre entre nós até os dias de hoje. O espectro eletromagnético não pode ser um latifúndio ocupado por algumas poucas famílias.

Os movimentos sociais falam em reforma agrária do ar, uma apropriada metáfora. Tal espectro deve ser ocupado pelas mais diversas expressões culturais, sociais e políticas da sociedade brasileira. E para isso, insistindo, basta seguir o disposto na Constituição. Simples assim.

Referências

AZENHA, Luiz Carlos. “Novos leitores: mais uma tentativa de assassinato de reputação”. Disponível em:  <http://www.viomundo.com.br/denuncias/novos-leitores-mais-uma-tentativa-de-assassinato-de-reputacao.html>. Acesso em: 20 abr. 2014.

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CARTA, Mino. “A ingratidão da Globo”. Carta Capital, São Paulo, 11 set. 2013, p. 22/23.

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LIMA, Venício A. de. Regulação das Comunicações: História, Poder e Direitos. São Paulo: Paulus, 2011 (Coleção Comunicação).

TAVARES, Flávio. O Dia em Que Getúlio Matou Allende e Outras Novelas do Poder. 6ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.

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VERÓN, Eliseo. Construir el Acontecimiento: los Medios de Comunicación Massiva e el Acidente de la Central Nuclear de Three Mile Island. 2ª ed. Barcelona: Editorial Gedisa S.A., 1995.

VIEIRA, S.J., Pe. Antônio. “Sermão da Visitação de Nossa Senhora”. [1640]. In:_____. Obras Completas de Pe. Antonio Vieira: Sermões. Porto: Lello & Irmão Editores, 1959 (v. III, tomo IX).

Emiliano José é professor-doutor (aposentado) em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia, jornalista, escritor e integrante do Conselho de Redação de Teoria e Debate