Mundo do Trabalho

A temática do trabalho decente em contraponto ao trabalho escravo tem sido trabalhada por órgãos internacionais e pelo Estado à luz da opressão de gênero

Nossas vestimentas têm origem no esforço da classe trabalhadora da indústria têxtil. Mas a maioria das pessoas da sociedade contemporânea não se importa como, a custo de que, quem e onde foram feitas suas roupas, que têm uma história muitas vezes marcada pela exploração de pessoas imigrantes e esgotamento de recursos naturais

a indústria da moda e o trabalho escravo de mulheres bolivianas em empresas da i

A exploração da força de trabalho de imigrantes bolivianas em São Paulo tem sido desvelada. (Foto: Ministéro Público do Trabalho)

A exploração da força de trabalho de imigrantes bolivianas(os) em São Paulo tem sido desvelada nos últimos anos. E veio à tona, inclusive, em grandes veículos midiáticos do país. Isso tem exposto o problema e sua gravidade para toda a população brasileira, além de chamar a atenção das autoridades públicas.

Várias ações do Estado e suas polícias, no sentido de dirimir o problema da exploração de pessoas bolivianas, vêm sendo realizadas na região paulistana onde se concentram possíveis oficinas de costura clandestinas. Tais operações de fiscalização surpreenderam os exploradores (coreanos e bolivianos envolvidos em esquemas inclusive internacionais) que conduzem o fluxo migratório, desde o país de origem, para ser utilizado como mão de obra barata e escrava nessas oficinas insalubres, em sua maioria. A situação é complexa, apesar de estarem combatendo a existência e a proliferação desses estabelecimentos, ainda há vários funcionando.

A temática do trabalho decente em contraponto ao trabalho escravo tem sido trabalhada e refletida por órgãos internacionais, como a Organização Internacional do Trabalho (OIT), e pelo Estado brasileiro (Ministério do Trabalho e Emprego, entre outras instituições) sob o ponto de vista da opressão de gênero. Uma vez que o papel socialmente construído da mulher a coloca num patamar desprivilegiado na divisão sexual do trabalho, em nossa sociedade que, historicamente, privilegia condições de vida e trabalho melhores para homens em detrimento de mulheres, nossa análise buscou dimensionar o olhar sobre a problemática do ponto de vista de críticas feministas para conseguirmos pautar a opressão de gênero vivida pelas mulheres bolivianas.

Consideramos que reflexões críticas sobre o tema do trabalho escravo no Brasil, bem como a luta para assegurar o trabalho decente para toda a classe trabalhadora, não podem deixar de açambarcar esse problema sem recortá-lo em termos de gênero, para que sejam visibilizadas as questões pertinentes às mulheres trabalhadoras, nesse âmbito.

Qual a relação existente entre a indústria da moda e o trabalho escravo de mulheres bolivianas em empresas da indústria têxtil brasileira localizadas em São Paulo?

Essa indagação nos estimulou a refletir sobre as relações entre trabalho escravo, moda e mulheres bolivianas no contexto brasileiro. Responder a essa pergunta nos levou a abrir um canal de escuta sobre a realidade de trabalho de algumas das mulheres que vivenciam, vivenciaram ou conhecem bolivianas vítimas de exploração em oficinas de costura localizadas no centro velho da cidade de São Paulo. O recorte de gênero foi nosso ponto de partida para pensar acerca dos efeitos do trabalho escravo em contraponto ao trabalho decente no Brasil, potencializados pela moda e suas mercadorias.

Podemos compreender o trabalho análogo ao escravo como aquele que ocorre em condições degradantes de trabalho (incompatíveis com a dignidade humana, caracterizadas pela violação de direitos fundamentais que ponham em risco a saúde e a vida do trabalhador), jornada exaustiva (em que o trabalhador é submetido a esforço excessivo ou sobrecarga de trabalho que acarreta danos à sua saúde ou risco de vida), trabalho forçado (manter a pessoa no serviço através de fraudes, isolamento geográfico, ameaças e violências físicas e psicológicas) e servidão por dívida (fazer o trabalhador contrair ilegalmente um débito e prendê-lo a ele). Esta definição está referenciada no artigo 149 do Código Penal Brasileiro1.

O Brasil tem se tornado um dos refúgios de imigrantes de países vizinhos com condições socioeconômicas menos favoráveis, dentre os quais a Bolívia, país de o origem de nossas entrevistadas, que vieram em busca de emprego, sobrevivência, qualidade de vida. São Paulo é um dos destinos escolhidos por imigrantes bolivianos cheios de sonhos e expectativas de viver melhor.

O combate ao trabalho escravo no Brasil tem se fortalecido desde que o Estado brasileiro e a OIT firmaram memorando de entendimento que previa o estabelecimento de um programa de cooperação técnica para a promoção da Agenda Nacional de Trabalho Decente, lançada em maio de 2006. Entre ações e iniciativas para a erradicação do trabalho escravo no Brasil podemos destacar as agendas estaduais de trabalho decente, o Plano Nacional de Emprego e Trabalho Decente (2010), a I Conferência Nacional de Emprego e Trabalho Decente (2012) e, no continente americano, a Agenda Hemisférica do Trabalho Decente (2006).

No livro Nas Costuras do Trabalho Escravo, de Camila Lins Rossi, o cotidiano da exploração de bolivianas e bolivianos é esmiuçado em situações que demonstram suas fragilidades no ambiente de trabalho opressor e inseguro:

(...) As oficinas, segundo contam os imigrantes, funcionam em porões ou em locais escondidos, porque a maior parte delas é ilegal e não tem permissão para funcionar regularmente. Por isso, para que os vizinhos não percebam, para não levantar suspeitas da polícia, para evitar que a confecção seja descoberta e denunciada, as máquinas funcionam em lugares fechados, onde o ar não circula e a luz do dia não entra. Para camuflar o barulho dos motores, música boliviana toca o tempo todo (ROSSI, 2005, p. 23).

Segundo o Centro de Apoio e Pastoral do Migrante (Cami), em São Paulo, atualmente há cerca de 200 mil bolivianos morando na cidade. Nem todos estão em situação legal, o que favorece a exploração pelas oficinas de costura clandestinas. Nelas, tais imigrantes são subjugados e mantidos em cárcere privado, por necessitarem de trabalho e se submeterem ao trabalho informal. Muitas vezes são vitimados por exploradores da força de trabalho boliviana, que lhes pagam salários irrisórios e ainda criam situações de endividamento e chantagem para que fiquem presos a uma situação típica do trabalho escravo ou degradante.

O governo federal brasileiro, em sua Agenda Nacional de Trabalho Decente, afirma ser uma de suas prioridades a promoção do trabalho decente como condição fundamental para superar a pobreza, reduzir desigualdades sociais, garantir um desenvolvimento sustentável e a governabilidade democrática no Brasil. De acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), “o trabalho decente é considerado como aquele adequadamente remunerado, exercido em condições de liberdade, equidade e segurança, capaz de garantir uma vida digna”.

Segundo entendimento do escritório da OIT, “trabalho decente é um trabalho adequadamente remunerado, exercido em condições de liberdade, equidade, segurança, sem quaisquer formas de discriminação e capaz de garantir uma vida digna a todas as pessoas que vivem de seu trabalho”. Essas duas definições se complementam no que concerne ao entendimento do trabalho que emancipa e contribui para o desenvolvimento saudável e produtivo do ser humano. Ambas podem ser levadas em consideração quando nos voltamos para a questão da exploração de mulheres bolivianas em São Paulo, principalmente porque a segunda inclui o termo discriminação, bastante significativo nas relações de poder do ambiente de trabalho ainda mais degradante para mulheres, negros, indígenas e imigrantes.

Geralmente, as vítimas bolivianas têm seus documentos de identificação retidos. Nos últimos anos, uma série de denúncias da organização não governamental Repórter Brasil levou à descoberta e ao fechamento de locais onde imigrantes bolivianos em condição ilegais, explorados e chantageados, tinham seus passaportes retidos, em São Paulo. Isso é asseverado pelo fato de não possuírem o direito legal à permanência no Brasil, apesar de o Cami estar desenvolvendo várias ações para legalização de imigrantes na cidade.

Em março de 2013, em fiscalização realizada zona leste da capital paulista, o MTE desvelou mais uma quadrilha que explorava grupo de bolivianos e bolivianas. Os auditores fiscais encontraram os(as) estrangeiros(as) em um sobrado no bairro Belenzinho, no momento em que confeccionavam roupas das marcas Emme e Luigi Bertoli. A empresa responsável, GED, se declarou “enganada” ao contratar a prestadora de serviços que explorava mão de obra boliviana no local (“28 bolivianos são resgatados de oficina de costura na zona leste de São Paulo”, Folha de S.Paulo).

O trabalho em condições degradantes acontece, principalmente, no contexto da indústria têxtil e suas terceirizadas (oficinas de costura de pequeno porte). Essas empresas que exploram mão de obra imigrante de diversas nacionalidades compõem a lista suja do trabalho escravo, identificadas nos relatórios do MTE.

A Walk Free Foundation, que criou o Índice de Escravidão Global, divulgou estudo no qual classifica 162 países de acordo com a proporção de escravos contemporâneos em relação à população. Curiosamente, o problema também atinge países ricos como Suíça e Suécia. Atualmente, cerca de 29 milhões de pessoas estão escravizadas no mundo, segundo o relatório da instituição.

Segundo Antunes (2009): As relações entre gênero e classe nos permitem constatar que, no universo do mundo produtivo e reprodutivo, vivenciamos também a efetivação de uma construção social sexuada, onde os homens e as mulheres que trabalham são, desde a família e a escola, diferentemente qualificados e capacitados para o ingresso no mercado de trabalho. E o capitalismo tem sabido apropriar-se desigualmente dessa divisão sexual do trabalho (p. 109).

Por conseguinte, consideramos que as relações de gênero implicam análises de relações de poder, no mundo do trabalho, uma vez que ainda não há equidade salarial e de condições entre homens e mulheres. Sabemos que as categorias analíticas gênero e classe interagem e contribuem para a opressão das mulheres na divisão sexual do trabalho. E, no caso das mulheres bolivianas em São Paulo, a opressão se materializa nos produtos da moda que elas produzem em condições de trabalho análogas às da escravidão.

É um desafio desconstruir a lógica machista nas relações de trabalho e em todas as relações que permeiam a sociabilidade, uma vez que isso interfere diretamente na vida das mulheres, sobrecarregando-as de trabalho, desvalorizações e pressões cotidianas que implicam relações de poder sempre desfavorecedoras para elas.

É imprescindível discutir a oposição simbólica entre moda e trabalho escravo – a moda que tem sua indústria a todo o vapor em todo o mundo, lucrando bastante na medida em que vende seus produtos (e a simbologia impressa neles e suas marcas renomadas) provenientes de mão de obra escravizada de mulheres bolivianas em São Paulo e de várias outras e de nacionalidades diferentes noutras partes do globo, como no Vietnã, por exemplo.

Mas como se dá essa oposição? De que forma a moda, que tem todo o seu glamour expresso nos desfiles nos dias de hoje, oprime e explora mulheres mundo afora?

Define-se moda, segundo o Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, como uso, hábito ou estilo geralmente aceito, variável no tempo, resultante de determinado gosto, ideia, capricho e das interinfluências do meio; uso passageiro que regula as formas de vestir, calçar, pentear etc.; arte e técnica do vestuário; maneira, feição, modo. A palavra que a designa deriva do francês mode, que por sua vez, deriva do latim modus, cujo significado é medida, moderação, limite, maneira ou gênero. Em inglês, se diz fashion para falar em moda. Ou seja, ela implica valores e não somente adornos ou vestimenta. Ou melhor, ela tem a ver com o valor simbólico atribuído a essas peças de roupas, calçados e adereços que são resultado de trabalho escravo.

Esse valor simbólico dos produtos da moda está presente no imaginário da sociedade e é alimentado pela própria moda, em seu sentido mais abrangente. Valor expressivo no mercado capitalista (e ao qual se atribui status social – as bolivianas entrevistadas consideram “chique” usar roupas “de grife” e não estabelecem ligação entre as roupas caras que produzem e a exploração a que são submetidas para produzi-las, de prontidão; apesar de sentirem na pele seus efeitos e admitirem que, mesmo achando “lindas as roupas que são caras e que não podem comprar”, são exploradas porque isso é visível/inegável nas suas vidas) que é direcionado para marcas da moda patentearem.

Outrossim, podemos entender a moda atual como um sistema de instituições e

(...) Em este sentido, quero advertir que la moda no debe ser entendida como lo externo, lo material que envuelve um cuerpo (KONIG, 2002) sino como aquello que se erige como símbolo cultural a través de uma estrutura o sistema. Asi, mientras hacer ropa implica um processo de manufactura de objetos materiales, hacer moda estraña uma construccion ideologia (KAWAMURA, 2006). (GOMÉZ, 2008, p.4)2.

Aqui, concebemos a moda como fenômeno social total que emerge de lógicas de consumo e produção capitalistas, alimentadas por imagens, símbolos e a comunicação destes através de mecanismos que expressam, em roupas, sapatos e adereços, nos sujeitos, as diferenças e afinidades compartilhadas, as hierarquias simbólicas (a luta de classes não escapa à moda) e desejos de reconhecimento (nossas entrevistadas almejam ter “sucesso na vida”, e isso implica viver, morar, comer e se vestir melhor, “como pessoas ricas se vestem”).

Então, a placidez, a limpidez, a beleza estética, a importância pública e o status social que a moda imprime nos sujeitos que a utilizam (há roupas para determinadas classes sociais, porque a moda é uma camaleoa que se adapta para vender seus produtos e suas ideias para pessoas com muito ou pouco poder aquisitivo), a incorporam, costumam camuflar e desviar nosso olhar dos aspectos sujos dos trabalhos escravos por trás dela. Assim, descola-se do caráter degradante do trabalho que a produz gerando o seu próprio valor expressivo reprodutor de lucros em mercadorias feitas de escravidão contemporânea e sangue imigrante.

Portanto, a moda conota a esfera social e está entrelaçada no imaginário coletivo com outras palavras como adorno, traje, vestido, estilo etc. Remete a valores, normas, linguagem, e enseja a distinção social e relações de poder. Favorece a difusão de ideias implícitas nas suas mercadorias. O sistema da moda implica bens materiais e sua lógica na produção e consumo destes. A moda expressa diferenças e afinidades compartilhadas, desejos de reconhecimento, e expressa hierarquias simbólicas, como já falamos.

Assim, a exploração das mulheres bolivianas através do sistema da moda se dá também por meio de outras mulheres, essas de classes sociais mais favorecidas, que consomem o construto ideológico da moda, materializado nos seus produtos estilizados e dotados de valores simbólicos como poder, felicidade, riqueza, estilo, luxo, liberdade etc. Várias mulheres brasileiras (burguesas, de classe média e até trabalhadoras) andam por aí vestidas com blusas feitas em oficinas de costura clandestinas de São Paulo, onde se lê “Free”.

Nossas entrevistadas vivenciam a tripla jornada de trabalho na pele, como a maioria das mulheres em nossa sociedade estruturada com relações machistas. Trabalham exaustivamente nas oficinas e continuam trabalhando ao chegar em casa. Isso quando não se trata daquelas que moram no ambiente de trabalho e têm quase totalmente suprimidos seus momentos de lazer.

Compreendemos o machismo como o entendimento equivocado de que homens são superiores em relação às mulheres em nossa sociedade. Ideia esta convertida em prática que oprime, violenta e massacra diariamente mulheres de todo o mundo que ainda têm a responsabilidade de reproduzir a humanidade (significa que elas não têm opção e devem ter filhos e cuidar destes para que se transformem em mais mão de obra para o caldeirão do capitalismo e seu mundo do trabalho) e realizar a manutenção dos lares. Isso se soma a infinitas jornadas que fazem da mulher trabalhadora escrava, já que lhe sobram quinze minutos, em média, para realizar uma atividade de que goste ou precise para si própria: o banho. Essa informação pode ser encontrada em pesquisas sobre mulheres brasileiras da Fundação Perseu Abramo (FPA).

Segundo pesquisa desenvolvida em 2011 com mulheres brasileiras, pela mesma FPA, a cada dois minutos, cinco mulheres apanham no Brasil. Esse dado corrobora a realidade machista à qual a maioria das mulheres está submetida, ainda nos dias de hoje, apesar dos avanços na luta desenvolvida pelos movimentos feministas em diversos países. Essa é a realidade vivenciada por nossas entrevistadas: são trabalhadoras exploradas de diversas formas. Sentem a exploração vinda de todos os lados, pois, após exaustivas horas de trabalho na oficina clandestina de costura, ainda encontram tarefas domésticas a sua espera, quando chegam em casa e escutam o companheiro exigindo o jantar. Nesse sentido, o feminismo, enquanto corrente ideológico-política, tem pautado, ao longo de décadas, a opressão de gênero nas relações de trabalho e nos levado a refletir sobre os grilhões diários que asseveram a opressão das mulheres nas bases da produção capitalista.

Em se tratando do papel social da mulher sob o olhar emancipador contemplado nos eixos das políticas de trabalho decente:
Se o primeiro e monumental empreendimento – a emancipação da humanidade e a criação de uma “associação livre dos indivíduos” – é um empreendimento dos homens e mulheres que trabalham, da classe trabalhadora, a emancipação específica da mulher em relação à opressão masculina é decisiva e prioritariamente uma conquista feminina para a real e omnilateral emancipação do gênero humano. À qual os homens livres podem e devem somar-se, mas sem papel de mando e controle (ANTUNES, 2009, p. 111).

Portanto, consideramos que o gênero, enquanto um dos marcadores sociais da diferença (no mundo do trabalho, acaba por se configurar em desigualdades de oportunidade, condições de trabalho, remuneração e outras opressões na vida de trabalhadoras exploradas), assevera a exploração vivenciada pelas mulheres bolivianas que estão nas bases da indústria têxtil brasileira e, por assim dizer, mundial.

Em Os Sentidos do Trabalho, o sociólogo do trabalho, Ricardo Antunes diz que:
A mulher trabalhadora, em geral, realiza sua atividade de trabalho duplamente, dentro e foda de casa, ou, se quisermos, dentro e fora da fábrica. E, ao fazê-lo, além da duplicidade do ato do trabalho, ela é duplamente explorada pelo capital: desde logo por exercer, no espaço público, seu trabalho produtivo no âmbito fabril. Mas, no universo da vida privada, ela consome horas decisivas no trabalho doméstico, com o que possibilita (ao mesmo capital) a sua reprodução, nessa esfera do trabalho não diretamente mercantil, em que se criam as condições indispensáveis para a reprodução da força de trabalho de seus maridos, filhos/as e de si própria(...) (p. 108).

Mudar para o Brasil não foi uma escolha fácil para essas mulheres bolivianas. Oito das entrevistadas vieram trazendo filhos e/ou acompanhadas do seu companheiro. Quando chegam ao país, enfrentam a dura realidade de informalidade em trabalhos degradantes e a ilegalidade por não possui visto de permanência no país. A maioria se submeteu a trabalhar em oficinas de costura para sobreviver e alimentar seus filhos, enquanto os companheiros buscam trabalhos em lanchonetes, restaurantes, bares e tentam ser vendedores ambulantes.

É inevitável perceber que há uma opressão advinda da desigualdade social na vida dessas mulheres. Ou seja, há aí uma combinação entre gênero e classe social favorecendo, minuciosamente, a exploração e opressão das mulheres bolivianas, no contexto das relações sociais de trabalho. Apenas uma mulher possuía casa própria e as demais pagavam aluguel caro por um quarto úmido, pequeno, sem espaço para criar filhos e viver, dignamente, em São Paulo. As outras nove afirmaram pagar aluguel em locais simples e muitas vezes insalubres.

Para entender como a moda interfere na nossa vida e, em especial, na vida das mulheres bolivianas entrevistadas, é necessário, todavia, percebê-la como conotação da esfera social tomada pelo poder simbólico das mercadorias que ela produz; entrelaçando-se no imaginário coletivo com outras palavras, tais como traje, adorno, vestimenta, estilo etc., e influenciando-o a ponto de favorecer a difusão de ideias implícitas nas suas mercadorias. Também entendê-la para além da sua externalidade expressa no material que pode envolver um corpo, mas sim como símbolo cultural que penetra o imaginário coletivo e implica uma lógica de consumo complexa. Essa moda enseja em si, em termos de nicho de mercado, a dominação de classes à qual está submetida a população imigrante que produz e reproduz suas lógica e mercadoria. E é intrínseca a essa mesma moda, enquanto produtora de mercadorias, a luta de classes que se sufoca em meio às explorações da mão de obra imigrante em vários países do globo. Podemos destacar a realidade vivenciada pelas nossas entrevistadas amalgamadas a todo o escopo simbólico do mundo da moda.

Pierre Bourdieu diz que “o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (BOURDIEU, 2002, p. 7-8).

Compreender que a moda, no contexto do capitalismo, não se resume, simplesmente, a um hábito, uma maneira de se vestir, uma coleção de roupas que são necessárias para nossos corpos que, então, ficariam nus se elas não existissem é negar os valores, as normas e a distinção social que ela enseja, em suas relações de poder. O sistema da moda, no âmbito do mercado capitalista, implica bens materiais. Antes, é claro, a lógica da produção e consumo destes. E é na cadeia produtiva, no mais baixo escalão, que estão inseridas as entrevistadas desta pesquisa e outros milhares de mulheres mundo afora.

Em relação ao fetiche das mercadorias produzidas pela moda, resultado da exploração da mão de obra barata de mulheres bolivianas no Brasil e de outras mulheres de vários outros países do mundo, podemos dizer que:
À primeira vista, a mercadoria parece ser coisa trivial, imediatamente compreensível. Analisando-a, vê-se que ela é algo muito estranho, cheio de sutilezas metafísicas e argúcias teológicas. Como valor de uso, nada há de misterioso nela, quer a observemos sob o aspecto de que se destina a satisfazer necessidades humanas, com suas propriedades, quer sob o ângulo de que só adquire essas propriedades em consequência do trabalho humano (...) (MARX, 2011, p. 92).

Atualmente, a moda é um sistema de instituições que se retroalimentam. Ela expressa diferenças e afinidades compartilhadas; desejos de reconhecimento e hierarquias simbólicas. Há um abismo entre as trabalhadoras bolivianas escravizadas e a moda com suas “roupas de grife”, escravizando mulheres de todas as classes sociais em padrões de beleza e vestimenta. Essa distância aumenta cada vez que mais uma mulher é explorada e, simultaneamente, mais uma filial de alguma loja de roupas se abre, dando mais lucros ao mercado de vestimentas.

O fetiche em torno das roupas, mercadorias imprescindíveis para a indústria têxtil brasileira, é introjetado a cada propaganda que é feita para promover determinada coleção que emerge das subterrâneas oficinas de costura. Ou seja, não há produtos se não existem escravas das classes sociais rebaixadas pelo capitalismo, em São Paulo ou em qualquer outro país onde a lógica do trabalho decente ainda não tenha conseguido erradicar trabalhos degradantes. O produto final tem o destino que convém à moda e suas “coleções e estações” comerciais. Muitas das mulheres que fabricam produtos da moda não sabem, de fato, qual o valor atribuído a estes e, tampouco, o lucro que as empresas têxteis, marcas e lojas de vestimentas faturam explorando o trabalho de várias pessoas.

Nossas vestimentas têm origem. Nascem do trabalho de costureiras e costureiros, de máquinas da indústria têxtil e de todo o esforço da classe trabalhadora desse nicho de mercado. Mas a maioria das pessoas da nossa sociedade contemporânea não se importa como, a custo de que, quem e onde foram feitas suas roupas, em termos de detalhes. Produtos finais que são, as roupas contêm uma história, e muitas vezes uma história marcada pela exploração de pessoas imigrantes e esgotamento de recursos naturais.

Conclusão
Por fim, pensamos que a moda exerce seu “poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário” (BOURDIEU, 2002, p.14).

As mulheres bolivianas entrevistadas disseram admirar as roupas que produzem e querer possuí-las, abraçando o caráter simbólico destas, inadvertidamente. Gostariam de consumi-las porque isso significa adquirir o status social que já não têm com o trabalho extremamente escravizador de seu cotidiano. Ao invés de desenvolveram alguma rejeição aos milhares de produtos (“roupas de grife”) que fabricam, em cargas horárias exaustivas e ambientes de trabalho insalubres, vivem alimentando seus fetiches em relação a essas mercadorias que produzem com muito suor. Anseiam ascender socialmente para outra classe social e, dessa maneira, ter condições socioeconômicas para morar, comer e até se vestir melhor.

Quanto à moda que veem por aí, nos desfiles, nos shoppings, nos programas de TV, elas consideram belas e “chiques”, mas só têm posses para adquirir peças de imitação. Ou seja, a exploração de mulheres bolivianas em São Paulo se alimenta também dessa oposição simbólica escamoteada entre moda e trabalho escravo. Precisamos, por isso, combater a lógica do trabalho escravo em todas as suas nuances e articulações no âmbito da nossa sociedade fortemente marcada pela opressão de classe e gênero capitalistas.

(Esse artigo resultou de estudos das atividades de bolsa de pesquisa científica em graduação que compôs o Projeto Trabalho Decente, do Núcleo de Pesquisa da Fesp, sob orientação da profª. Drª. Carla Diéguez, entre maio de 2013 e abril de 2014, na cidade de São Paulo.)

Referências
ALVES, Ubiratan Silva. Imigrantes Bolivianos em São Paulo – A Praça Kantuta e o futebol. Tese de doutorado. Unicamp, 2011.

ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho: Ensaio sobre a Afirmação e a Negação do Trabalho. São Paulo: Boitempo, 2009.

BAENINGER, Rosana; SOUCHAUD, Sylvain. Vínculos entre a Migração Internacional e a Migração Interna – O caso dos bolivianos no Brasil. Organizado pela Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Celade) – Divisão de População, com apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). ONU: Brasília, 2007.

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. 5ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

FREITAS, Patrícia Tavares de. Imigração e Experiência Social: o Circuito de Subcontratação Transnacional de Força de Trabalho Boliviana para o Abastecimento de Oficinas de Costura na Cidade de São Paulo. Dissertação. Unicamp, 2009.

GÓMEZ, Joan Jiménez. La Moda y La Classe Social en la Era del Consumo. Tese. Barcelona: Universidade Autônoma de Barcelona, Departamento de Sociologia, 2008.

MARX, Karl. O Capital – Crítica da Economia Política: livro I. 29ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

TOLEDO, Cecília. Mulheres: o Gênero nos Une, a Classe nos Divide. São Paulo: Sundermann, 2008.

Yasmim Nóbrega de Alencar é pesquisadora orientanda, estudante de Sociologia e Política, na Fundação Escola de Sociologia e Política (Fesp), bailarina, arte-educadora e ativista da Liga Brasileira de Lésbicas (LBL) ([email protected])

Carla Diéguez é professora na Fesp, orientadora da pesquisa, doutora e socióloga do trabalho ([email protected])