Economia

Amir Khair e Financial Times desdenham a realidade do capitalismo brasileiro ao transformar dificuldades do governo em fracasso

Para o economista, o governo Dilma teria causado danos irreparáveis à Petrobras e à Eletrobrás por cometer “populismo tarifário” nos combustíveis e nas tarifas elétricas. Ele desconsidera que os investimentos nessas estatais foram retomados apenas no governo Lula e enfrentam entraves neoliberais

Energia elétrica: o populismo tarifário é pontual e mais fácil de consertar

Energia elétrica: o populismo tarifário é pontual e mais fácil de consertar do que a herança neoliberal no setor. Foto: Agência Brasil

Em artigo publicado em 18/5/2014, Amir Khair reuniu os principais bordões do ataque oposicionista ao PT e à presidenta Dilma: a condução da política econômica fracassou; houve piora geral dos fundamentos macroeconômicos, com rombos fiscais e externos; e a credibilidade do país despencou. Suas opiniões coincidem com as do Financial Times. Para esse representante do grande capital internacional, o Brasil não “entregou“ o que dele se esperava. Precisa, pois, de um “choque de credibilidade”. E, “se Dilma Rousseff não o fizer, a eleição (...) de outubro fará”. Mesmo porque as preocupações generalizadas estão “começando a empurrar o debate para uma direção amigável ao mercado (...) uma coisa boa”.

Maria da Conceição Tavares, porém, ao contrário de Khair e do Financial Times, garante que não há desequilíbrio fiscal. Considera exagerado o superávit primário de 1,9%. E sugere que o problema maior é o balanço de pagamentos, porque a desvalorização do dólar está sendo definida pelos americanos, à custa das demais moedas. Algo que Khair e o Financial Times parecem “desconhecer”, ao culpar apenas o Banco Central.

Ambos desdenham a realidade do capitalismo brasileiro e transformam as dificuldades e erros do governo Dilma em fracasso, incompetência e ações danosas. Khair chega a apelar para a intervenção do Tribunal de Contas da União. Para ele, o governo Dilma teria causado danos irreparáveis às duas principais estatais do país, em virtude do “populismo tarifário” nos preços dos combustíveis e nas tarifas elétricas e da incompetência que frustrou o papel estratégico que ambas deveriam exercer.

Desconsidera que a Petrobras é uma das poucas petroleiras do mundo que descobriu grandes reservas nos últimos dez anos. Não sabe que desde 1980 não se construíam novas refinarias no Brasil – o que só foi retomado a partir do governo Lula, para permitir à estatal atender ao aumento da demanda de derivados resultante do crescimento econômico pós-2003. Ignora que levantar refinarias, como as em construção, exige vários anos de projetos e obras. Não sabe que estão em funcionamento nove FPSOs (unidades flutuantes de produção, armazenamento e exportação de óleo e gás), produzindo 150 mil barris diários cada uma, e que a Petrobras contribuiu decisivamente para o soerguimento da indústria naval no Brasil.

Khair também nada diz sobre o Programa Brasil 2014, elaborado pela Eletrobrás nos anos 1980, para a construção de quinze hidrelétricas. Esse programa só foi desengavetado após 2003, enfrentando ainda hoje os restos dos entraves legais do período neoliberal. A rigor, a legislação impede a estatal de se tornar uma empresa realmente estratégica para o desenvolvimento industrial do país. O “populismo tarifário”, embora seja um erro, é pontual e muito mais fácil de consertar do que a devastadora herança neoliberal.

Mas o que importa a Khair é evidenciar os “fracassos”. Ao “fracasso da política econômica” ele agrega o “fracasso na redução da taxa Selic” por falta de vontade. Tânia Bacelar, ao contrário, afirma que Dilma se equivocou ao reduzir a taxa de juros numa situação internacional adversa e sem mobilizar os apoios políticos e sociais necessários. Conceição Tavares também não se furta a criticar as “metas contraditórias” do Banco Central, que eleva os juros para combater a inflação. Mas, para ela, a alta nos juros visa atrair capitais, porque os investimentos estrangeiros não estão crescendo e, dos que entram, metade se destina à divida pública.

Ausência de tributação

O que agrava a balança de pagamentos, porém, é a ausência de tributação sobre remessas de lucros. Portanto, a elevação dos juros se destina a tapar a brecha nas transações correntes, um problema que vem de longe e para o qual não bastam competência e credibilidade. É necessário mexer com a estrutura monopolizada da economia brasileira, algo que Khair nem sequer considera. Como desconsidera que o caos urbano não é apenas fruto dos subsídios a combustíveis e carros. Como Ermínia Maricato talvez já esteja cansada de apontar, tal caos resulta da associação estreita entre a propriedade privada do solo urbano, a construção imobiliária e os monopólios automobilísticos. Em outras palavras, decorre de uma associação de oligopólios que retalham e utilizam o solo urbano a seu bel-prazer, sem levar em conta os interesses de suas populações.

Outro dos “fracassos” destacados por Khair é a queda dos investimentos, também supostamente resultante de incompetência. No entanto, Delfim Netto dá outra explicação para o problema. Ele diz que as contas nacionais dos últimos anos revelaram taxas de investimento próximas de 20% do PIB, em 2010 e 2011, reduzidas em 2013 para 18%. Chama atenção para o fato de o déficit em conta corrente ter aumentado de 2,5% do PIB, em 2011, para 3,6% em 2013, enquanto a taxa de poupança doméstica caiu de 17% para 14%. Sugere, então, que o aumento daquilo que Khair chama de “potencial de consumo” foi financiado pela poupança externa.

Para Delfim, a maior parte do que chama “queda da poupança interna” não teria resultado da redução da poupança familiar, mas da redução do “importante fluxo dos lucros retidos, fundamental para financiar os investimentos”. Ou seja, ao contrário da “fracassomania” generalizada de Khair, Delfim chama de “revolução” o fato de a renda domiciliar per capita dos 20% mais pobres haver aumentado 86%, entre 2002 e 2012.

Mais sagaz do que Khair, Delfim reconhece que aquele aumento de renda dos mais pobres, com redução da desigualdade, só foi possível num cenário de crescimento econômico. E, também mais sofisticadamente que Khair, sustenta que tal redução da desigualdade está atropelando o crescimento, ao diminuir “o fluxo dos lucros retidos”. Isto é, como a média da renda domiciliar per capita dos 20% mais pobres, medida em reais de 2012, subiu de R$ 118,26 para R$ 220,42, ou R$ 102,16, o crescimento do capitalismo brasileiro empacou. Assim, ao contrário de Khair, para quem houve uma “redução insuficiente das desigualdades econômicas e sociais”, Delfim diz que a redução da desigualdade chegou ao limite da capacidade do capitalismo brasileiro.

De qualquer modo, Khair se considera em condições de propor uma nova política econômica, capaz de superar o “fracasso” do governo Dilma. Em primeiro lugar sugere “um plano estratégico de dez a vinte anos”. Ou seja, diz tudo e não diz nada. Um plano desse tipo pode comportar várias estratégias, mesmo estritamente capitalistas. Pode comportar uma estratégia neoliberal, avessa ao desenvolvimento. Pode comportar planos de desenvolvimento como os realizados durante os governos Vargas e JK e os governos militares, nos quais o desenvolvimento econômico foi acompanhado de intensa desigualdade social. Ou pode comportar um desenvolvimento acompanhado de certa redistribuição de renda, como nos governos Lula e Dilma. Ou, ainda, um desenvolvimento de reformas democratizantes no capital e de redistribuição de renda mais intensa do que os R$ 102,16 conquistados pelos 20% mais pobres entre 2002 e 2012, como se espera que seja o plano de Dilma no segundo mandato.

Mas Khair não se importa com tais detalhes e segue em frente. Propõe aproveitar o “potencial interno de consumo” com políticas firmes de renda e redução dos juros, de modo a ter um mercado interno forte e lançar-se no mercado internacional. Mas tanto Delfim quanto Conceição Tavares afirmam que a renda não está caindo. O país continua forte em emprego, salário e renda. O que Delfim reclama é do “fluxo dos lucros retidos”, por causa do aumento da renda dos mais pobres, enquanto Conceição Tavares sugere taxar as remessas de lucros para fechar as brechas nas transações correntes e reduzir os juros.

Portanto, Khair parece não saber do que está falando. Mesmo assim propõe “diversificar o parque industrial” para relançar a economia com “verdadeira inclusão social”. Na verdade, ignora que o “parque industrial” brasileiro, como já disse Luiz Gonzaga Belluzzo, foi “devastado” pelas políticas neoliberais. O problema, portanto, não é de diversificação. Na pior das hipóteses, como diz Conceição Tavares, é preciso “remendar” as cadeias produtivas industriais. E isso, nas atuais condições brasileiras, só pode ser feito através de, pelo menos, três novas políticas: taxa de câmbio administrada em favor da competitividade da indústria, ou do rebaixamento de seus custos e preços; obras de infraestrutura intensificadas pelo Estado, com prioridade para mobilidade urbana, saneamento, saúde, educação, transportes e telecomunicações; mudança radical na forma pela qual o país atrai capitais externos, proibindo capitais de curto prazo e impondo condicionalidades aos investimentos produtivos.

Apesar disso, Khair acha fácil crescer no mínimo 5% ao ano. Segundo ele, isso é possível cuidando secundariamente da meta inflacionária, “o contrário do que fizeram FHC e Dilma”. Ou seja, basta o livre-arbítrio. Para Delfim, no entanto, sem tratar do “fluxo dos lucros retidos”, que alguns empresários chamam de taxa interna de rentabilidade ou retorno (TIR) e outros de taxa de lucratividade, não haverá investimentos. E, sem investimentos, ou com investimentos direcionados para rendas de curto prazo, não haverá crescimento, ou haverá crescimento pífio.

Todos concordam que o Brasil precisa crescer no mínimo 5% ao ano. Mas decretar isso sem especificar as políticas que o tornarão possível é mais uma daquelas propostas ou ações que a mestra Conceição Tavares chama apropriadamente de “patetada”. Aliás, o mesmo termo pode qualificar as propostas de “baixar a taxa Selic ao nível da inflação, para estimular o investimento produtivo” e “usar a inflação como antídoto contra a inflação, reequilibrando preços que subiram e produziram redução do consumo”.

Conceição Tavares opina, com toda razão, que a inflação está em alta por causa dos bens de consumo, como os alimentos. Portanto, não é uma inflação de demanda. E, ao que se saiba, ainda não ocorreu uma redução do consumo, embora alguns façam cálculos econométricos dos bilhões de reais que os trabalhadores da classe C perderão com a inflação, mesmo que esta fique dentro da meta. Na prática, para reequilibrar preços é necessário aumentar a oferta através do aumento da produção, tanto de alimentos quanto de bens de consumo corrente, ou não duráveis.

Propor uma política forte de “abastecimento por estoques reguladores”, “estímulo à aproximação entre produtores e consumidores” e “redução dos atravessadores”, sem tratar, antes e concomitantemente, do aumento da produção de alimentos e não duráveis, não passa de outra generalidade – que numa campanha eleitoral pode ter algum efeito sobre desavisados, mas não pode ser aceita como coisa séria. Para ser franco, torci para que o título do artigo de Khair, “Por uma nova política econômica”, representasse uma montanha de propostas consistentes para as novas mudanças que o Brasil necessita. A montanha, porém, apenas pariu um rato esquálido. É uma pena, desesperançada.

Wladimir Pomar é escritor e membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate