Sociedade

Criado sob o manto da repressão, o auto de resistência se transformou em um salvo conduto para matar, que ainda perdura, 29 anos após a volta da democracia

Entre outros estudos alarmantes, O Mapa da Violência – Os Jovens do Brasil 2014, revela que a cada dez jovens vítimas de homicídio no país, sete eram negros em 2012. É nesse contexto de genocídio que a sociedade civil organizada assumiu para si a bandeira da aprovação imediata do PL nº 4.471, que prevê investigação de todos os homicídios praticados por agentes de Estado, inclusive os registrados como "auto de resistência"

As vítimas prioritárias dos autos de resistência são jovens, negros e morad

As vítimas prioritárias do auto de resistência são jovens, negros e moradores da periferia. (Foto: Luane Parracho/Reuters)

A pena de morte foi abolida da lei brasileira com a Proclamação da República, em 1889. O último brasileiro punido oficialmente com a pena capital foi o escravo Francisco, no município de Pilar, no interior de Alagoas, em 28 de abril de 1876, condenado pelo assassinato de um coronel e sua esposa. Faz 138 anos, portanto, que a Justiça não manda ninguém para a forca, como aconteceu com Francisco, nem para a guilhotina, a fogueira, a cadeira elétrica ou a injeção letal. Na prática, no entanto, a pena de morte jamais deixou de ser adotada no Brasil.

Centenas morreram torturados, sob a responsabilidade do Estado, nos dois períodos de ditadura que vitimaram o país no século passado: o Estado Novo (1937-1945) e o regime militar (1964-1985). Outras centenas ainda morrem, todos os anos, sob tortura ou em execuções sumárias, por iniciativa de maus policiais, aos quais interessa menos cumprir a lei do que "matar vagabundo" ou "fazer justiça com as próprias mãos". Esses mesmos agentes contratados pelo Estado para promover a segurança pública nem sempre se sujeitam à mesma legislação pela qual deveriam zelar. Pressão, ódio, medo, euforia, destempero ou despreparo entram na conta do extermínio. Mas é sobretudo a certeza da impunidade que lhes permite puxar o gatilho – duas, três, oito vezes – e eliminar um suspeito, muitas vezes alvejado nas costas ou na nuca, e voltar ao trabalho no dia seguinte, impunes e impávidos, para serem recebidos com sorrisos cúmplices do chefe e dos colegas.

Essa certeza de impunidade chama-se auto de resistência.

O auto de resistência surgiu no antigo estado da Guanabara, hoje Rio de Janeiro, em outubro de 1969, como um instrumento administrativo a ser utilizado no registro de civis mortos em confronto com a polícia, especificamente quando houvesse resistência à prisão. A hipótese era de que, ao oferecer resistência, o suposto bandido poria em risco a vida do policial, o que tornaria legítimo o uso de força letal. Em outras palavras, o policial agiria em legítima defesa ao executar um suspeito que resiste. E, se agiu em legítima defesa para conter um criminoso que resistiu à prisão, não deveria se sujeitar aos trâmites habituais a que respondem os civis acusados de homicídio. Ou seja: ocorrência em que houve auto de resistência, culminando ou não com a morte da vítima, não é investigada. Nos anos seguintes, muitos opositores da ditadura tombaram por "resistir à prisão" – nus, encarcerados, com fios elétricos amarrados nas partes íntimas.

Criado sob o manto da repressão, o auto de resistência se transformou numa espécie de salvo conduto para matar, que ainda perdura, 45 anos após sua invenção e 29 anos após a volta da democracia. O que se viu ao longo de todos esses anos foi a ampliação do uso do instrumento, a ponto de, em 2014, deixar de ser exceção para virar regra. Hoje, as vítimas prioritárias do auto de resistência não são mais os estudantes da geração de 68, os "terroristas" dos anos de chumbo, mas a juventude negra, pobre e moradora das periferias. É essa a realidade conferida no dia a dia das ruas, nos morros, nas quebradas. É essa também a realidade exposta nas estatísticas.

Segundo o Mapa da Violência – Os Jovens do Brasil, 2014, lançado recentemente pelo governo federal, a cada dez jovens vítimas de homicídio no Brasil, sete eram negros em 2012. Enquanto o número de brancos assassinados diminuiu nos últimos dez anos, o de negros vítimas de homicídio cresceu na mesma proporção. As mortes causadas por policiais seguem basicamente o mesmo padrão. Um estudo realizado na década passada no Rio de Janeiro mostrou que todas as mortes provocadas pela polícia fluminense e registradas como auto de resistência nos anos 1990 ocorreram em favelas. Nenhuma em bairros da classe média. Em 65% delas, houve pelo menos um tiro nas costas, configurando mera execução.

Mais recentemente, também no Rio de Janeiro, levantamento feito pela Justiça Global apontou nada menos que 1.330 autos de resistência registrados em 2007. O número equivale a 18% do total de homicídios deflagrados no estado. É muito.

O efeito colateral mais evidente da licença para matar conferida à polícia brasileira é o aumento da letalidade policial. Impunes, os maus policiais matam mais. No último dia 11 de novembro, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública atualizou a estatística no Brasil. O grupo de pesquisadores conseguiu reunir registros de pelo menos 11.197 óbitos provocados por policiais em cinco anos. Foram seis execuções por dia, em média, entre 2009 e 2013. O número absoluto é maior do que as 11.090 pessoas que a polícia norte-americana matou ao longo de trinta anos, período seis vezes maior.

O resultado é alarmante. Sabemos que grande parte dessas vítimas é composta por inocentes que estavam no lugar errado na hora errada ou suspeitos sem envolvimento comprovado em crime nenhum. Nesses casos, o mau policial se comporta como juiz e carrasco. Ele mesmo decide pela pena capital – aquela abolida em 1889 – e assume a responsabilidade por cumpri-la.

Essas execuções sumárias em muito se assemelham à atividade dos esquadrões da morte nos anos 1970. E cresce, quando deveria diminuir. De acordo com a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, o número de mortos pela Polícia Militar no estado dobrou em relação a 2013. Na capital, é ainda mais alarmante: 244 civis entre janeiro e setembro deste ano, um aumento de 149% em relação ao mesmo período do ano passado. Os índices ultrapassaram os registrados em 2006, ano marcado pelo confronto com o Primeiro Comando da Capital (PCC).

A letalidade policial cresce, estimulada pela complacência de parte da opinião pública, confortável com a ideia de que "bandido bom é bandido morto". O que se vê, na prática, é o genocídio da população jovem, pobre, negra e periférica, uma matança patrocinada pelo auto de resistência e praticada por maus policiais. Não me refiro aos policiais que de fato matam em confronto, que trocam tiros quando a situação exige, em legítima defesa, no pleno exercício de sua função, contra facções criminosas mais fortemente armadas. Essa letalidade também precisa baixar, e para isso é fundamental uma polícia cada vez mais técnica, que saiba combater com inteligência e estratégia, sem o uso da força letal. E também nisso o fim do auto de resistência pode contribuir no médio prazo.

É nesse contexto de genocídio que a sociedade civil organizada assumiu para si a bandeira da aprovação imediata do Projeto de Lei nº 4.471, de minha autoria, que prevê investigação de todos os homicídios praticados por agentes de Estado, inclusive os registrados como "auto de resistência". Concebido em parceria com os deputados Fabio Trad (PMDB-MS), Protógenes Queiroz (PCdoB-SP) e Miro Teixeira (Pros-RJ), o projeto busca equiparar policiais e civis no que tange à abertura de inquérito. Ele obriga a preservação da cena do crime, impedindo que policiais a adulterem, e exige a realização imediata de perícia e coleta de provas. Essa perícia deverá ser feita única e exclusivamente com a presença de profissionais do corpo pericial e de pessoas indicadas pela família da vítima, ou pelo Ministério Público ou pela Defensoria Pública, de modo a não permitir qualquer tipo de intervenção. A documentação da perícia deverá ser feita de maneira pormenorizada e o inquérito será acompanhado em sua totalidade pela Defensoria Pública e pelo Ministério Público.

Além disso, o PL nº 4.471 veta o transporte de vítimas por agentes da PM e estabelece como obrigação do policial chamar socorro especializado, como já vem sendo feito no estado de São Paulo. Por fim, substitui as expressões "auto de resistência" ou "resistência seguida de morte" por "lesão corporal decorrente de intervenção policial" ou "morte decorrente de intervenção policial", conforme o caso. Se foi mesmo legítima defesa, se o suspeito resistiu de fato à prisão, tudo isso terá de ser comprovado durante o processo. Para o bom policial, não há o que temer. Quem não deve não teme, diz a sabedoria popular.

A aprovação imediata desse projeto foi defendida por Dilma Rousseff em mais de uma ocasião durante a campanha eleitoral, inclusive em um dos debates de TV. A presidenta voltou a apoiá-lo há pouco, nas redes sociais, durante a Semana da Consciência Negra. Acredito que o momento de aprová-lo seja agora, ainda nesta legislatura, antes que a bancada da bala ganhe sustança com a renovação da Casa.

Aprovar o PL nº 4471 é acabar com uma das heranças mais perversas da ditadura militar. Aprová-lo é garantir equidade e justiça no rito processual e perante o rigor da lei. É preservar a legitimidade da polícia e defender a honradez dos bons policiais. É dizer basta ao genocídio da população jovem, pobre, negra e periférica. É caminhar com passos firmes para um país onde Amarildos não desapareçam, onde rapazes de 17 anos como Douglas não sucumbam com um tiro no peito perguntando a seu algoz "por que o senhor atirou em mim?", onde garotos de 16 anos como David não sumam depois de abordados pela PM, onde policiais revoltados com a morte de um colega não saiam pelas ruas de Belém espalhando terror e deixando um rastro de nove jovens exterminados. Aprovar o PL nº 4471 é abolir, pela segunda vez, a pena de morte da legislação brasileira.

Paulo Teixeira é deputado federal pelo PT de São Paulo