Internacional

A África é o principal território do globo com enorme potencial para ser explorado, sobretudo na condição de provedor de energia e produtor mundial de alimentos

Desde 2000, a África cresce a uma taxa média de 5% ao ano. O continente tem cerca de 1 bilhão de habitantes, 500 milhões deles com menos de 25 anos. Hoje, já há estimativas de que perto de 300 milhões de africanos pertencem à classe média. Ao compartilhar suas experiências nos governos Lula e Dilma, o Brasil estabeleceu um diferencial muito particular em relação aos demais países que investem hoje no continente africano

A Cúpula de Líderes Estados Unidos-África realizada em Washington

Cúpula de Líderes Estados Unidos-África em Washington: EUA buscam recuperar espaço perdido. (Foto: Jonathan Ernst/Reuters)

“Não olhamos para a África somente por conta de seus recursos naturais. Nós reconhecemos a África por conta de seus grandes recursos: sua gente, seu talento, seu potencial. Não queremos apenas extrair minerais para o nosso crescimento, queremos construir verdadeiras alianças para criar empregos e oportunidades para todos os nossos povos. Esse é o tipo de aliança que os Estados Unidos oferecem.”

Com essas palavras, o presidente Barack Obama saudou os presentes à Cúpula de Líderes Estados Unidos-África, realizada em Washington, no início de agosto. Foi o maior evento voltado para a África de toda a história do governo norte-americano. Quase todas as cinquenta delegações africanas foram chefiadas pelo respectivo chefe de governo ou de Estado.

Com essa iniciativa, os Estados Unidos tentam recuperar um espaço perdido. É o mesmo movimento que fazem França e Grã-Bretanha, antigos colonizadores de mais da metade daquele continente. Afinal, desde que estourou a crise econômica internacional, em 2008, são os chineses os principais parceiros comerciais dos africanos.

Reuniões de cúpula como essa, os chineses já fizeram cinco. A cada três anos, desde 2000, eles promovem a Conferência Ministerial do Fórum sobre a Cooperação Sino-Africana, quando reúnem chefes de governo e ministros dos 51 países africanos onde a China mantém embaixadas.

A mais recente ocorreu em julho de 2012, em Pequim. Na resolução final da conferência está escrito: “Acreditamos que a cooperação China-África, incorporando a solidariedade e o apoio mútuo entre os países em desenvolvimento, é marcada pela igualdade, pelo benefício mútuo, pela abertura e pela inclusão, e por isso merece compreensão e o apoio da comunidade internacional. Nós apelamos aos parceiros internacionais de desenvolvimento para melhorar a sua complementaridade e trabalhar em uma interação positiva na África, para contribuir conjuntamente para a paz e o desenvolvimento do continente”.

Ou seja, em tempos diferentes, chineses e americanos transmitiam iguais mensagens e deixavam explícito o quanto a África é estratégica para ambos.

Ao tomar conhecimento dos resultados da Cúpula EUA-África, o ex-presidente Lula saudou o presidente Obama e afirmou: “Foi um evento dos mais representativos e significativos, ao deixar clara a importância da África para o progresso de todo o planeta e o engajamento dos Estados Unidos com esse objetivo. O desenvolvimento dos países mais pobres é a saída para a crise econômica internacional e o caminho para a resolução dos problemas mais sérios da humanidade. Fiquei especialmente satisfeito porque esse encontro vai reforçar a luta que sempre travamos para estreitar as relações do Brasil com a África neste seu momento especial de construção da paz, da democracia e do desenvolvimento social”.

Falava isso com a convicção de quem, em seu governo, havia operado uma mudança radical na política de relações internacionais do Brasil. “Paramos de olhar só para cima e começamos a olhar mais para os lados, para os nossos vizinhos”, reiterava Lula em seus discursos para defender o estreitamento dos laços com a América do Sul e a África e modificar a política tradicional de subordinação do Brasil aos interesses de Estados Unidos e Europa.

Como uma das consequências dessa estratégia, mantida pela presidenta Dilma Rousseff, Lula terminou seu governo reconhecido como a principal liderança latino-americana e uma referência central para governantes e sociedades africanas.

Não foi fácil chegar a essa condição. Sob muitas críticas da imprensa da oposição, Lula intensificou uma agenda presidencial de viagens bem diferente da usual. Apenas para a África, em oito anos fez 33 viagens, para 26 países, soma inigualável por qualquer outro chefe de Estado não africano até os dias de hoje.

Nossa balança comercial com o continente pôde então saltar de US$ 6,5 bilhões em 2003 para US$ 21,5 bilhões em 2010 e US$ 28,5 bilhões ao final de 2013. O número de embaixadas brasileiras em países africanos passou de 18 em 2003 para 37 hoje, ajudando a impulsionar inúmeros programas e projetos de cooperação nas áreas da agricultura, educação e saúde.

Em 2003, o governo brasileiro, assim como o chinês, já acompanhava uma evolução que anos mais tarde se tornaria óbvia. Hoje a África é o principal território do globo com enorme potencial para ser explorado, sobretudo na condição de provedor de energia e produtor mundial de alimentos, pois é lá que estão localizados 60% de todas as terras agriculturáveis ainda não exploradas do planeta. Muito além dos discursos das “verdadeiras alianças”, dos EUA, e de “solidariedade e apoio mútuo”, da China, é esse o movimento que executam em direção ao continente africano.

Ele determina a ação tanto de países em desenvolvimento, principalmente China, Turquia, Índia, Rússia, Malásia, Indonésia, quanto de países ricos, como EUA, França, Grã-Bretanha, Japão e Alemanha com maior destaque, que constroem a cada dia novas posições no continente.

O Brasil é apenas um dos muitos que voltam sua atenção para a África. Passados doze anos do início de um estreitamento inquestionável dos nossos contatos em diversas áreas, é boa a hora para “discutir a relação” e definir estratégias, focos e prioridades.

A África do século 21

Objeto da atenção mundial, a África cresce desde 2000 a uma taxa média de 5% ao ano. Seis dos dez países que mais crescem no mundo são africanos. Cresce o PIB, cresce a população: o continente tem cerca de 1 bilhão de habitantes, 500 milhões deles com menos de 25 anos.
Ao olhar mais além das riquezas naturais dos solos africanos, os países ricos e os emergentes miram também um novo e enorme mercado consumidor que se constitui. Hoje, já há estimativas de que perto de 300 milhões de africanos pertencem à classe média.

Investidores estão igualmente atentos ao significativo processo de construção de sociedades democráticas e de consolidação da paz que ocorre na maior parte do continente. Aos poucos, fica para trás uma visão antiga da África, aquela da arena de enfrentamentos e conflitos étnicos intermitentes.

Eleições livres e diretas, partidos políticos legalizados, Parlamentos atuantes, sindicatos livres, imprensa plural, movimentos sociais organizados passam a ser características de muitos países, que vivem um processo de aprimoramento lento mas consistente de sua democracia.

É esse processo que cria os alicerces indispensáveis para o desenvolvimento econômico, ao dar maior tranquilidade aos cidadãos e segurança aos investidores.

O ritmo dessa transformação, dessa assimilação das estruturas de poder das democracias ocidentais pelas sociedades africanas, pode não ocorrer na velocidade que os ocidentais gostariam, sempre ávidos por repetir em todo o planeta os próprios modelos.

Muitas vezes, eles perdem de vista que as independências dos antigos colonizadores ocorreram na maioria dos países africanos apenas nos anos 1960 e 1970 e que parte delas foi conquistada à custa de muita luta, muito sangue e muita destruição de forças produtivas. Ignoram também que os anos seguintes, em muitos países, foram marcados por não menos sangrentos conflitos étnicos e guerras civis.
De fato, esse processo de reconstrução e de maior tranquilidade social na maioria do continente começa apenas no início do século 21, quando é aberto o atual ciclo de crescimento econômico.

Esse novo momento tem vários outros obstáculos estruturais para enfrentar. A começar por uma divisão territorial muito fragmentada, com nada menos que 55 países, cujos contornos básicos foram definidos pelos europeus no final do século 19, quando fizeram a partilha do continente.

Instituíram por decreto e pela força das armas dezenas de países de todos os tamanhos, obrigando seus habitantes a se adaptar em novas fronteiras artificiais, algumas separando etnias inteiras, outras impondo a união entre comunidades tradicionalmente rivais.

A retaliação do continente foi de tal magnitude que exige até os dias de hoje muita sabedoria e articulação dos dirigentes africanos para lutar pela integração regional e atenuar conflitos étnicos latentes.

Foi esse espírito que os moveu ao longo dos anos, ao construírem inúmeras estruturas permanentes e instituições atuantes. A principal delas é a União Africana (UA), que completou 50 anos em 2013. Nascida como resultado dos processos de independência, a UA reúne hoje 54 dos 55 países do continente.

Instalada em Adis Abeba, capital da Etiópia, sua moderna sede abriga permanentemente técnicos de todas as áreas, a trabalhar juntos para concretizar acordos e ações comuns. A cada seis meses promove uma conferência, com a presença de ministros e chefes de Estado e de governo de todos os países.

Além dela, os africanos formaram as Comunidades Econômicas Regionais – organizações intergovernamentais estabelecidas por grupos de países – para fomentar a cooperação e os vínculos econômicos. Constituíram também o Banco Africano de Desenvolvimento (BAD),  voltado para todo o continente, e sua agência de desenvolvimento, a Nova Parceria para o Desenvolvimento da África (Nepad).

São esses os organismos responsáveis pela criação, já há dez anos, do Programa Abrangente de Desenvolvimento da Agricultura em África (CAADP), para incentivar a integração da agricultura africana, e o Programa para o Desenvolvimento da Infraestrutura na África (Pida), criado em 2011.

Essas iniciativas mostram que existe um movimento real pela integração do continente impulsionado pelos próprios líderes africanos. Eles são ciosos da necessidade de solidificar a soberania de suas nações frente aos países com economias mais fortes.

São vários os governantes incomodados com a ausência de recursos próprios suficientes para financiar o desenvolvimento do continente. Preferiam não ser obrigados a abrir as portas para os capitais internacionais, nem continuar mantendo seus orçamentos nacionais cobertos em grande parte por ajuda europeia ou americana.

Não é segredo para os dirigentes africanos que, em especial os chineses, necessitam das riquezas minerais, das fontes de energia e das áreas agriculturáveis africanas para dar conta das necessidades básicas das populações de seus próprios países.

A África e o Brasil

É outra a percepção que esses mesmos dirigentes têm do Brasil. Sabem que nós somos um dos maiores fornecedores de alimentos para o mundo e não necessitamos do gás e dos minérios dos países africanos. Sabem que circunstancialmente somos importadores de seu petróleo e que deveremos deixar de sê-lo assim que aumentar nossa produção da camada pré-sal.

A internacionalização de empresas brasileiras foi um resultado natural do crescimento da nossa economia. A expansão dos negócios dessas empresas começa exatamente a partir da virada do século 20, quando o continente africano abre seu novo período de desenvolvimento, o Brasil inicia um ciclo de crescimento e o governo brasileiro volta seu olhar para o outro lado do Atlântico.

Hoje a presença empresarial brasileira na África se dá principalmente através de algumas de suas maiores companhias, como a Vale, a Petrobras e as grandes construtoras do país. Mais esse é um quadro que começa a mudar, com a retração dos investimentos da Vale e da Petrobras e o surgimento de outros setores de negócios dispostos a investir no continente.

As construtoras continuam a disputar os contratos para execução das obras de infraestrutura previstas no Pida, sobretudo na produção de energia elétrica e na construção de rodovias e ferrovias, mas enfrentam uma concorrência internacional cada vez mais feroz.

São muito bem acolhidos pelos governos africanos aqueles empresários brasileiros da área da agricultura, pois a África produz menos de 10% dos alimentos consumidos no continente. Ela precisa disponibilizar parte de suas terras produtivas para a produção extensiva voltada ao consumo interno e enfrentar com rigor o problema da insegurança alimentar.

Mas essa não é uma equação fácil. A base da produção africana no campo está sustentada pela pequena agricultura familiar ou de subsistência e sua convivência com os interesses do chamado agronegócio em várias partes do mundo quase nunca é tranquila. Além disso, nessa área o Brasil não está sozinho, pois são muitos os países interessados em plantar na África.

Também são reais as oportunidades de exportar mais para os mercados africanos, e o Brasil pode melhorar em muito sua ainda tímida balança comercial com o continente. Podemos, entre outras coisas, vender muito mais cereais, açúcar, bebidas, carne e frango, podemos exportar automóveis.

A constatação a fazer é que o Brasil é um dos participantes desse jogo de interesses distintos, mas não se posiciona entre os mais fortes deles. Para os empreendedores nacionais aproveitarem melhor os espaços que permanecem abertos na África é indispensável muito conhecimento, investimento e disposição. Ao mesmo tempo, o governo brasileiro teria de intensificar sobremaneira suas iniciativas, principalmente naquilo que cabe ao Ministério do Desenvolvimento e Comércio Exterior, ao BNDES e à Apex. Nossos concorrentes estão muito bem posicionados no continente para aproveitar todas as oportunidades negligenciadas pelos brasileiros.

A crise econômica internacional se transformou em elemento indutor da disputa pela conquista de espaços na África, como bem evidenciou o encontro de cúpula realizado pelo presidente Obama. O Brasil deve se armar vigorosamente para essa disputa, ou a tendência para o próximo período pode ser a diminuição da nossa presença na economia africana.

O modelo de desenvolvimento a seguir

A África que cresce é chamada a determinar qual modelo de desenvolvimento seguirá nesta fase decisiva para sua história.

Um modelo inclusivo, integrado e independente, permitirá que os resultados da exploração de seus abundantes recursos sejam compartilhados por todos os africanos. Esse modelo precisa se impor ao ser confrontado com o caminho natural oferecido pelo capitalismo globalizado, que induz à formação de uma nova elite negra em cada país, que convive com a corrupção e prioriza a remessa das riquezas africanas para as matrizes dos investidores mais ricos.

Um modelo inclusivo exige uma política de geração de empregos, de industrialização. Exige um combate sem tréguas à desigualdade social, pois, segundo a FAO, cerca de 250 milhões de pessoas ainda vivem em condições de insegurança alimentar na África. Crescer sem fome e sem miséria é o principal desafio colocado para os governantes africanos comprometidos com uma agenda social.

Ao assumir esse desafio, a União Africana aprovou em sua última conferência, em junho passado, uma resolução que coloca como meta a erradicação da fome no continente até 2025. Sua referência veio de um importante fórum realizado em Adis Abeba, em julho de 2013, por iniciativa da própria União Africana, em parceria com a FAO e o Instituto Lula.

O centro da discussão foi o que se chamou de “novas abordagens” para enfrentar a questão da fome, ou seja, a introdução de programas sociais e políticas públicas com destaque nas propostas de cada governo e da União Africana. Munidos já há algum tempo de programas de desenvolvimento de sua infraestrutura e de incentivo à agricultura, acrescentavam a partir dali à pauta da União Africana, seu órgão máximo de integração, a lógica das políticas sociais para combater a exclusão social.
São diversos os governos africanos a se inspirar em iniciativas brasileiras e a demonstrar disposição para “colocar os pobres no orçamento do governo”, como gosta de dizer o ex-presidente Lula. O que mais lhes interessa ao olhar para o processo de desenvolvimento ocorrido no Brasil nos últimos anos é o compartilhamento das políticas exitosas para acabar com a miséria e nossa experiência na produção de alimentos.

Eles reconhecem que é possível aplicar em parte do território africano nossos programas de incentivo à agricultura familiar – como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), já testado em cinco países, e o Programa Mais Alimentos (PMA), em fase de implantação em outros cinco. Também mostram especial interesse nas pesquisas, técnicas e estudos desenvolvidos pela Embrapa – já com um escritório na capital de Gana, Acra, desde 2006.  Estão dispostos a discutir a transferência das nossas “tecnologias sociais”, as experiências adquiridas ao criar o Bolsa Família, o Minha Casa, Minha Vida, o Luz Para Todos, o Merenda Escolar, entre outros programas.

Ao se dispor a compartilhar essas experiências, nos governos Lula e Dilma, o Brasil estabeleceu um diferencial muito particular em relação aos demais países que investem hoje no continente africano. São atores principais desse processo os Ministérios do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, do Desenvolvimento Agrário, da Educação, da Saúde. Também o são a Agência Brasileira de Cooperação (ABC), a Coordenação-Geral de Ações Internacionais de Combate à Fome (CGFome), a Embrapa e a Fiocruz. Sem esquecer o Sebrae, o Sesi e o Senai, todos eles com atuação na África, mas carecendo de uma maior coordenação. Nem os países ricos, nem os demais países em desenvolvimento têm vocação para estabelecer um relacionamento com os africanos nessas bases e construir parcerias sólidas no terreno da cooperação internacional para o desenvolvimento, em especial nas áreas da agricultura familiar, da educação e da saúde.

Nenhum deles pode competir com nossa trajetória recente de execução de políticas públicas que sejam pilares para o sucesso de um modelo de desenvolvimento inclusivo e democrático.

A União Africana e boa parte dos governantes africanos percebem já há algum tempo esse diferencial brasileiro e criaram uma enorme expectativa diante dele. Se estruturar melhor para responder a essa expectativa à altura é o principal desafio que se coloca para Brasil no próximo período.

Celso Marcondes é diretor do Instituto Lula, responsável pelo Iniciativa África