Política

Não é mais possível avançar dentro da camisa de força institucional tal como se evidencia

Embora a retórica da mudança acompanhe a trajetória do PT, as práticas e, sobretudo, os compromissos do presidencialismo de coalizão impõem outra lógica. É hora de reunir as forças progressistas a fim de formular uma orientação política, sustentada pelo movimento de massas, na defesa da agenda social e da mudança na estrutura do Estado de maneira que se possa aprofundar as ações iniciadas em 2003 e combater o retrocesso, a manipulação e a estigmatização em curso

A Câmara reduz a maioridade penal, legitima a homofobia e promove o ódio religio

Câmara tenta reduzir a maioridade penal, legitima a homofobia e promove o ódio religioso. (Foto: Lula Marques/Agência PT)

O Brasil quer mudar. Mudar para crescer, incluir, pacificar. Mudar para conquistar o desenvolvimento econômico que hoje não temos e a justiça social que tanto almejamos. Há em nosso país uma poderosa vontade popular de encerrar o atual ciclo econômico e político.
Luiz Inácio Lula da Silva em
Carta aos Brasileiros

Os jornais são aparelhos ideológicos cuja função é transformar uma verdade de classe num senso comum, assimilado pelas demais classes como verdade coletiva – isto é, exercem o papel cultural de propagador de ideologia. Ela embute uma ética, mas também a ética não é inocente: ela é uma ética de classe.

Antonio Gramsci,
filósofo político italiano

 

A primeira lição destes doze anos de um governo que se iniciou como coalização de centro-esquerda é que a inclusão social via mercado de consumo não é sinônimo de evolução política. Embora necessária, não é suficiente. Ou ainda: não impede o retrocesso, podendo até mesmo viabilizá-lo. O New Deal e os expedientes tradicionais de distribuição de renda do Welfare State não impediram que as economias do hemisfério norte dominassem a humanidade mediante golpes de Estado ou por meio de intervenção militar direta na segunda metade do século passado.

A opção pragmática de disputa político-eleitoral no terreno das oligarquias e com os instrumentos de financiamento e organização partidários por ela consolidados nos impunha a tarefa histórica, caso eleitos, da desarticulação de um aparato cujo modelo, como vemos nos dias atuais, funciona em desfavor da justiça social e pela preservação das posições oligárquicas de poder, ainda que o Poder Executivo não esteja ocupado por seus legítimos representantes. O governo cuida de aspectos da administração, mas é o Estado, com seu funcionamento ordinário e sua racionalidade burocrática institucional quem cuida da hegemonia de classe.

Após doze anos essa máquina segue determinada a partir dos oligopólios corporativos, financeiro, midiático, produtivo e comercial. A relação instrumental do aparelho de Estado com tais oligopólios, se num primeiro momento sofreu alguma contenção por conta da base social da coalizão partidária de centro-esquerda recém-chegada ao Poder Executivo, volta na atualidade ao fortalecimento da hegemonia tradicional, ou seja, assegura às mesmas oligarquias o máximo poder em detrimento da agenda social, sendo que agora o faz com a colaboração direta de agências estatais como Judiciário, polícia judiciária, Ministério Público, Tribunais de Contas e Parlamento.

O que aconteceu?

O Partido dos Trabalhadores, cujas raízes históricas remontam à resistência ao modelo patrimonialista (privatização do público) e que se afirmou pela negação de uma ordem excludente e pelo combate às oligarquias, representou no imaginário popular de toda uma geração a alternativa àquela ordem e, principalmente, a possibilidade de protagonismo do mundo do trabalho e dos movimentos sociais na política sintetizada na figura de Lula.

As iniciativas da primeira fase (os governos Lula) voltaram-se à agenda de interesse popular, reorientando as políticas públicas para os segmentos tradicionalmente excluídos e o próprio Estado como agente contra-hegemônico no cenário internacional. No campo da política externa, por exemplo, fortaleceu-se a relação comercial com países do Mercosul, da África e os Brics, revertendo-se a doutrina do realismo periférico praticada pelo Itamaraty nos tempos de neoliberalismo e expressa pela subserviência às grandes potências. No âmbito interno houve o investimento no capital produtivo e incremento da pesquisa, sendo a prospecção de petróleo na camada pré-sal um expressivo exemplo. O investimento no crescimento via capital produtivo se manteve mesmo no segundo governo Lula após a crise de 2008, por meio de políticas anticíclicas.

A decisiva opção pela qualificação do mercado produtivo interno com formação adequada justificou os investimentos em formação técnica de nível médio e superior com programas específicos e criação de novas universidades federais, além do investimento nas já existentes. A inclusão de milhares de jovens nas universidades por meio dos programas de cotas e do ProUni impactou o quadro tradicional do invisível vestibular econômico como sistema de interdição do acesso ao ensino superior a amplos segmentos da juventude.

Apostou-se na redução de juros de forma sustentada, ou seja, mediante capacidade produtiva e competitividade do capital produtivo nacional, o que apresentou resultado por breve período. Integram também esse esforço a criação e consolidação de programas sociais de transferência de renda de longo alcance, como o Bolsa Família, além daqueles que colocaram o Estado como indutor de desenvolvimento, sobretudo o PAC 1 e o PAC 2.

O próprio Estado foi objeto de políticas de adaptabilidade às novas diretrizes. A busca do fortalecimento do pacto federativo por meio de programas descentralizados motivados por adesão como o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci) e a oferta de financiamento mediante anuência a políticas de segurança que compreendessem a pauta de direitos humanos e contrapartida de ações estratégicas em cooperação com a sociedade, incluindo comunidades atingidas pela sistemática violência policial, indica o esforço de movimentação efetiva da máquina estatal em direção ao princípio da gestão democrática.

Essa breve referência a alguns dos muitos programas adotados que resultaram no crescimento da economia com inclusão social por uma década a partir de 2003 serve para registrar a inconsistência da crítica que se apresentou e se apresenta também no campo democrático. Tal crítica tende a desqualificar os governos do Partido dos Trabalhadores (muitas vezes em coro com os neoliberais) sem reconhecer que a política implementada com a eleição de Lula reverteu a agenda neoliberal, com seu acerto devidamente sufragado nas urnas por três eleições presidenciais consecutivas, ainda que o contra-ataque conservador venha ganhando posições nesse momento em que os mesmos fundamentos neoliberais da economia pugnam pelo corte de investimentos sob a alegação de desorganização das contas públicas.

É que o feixe de programas que se mostraram altamente positivos e inclusivos não se fez acompanhar de medidas absolutamente imprescindíveis, das reformas política, fiscal, financeira e midiática aptas a assegurá-los e propiciar as condições operacionais para que sigam avançando num arranjo institucional que os favoreça. Apesar de sobreviverem, os programas de inclusão operam num cenário institucional hostil, minado.

Os programas concebidos e implementados dentro da mesma ordem que sustentou o saque inflacionário dos anos 1980 e o massacre neoliberal dos anos 1990, preservando-a, mantêm-se vulneráveis. Tais vulnerabilidades mostram-se letais para toda a esquerda, inclusive aquela que se opõe ao PT apresentando-se como alternativa, porque resultam no aniquilamento da agenda social e na despolitização da cidadania, atmosfera irrespirável para segmento substancialmente democrático. Objetivamente, a desqualificação do PT significa o recuo de todo o campo progressista, o que impõe ao partido compor, aderindo ou propondo, a articulação e o fortalecimento das organizações de esquerda.

Embora a retórica da mudança acompanhe a trajetória partidária, o fato é que as práticas e, sobretudo, os compromissos do presidencialismo de coalizão/cooptação impôs outra lógica, a lógica da preservação de uma ordem que não foi concebida nem articulada sem o financiamento empresarial de campanha do centro da política partidária, visto que por esse expediente se mantém de maneira direta e sem nenhum controle efetivo o domínio dos agentes políticos.

O esquema de financiamento empresarial de campanha se consolidou como negócio, movimentando grandes quantias, em que os partidos tendem a figurar como mera ferramenta. Partidos de aluguel que migram de um lado para o outro conforme interesses circunstanciais nutrem a pequena política, e é nessa condição que integram e muitas vezes imobilizam o presidencialismo de coalizão.

Esse esquema, por natureza instável, movido a acordos menores e sustentando-se no loteamento do Estado desqualifica a política. As mazelas que essa estrutura proporciona e estimula findaram por expor quadros do PT, propiciando à mídia empresarial (e seus investidores) a oportunidade buscada para a pauta de ataque permanente que, a partir daí, em nome da ética que ela mesma sabota, instiga o linchamento de personalidades, instituições contrárias a seu interesse.

Desde 2005, a manipulação dessa pauta se converteu em instrumento de mobilização orientado ao aniquilamento do Partido dos Trabalhadores, com seus promotores conscientes do alcance destrutivo da operação para todo o campo progressista, por meio da criminalização dos movimentos sociais, reversão dos programas de inclusão, disseminação do ódio político e estigmatização de qualquer compromisso social como retrógrado e atentatório à liberdade individual e de mercado.

Essa operação marcada como a maior contraofensiva reacionária desde a redemocratização, envolvendo conglomerado midiático, Justiça, polícia e Ministério Público partidarizados, apresenta como resultado significativo o crescimento da onda conservadora nas camadas médias urbanas, convertendo-se numa virtual divisão eleitoral do país e no fortalecimento das oposições conservadoras no Congresso Nacional, em detrimento das bancadas progressistas. Em 2015, pela primeira vez, o partido do governo sai da Mesa da Câmara e passa à condição de oposição.

O retrocesso institucional verificado, sobretudo na Câmara Federal na atual legislatura com a aprovação à força do início do processo legislativo para uma “reforma política” que consagra o financiamento empresarial de campanha, constitucionaliza a redução da maioridade penal, legitima a discriminação da homossexualidade, promove o ódio religioso, assegura a precarização das relações de trabalho, entre outros pontos. Ou seja, vivemos a cassação impiedosa das conquistas sociais recentes e históricas e o risco de ter interditadas – se não pelo golpe – no futuro próximo, pelo voto, as possibilidades de tirar o país do mapa do atraso institucional que assegura o domínio das mesmas oligarquias desde sempre.

Acrescente-se, por fim, o exaurimento das políticas anticíclicas concebidas para enfrentar a crise financeira global de 2008. Esse quadro tem influência direta nos governos Dilma.

É na gestão da presidenta Dilma que ocorre simultaneamente a retração da oferta de capital financeiro internacional com desaquecimento da economia e juros altos. Além do movimento de massas que tomou as ruas secundando em nosso país o fenômeno que atingiu EUA e Europa na forma de movimentos antiglobalização como o Occupy, com a recusa do modelo de austeridade neoliberal que impõe ao conjunto da sociedade os custos da financeirização predatória e irresponsável que quebrou a economia mundial no final da década passada.

Em 2013, reagindo às manifestações de rua, Dilma propôs a “convocação de um plebiscito popular que autorize o funcionamento de um processo constituinte específico para fazer a reforma política que o país tanto necessita”. O Congresso, com o apoio das forças conservadoras, da mídia e da própria base do governo, reagiu, e Dilma recuou para referendo, forma na qual a democracia representativa é preservada e a participativa reduzida à figura burocrática da anuência.

Esse é um episódio que demonstra a dificuldade de enfrentar a máquina estatal tendente à democracia sem povo. Demonstra igualmente que esse enfrentamento não comporta conciliação por cima. Com o recuo, perdeu naquele momento a oportunidade histórica da pauta, por natureza conflituosa, da reforma política, seguindo-se a marcha da inclusão conservadora. É didático o fato de que a massa manipulada tenha saído às ruas em 2013 pedindo mudanças numa pauta difusa e insuflada pela mídia e imediatamente tenha sido desmobilizada a partir da resposta da presidenta de que atenderia às reivindicações mediante plebiscito para reforma política com constituinte específica.

Embora as manifestações de junho de 2013 não tenham propriamente transcorrido no quadro de retração econômica verificado no exterior, mas a partir de grupos de esquerda mobilizando vários segmentos sociais contra o reajuste de preços nas passagens do transporte público em São Paulo sob a bandeira do Movimento Passe Livre e agitando um inconsequente apartidarismo de inspiração socializante na palavra de ordem “Tarifa zero”, rapidamente outros movimentos vinculados à pauta reacionária e golpista se apropriaram delas, iniciando a partir dali e com o apoio entusiástico dos conglomerados midiáticos ações táticas de manifestações de rua contra o governo federal.

Após as eleições de 2014, novas edições das manifestações golpistas se agitaram, culminando com a convocação midiática para a data de 15 de março de 2015. Cabe ressaltar que a esquerda reagiu, apoiando o apelo de Lula para que se ocupasse as ruas em 13 de março a fim de demonstrar que também podemos ocupá-las na defesa das estratégias de inclusão. Imediatamente a CUT e a militância do PT e de outras agremiações de esquerda responderam, avaliando-se que o movimento poderia ter tido maior expressão caso houvesse maior envolvimento e empenho da direção partidária na mobilização. Mesmo assim, o dia 13 apresentou-se como um importante contraponto, sobretudo pelas condições precárias de mobilização.

A direita não teve esse problema. Com a cobertura convocatória permanente da mídia, colocou milhares nas ruas das capitais do país pedindo a saída de Dilma e o banimento do PT. Embalado pela visibilidade alcançada em 15 de março, o candidato derrotado nas eleições presidenciais partiu para a agitação pró-impeachment, da qual recuou com seu grupo ao constatar que naquele momento a iniciativa não vingaria nem lhe daria protagonismo algum.

No rastro dessa estratégia, as arbitrariedades da Justiça partidarizada se agravam com prisões a partir de delações premiadas mediante fundamento jurídico teratológico, como a hipótese de recolhimento ao cárcere para prevenir corrupção sem nenhum elemento objetivo. Desde a obtusa tese da teoria do domínio do fato (devidamente banida como antijurídica no país de origem) até a profusão autoritária de prisões preventivas e provisórias com fundamento exclusivo em delação premiada, na qual os delatores são convertidos em fontes idôneas e a presunção de inocência é substituída pela condenação antecipada, vêm se consolidando manobras golpistas com apoio no aparelho estatal.

É nessa conjuntura que se impõe ao governo Dilma a missão de ajustar as contas públicas, mediante retração de direitos sociais, desaceleração do crescimento e aumento na taxa de desemprego, com o compromisso de retomar o crescimento num futuro incerto. Desse quadro só é possível sair pela esquerda, preservando e aprofundando as conquistas obtidas, com apoio e protagonismo dos movimentos sociais.

Apresenta-se como alternativa a palavra de ordem de frente democrática para reunir no mesmo campo e sob um programa comum as forças progressistas a fim de formular uma orientação política diretamente sustentada pelo movimento de massas, em que haja essa possibilidade, na defesa da agenda social e da mudança na estrutura do Estado de maneira que se possa aprofundar as ações iniciadas em 2003 e combater frontalmente o retrocesso, a manipulação e a estigmatização em curso. Não é mais possível avançar dentro da camisa de força institucional tal como se evidencia.

O povo nunca deixou de lutar. Os professores do Paraná e de São Paulo são exemplos. As centrais sindicais mobilizam-se contra as medidas restritivas dos direitos sociais. Representantes dos movimentos vinculados à pauta de direitos humanos foram tirados à força do Parlamento por combater no Plenário da Câmara o retrocesso institucional em curso. Portanto, é hora de encurtar a distância entre inclusão e politização para unir na mesma pauta inclusão social e evolução política.

Douglas Martins de Souza é advogado, professor de Direito, mestre em Direito e doutorando em Filosofia (PUC/SP)