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É preciso ficar atento aos recursos em educação: a União contribui com cerca de 25% do total, enquanto estados e municípios são responsáveis por cerca de 75%

O PNE abarca desde a educação infantil até o ensino superior, a valorização dos professores com carreira e salários na média das outras profissões de nível superior, a educação especial e os 10% do PIB para a educação pública. Tudo isso agora consta de lei, mas é preciso que a sociedade se envolva profundamente nesse processo, acompanhe a implementação das metas e suas estratégias

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Ainda há muita intolerância nas escolas em relação a questão racial, de gênero, regional. Foto: Wilson Dias/ABr

O Plano Nacional de Educação (PNE) entrou em vigor no dia 21 de junho de 2014, quando foi sancionada pela presidenta da República a Lei nº 13.005. Suas dez diretrizes apontam para a erradicação do analfabetismo, a universalização do atendimento escolar, a superação das desigualdades educacionais com a promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação, a formação para o trabalho e a cidadania com ênfase nos valores morais e éticos em que se fundamenta a sociedade, a gestão democrática da educação pública, a valorização dos profissionais da educação, a promoção humanística, científica, cultural e tecnológica do país. Além disso, estabelece um percentual do PIB para a educação pública de tal modo a atender às necessidades de uma educação de qualidade.

Nas vinte metas que traz, com as respectivas estratégias para alcançá-las, o PNE abarca desde a educação infantil até o ensino superior, a valorização dos professores com carreira e salários na média das outras profissões de nível superior, a educação especial e os 10% do PIB para a educação pública. Paralelamente, foi aprovada a destinação de 75% dos royalties do petróleo e 50% do Fundo Social do pré-sal para a educação (Lei nº 12.858/13).

Não há dúvida de que são metas decisivas para serem alcançadas nos próximos dez anos. Entretanto, é fundamental que estados e municípios elaborem seus próprios planos decenais de educação e tenham participação ativa na articulação de um regime de colaboração entre os três níveis de administração pública, na perspectiva da construção de um Sistema Nacional de Educação responsável pela articulação entre os sistemas de ensino para efetivação das diretrizes, metas e estratégias do PNE. O Sistema Nacional de Educação será instituído por lei específica, no prazo de dois anos.

Embora a promulgação da lei do PNE seja de fundamental importância para o país, essa condição não é suficiente para o avanço da educação. É preciso que a sociedade se envolva profundamente nesse processo, acompanhe de modo detalhado a implementação das metas e suas estratégias, para garantir que, ao final da década, todos os objetivos sejam atingidos.

É importante lembrar que não há apenas uma concepção de educação, assim como o significado de qualidade da educação possui mais de uma interpretação. A educação precisa ganhar qualidade social, isto é, deve ser capaz de atender às necessidades da grande maioria da população e estar articulada e indissociada de três diretrizes fundamentais: democratização do acesso e garantia de permanência, democratização da gestão e construção de referenciais de qualidade que sejam capazes de trabalhar a cultura local na ótica da ciência e da cultura universalmente produzidas. A interdependência entre essas diretrizes pode e deve garantir que a passagem pelo processo educacional não seja apenas um rito formal, mas propicie uma verdadeira apropriação de conhecimentos, permitindo aos estudantes autonomia para aprender a aprender.

Para que a escola possa construir e difundir conhecimentos e elaborar seu projeto educacional, pelo menos duas questões têm relevância: a primeira diz respeito ao fato de que educadores e alunos devem ter acesso à produção científica, tecnológica, filosófica e artística da humanidade. A segunda se refere à necessária consideração pela escola da experiência cultural dos alunos.

Ainda, a escola deve pautar-se por uma conduta ética que respeite as diferenças físicas, culturais, étnicas, de gênero e de orientação sexual, garantindo que todo o trabalho realizado nos espaços educacionais conceba a diferença como enriquecedora das relações humanas e processos de aprendizagem, em contraposição às concepções que terminam por estabelecer ações discriminatórias e de caráter elitista.

O papel da escola vai muito além do preparo para o mundo do trabalho. Ela deve preparar o cidadão solidário, capaz de compreender e transformar o mundo. É preciso torná-la em um espaço privilegiado, onde as crianças aprendam, seus pais participem ativamente da sua gestão, a comunidade usufrua de suas instalações para atividades de esporte e demais expressões da cultura e seus professores e funcionários, bem remunerados, disponham de salas adequadas, laboratórios e bibliotecas para a realização de seu trabalho pedagógico e de tempo para a formação em serviço, sendo importante para isso a instituição progressiva da escola em período integral.

As metas estabelecidas no PNE podem garantir mudanças do ponto de vista quantitativo à medida em que forem sendo alcançadas as condições de financiamento previstas, a valorização dos profissionais de educação e a melhoria dos espaços físicos das escolas. Do ponto de vista da qualidade, porém, há um grande embate pela frente, pois não há apenas uma visão de educação. Há posições que defendem uma educação de caráter exclusivamente gerencial, tendo a escola como espaço de instrução e preparação para o exercício de determinada atividade, deslocada de sua função social. A educação deve, então, estar presente no debate nacional com participação intensiva das entidades vinculadas à área, em todos os espaços possíveis na sociedade, para o aprofundamento de um conceito que transforme efetivamente a escola em instrumento capaz de formar cidadãos.

Durante os debates do PNE houve algumas perdas importantes em relação à qualidade da educação. Versão inicialmente aprovada na Câmara dos Deputados no inciso III do Art. 1º, que dispunha sobre as diretrizes do PNE, afirmava: “(...) superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial, de gênero e de orientação sexual”. Esse texto foi combatido implacavelmente, em particular, pela bancada religiosa, que venceu com certa facilidade, convertendo o conteúdo do inciso III do Art. 1º do PNE em: “(...) superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação”.

Todos sabem da intolerância ainda existente no interior das escolas em relação a esses temas. Há projetos de toda ordem que pretendem combater o bullying presente entre os alunos e até por parte de alguns professores – seja pela questão racial, regional, de gênero, seja pela orientação sexual. São questões, portanto, que devem ser debatidas abertamente para que se possa conviver com as diferenças e respeitá-las. Seu desparecimento do texto da lei demonstra quão difícil será superá-las. Em diferentes graus, a intolerância e o preconceito estão presentes na sociedade, e a escola deve ser um espaço privilegiado para difundir o respeito à diversidade. Não será tarefa fácil.

Outro ponto importante que reflete uma visão gerencial da educação relaciona-se à avaliação, importante instrumento para correção de rumos. No processo educativo, ela deve levar em consideração não apenas o resultado de alguns testes feitos com o alunado, mas também as condições da realidade que cercam esses alunos e seus professores. Não pode servir de “ranking” para definir onde serão aplicados os recursos da educação, premiando os melhores resultados em detrimento justamente daqueles que provavelmente por trabalhar em condições menos adequadas têm seus resultados prejudicados.

A meta 7 do PNE se propõe a fomentar a qualidade da educação básica em todas as etapas e modalidades, com melhoria do fluxo escolar e da aprendizagem, de modo a atingir médias nacionais para o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), as quais estão explicitadas no texto e, para a argumentação a ser desenvolvida aqui, não necessitam ser citadas. Em sua estratégia 36, ficou definido o estabelecimento de políticas de estímulo às escolas que melhorem o desempenho no Ideb, de modo a valorizar o mérito do corpo docente, da direção e da comunidade escolar.

Esse dispositivo, que infelizmente foi vencedor, não leva em consideração as enormes diferenças existentes no país, que não serão superadas em curto e médio prazo. Seguramente são as escolas com desempenho menor que precisam de maior apoio, pois não necessariamente seus resultados dependeram do mérito dos professores ou da direção, mas das circunstâncias de seu entorno, que precisam ser analisadas para sua superação.

O professor Roberto Franklin de Leão, em artigo publicado no caderno especial sobre PNE, do Núcleo de Educação e Cultura do PT no Congresso Nacional, lembra: “Em recente publicação denominada Vida e Morte do Grande Sistema Escolar Americano: como os Testes Padronizados e o Modelo de Mercado ameaçam a Educação, a ex-secretária adjunta de educação dos EUA Diane Ravitch, pensadora dos testes nacionais e dos processos punitivos aplicados aos professores e demais profissionais da educação, desaconselhou a prática desses métodos e julgou prejudicial políticas remuneratórias baseadas em avaliações meritórias. Isso depois de concluir – empiricamente, após duas décadas – que a educação é um processo que extrapola os limitados testes. O Brasil não deve, assim, reproduzir o que já tem sido descartado por seus idealizadores”.

Essas questões precisam ser salientadas porque na luta pela qualidade social da educação haverá obstáculos de conteúdo que precisam ser compreendidos para que, a par do desenvolvimento dos aspectos materiais, seja possível construir uma educação libertadora como propunha Paulo Freire.

Apesar das preocupações com a qualidade aqui apresentadas que não serão resolvidas em lei, o PNE significa um grande avanço para a educação no Brasil. Ficam estabelecidos os caminhos a ser seguidos ao longo dos dez anos de vigência, sua avaliação periódica, a definição do Custo Aluno-Qualidade (CAQ), a ser calculado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais (Inep) do MEC, em todas as suas etapas e modalidades.

Parâmetro para o financiamento da educação básica, o CAQ será medido a partir do cálculo e do acompanhamento regular dos indicadores de gastos educacionais com investimentos em qualificação e remuneração de pessoal docente e demais profissionais da educação pública, em aquisição, manutenção e conservação de instalações e equipamentos necessários ao ensino e em aquisição de material didático-escolar, assim como alimentação e transporte escolar.

O PNE já é lei. Agora é preciso acompanhar o monitoramento a ser feito pelo MEC, pela Comissão de Educação da Câmara do Deputados e pela Comissão de Educação, Cultura e Desporto do Senado Federal, pelo Conselho Nacional de Educação e pelo Fórum Nacional de Educação.

A ampliação dos recursos em educação está prevista na meta 20, devendo atingir o patamar de 7% do PIB em cinco anos de vigência do plano e, no mínimo, 10% do PIB ao final da década. Cabe lembrar que a União contribui com cerca de 25% do total de recursos, enquanto estados e municípios são responsáveis por cerca de 75%. Assim, é preciso ficar atento aos gastos estaduais e municipais em educação. A Controladoria-Geral da União constatou em auditoria, no segundo semestre de 2010, que em 58% das prefeituras havia desvio de recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) e em 41%, fraudes em licitações que também envolviam verbas da educação, conforme relata o professor Roberto Franklin de Leão, no artigo citado anteriormente.

Finalmente, entre os diferentes e importantes aspectos do PNE, há um deles que, pode-se dizer, é condição sine qua non: a valorização do magistério. Hoje, apesar de existir um piso salarial profissional, boa parte dos municípios ainda não o paga. Um dos motivos é que, embora a Constituição determine a aplicação de 60% dos recursos do Fundeb no pagamento de professores em efetivo exercício do magistério, em muitos casos, se isso for obedecido, o prefeito desrespeita a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), pois ultrapassa o limite fixado para gasto com pessoal. É fundamental, portanto, que essa discussão seja feita e modificada a LRF para o cumprimento do preceito constitucional. Embora a Constituição seja a Carta Magna, a LRF tem conseguido sobrepor-se a ela.

Carlos Eduardo Baldijão é professor aposentado da USP e assessor da Liderança do PT na Câmara dos Deputados