Sociedade

Podemos afirmar que se vivencia hoje nas escolas um sinal de fortes mudanças nas maneiras usuais de pensar, agir e construir uma sociedade democrática

Entre os jovens de hoje, o espalhamento da noção de direitos tem provocado uma certa desnaturalização da lógica do favor, diminuindo espaços de clássicos clientelismos e outras formas de subserviência. Algumas mudanças fizeram com que, hoje, o Brasil conservador seja obrigado a conviver com um novo patamar de exigência de direitos de cidadania, no qual a ocupação das escolas surpreende, revela e ensina

As ocupações das escolas resultam de uma trajetória de mobilizações iniciada nas

As ocupações resultam de uma trajetória de mobilizações iniciada nas jornadas de 2013. (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)

Paulo, um jovem secundarista paulista, entrevistado, em maio de 2016, para um programa de televisão disse que para ele tudo tinha começado em junho de 2013. Contou que naquela época foi para as ruas porque achava que tinha “que defender seus direitos”, mas (confessa) não entendia muito o que estava acontecendo. Depois dessa experiência, começou a participar de um “coletivo”, aí passou a entender mais e se tornou “militante”. Em 2015, fez parte do movimento de ocupação contra uma reforma no sistema educacional proposta pelo governo do estado de São Paulo. E, finalmente, em 2016, com quase dezoito anos, estava acampado em uma escola para “exigir a instalação de uma CPI para investigar o desvio da verba destinada à merenda escolar”.

De início, é preciso dizer que Paulo pertence a uma geração que cresceu em um tempo histórico em que houve um significativo espalhamento da palavra “direitos”. Certamente em uma sociedade desigual e eivada de contradições, essa noção não é unívoca e é apropriada de diferentes maneiras. Porém, de maneira geral, a noção de “direitos” evoca o poder público e, consequentemente, leva a cobranças por políticas públicas.

Relembrando 2013

Seguindo o relato de Paulo, vamos relembrar 2013. É bom sublinhar que a juventude espelha a sociedade em todas as suas possibilidades, disputas e contradições. Assim, não deveríamos estranhar que, naqueles dias, os jornais também registrassem a presença de jovens que foram para as ruas com suas bandeiras e camisas verde-amarelas, renegando partidos políticos e até mesmo evocando a volta do regime militar. Sem dúvida, pode-se dizer que naquela ocasião iniciaram articulações conservadoras que, pelo desdobramento posterior, ainda merecem profunda reflexão.

Neste artigo vamos nos deter a compreender as experiências dos jovens que foram às ruas em busca da efetivação de direitos de cidadania. Nesse âmbito, é preciso dizer que a participação dos jovens nas manifestações de 2013 não pode ser vista como “um raio em meio a um céu azul”. Com efeito, foram dez anos de mobilização entre a chamada Revolta do Buzu em 2003, quando estudantes secundaristas lutaram pelo acesso ao transporte público urbano em Salvador, e as Jornadas de Junho de 2013, quando o Movimento Passe Livre (MPL) convocou a sociedade para protestar contra o aumento no preço das passagens em São Paulo.

As manifestações que tomaram o Brasil em 2013, contudo, não teriam acontecido sem uma singular conjugação de fatores e experiências sociais. De certa forma, os protestos não teriam sido como foram se não fossem as referências de movimentações internacionais. Naqueles dias, foram incorporadas características de protestos juvenis mundiais evidenciados nos movimentos antiglobalização e alter-globalização (sempre se modificando), entre os Indignados na Espanha, do Occupy nos Estados Unidos, bem como táticas como black blocs e símbolos como Anonymous, com suas máscaras do personagem do filme V de Vingança

De outro lado, os personagens que povoaram as ruas em 2013 certamente mostram acúmulo de distintos movimentos, redes e coletivos de juventude no Brasil. As reportagens de jornais de grande circulação e também as mídias alternativas destacaram a presença de jovens do MPL, do Levante Popular da Juventude, de estudantes universitários, alunos do ensino médio, jovens de redes de mídia independente (autodenominados midiativistas e midialivristas), de pastorais católicas e grupos ecumênicos, membros da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), grupos feministas, coletivos culturais, jovens ligados ao Movimento de Moradia e Mobilidade Urbana e, ainda, de diferentes grupos de punks e anarquistas.

Ou seja, múltiplos engajamentos e identidades juvenis se apresentaram no espaço público. As faixas, as palavras de ordem, os posts no Facebook e Twitter mostraram como diferentes experiências de discriminação podem se somar na vida de um mesmo jovem (ser jovem, ser negro, ser favelado, ser homossexual, ser mulher, ser da área rural etc.). Além disso, algumas reportagens mencionaram a presença de jovens trabalhadores que se agregavam às manifestações, no fim do expediente. Também jovens moradores de favelas e periferias foram citados em reportagens de jornais e em comentários nas redes sociais.

No Rio de Janeiro, o dia 25 de junho de 2013 ficou marcado pela presença de cerca de 2,5 mil pessoas, na maioria jovens, que saíram da Rocinha e do Vidigal (favelas cariocas) em passeata até a casa do governador Sérgio Cabral Filho, portando cartazes que diziam: “Nós não precisamos de teleférico”; “Queremos saneamento básico”, “Precisamos de vagas em creches públicas”, “Fora a Resolução 013” (que instituía a necessidade de licença para atividades culturais nas favelas).

Aos “organizados” se juntaram também os chamados jovens “virgens de protestos” ou “estreantes” que participavam pela primeira vez atendendo, sobretudo, a convocações virtuais. De fato, nem só “organizado”, nem só “espontâneo”, a velocidade dos protestos deveu-se, no geral, às novas tecnologias de informação e comunicação. As redes funcionaram com eficácia tanto na convocação quanto na transmissão “ao vivo”, inovando as relações entre quem estava na rua e quem estava em casa.

Naqueles dias, principalmente, após as cenas de violência da polícia de São Paulo contra os manifestantes, ficou evidente como redes de comunicação independentes podem pautar e questionar versões da grande mídia. Foi o que aconteceu naqueles dias de 2013 com a atuação de vários movimentos e redes, tais como Fora do Eixo, Movimento Enraizados, Mídia Ninja (Narrativas Independentes Jornalismo em Ação) e Coletivo Papo Reto, entre outros.

O processo de “convergência de mídias” possibilitou que conteúdos tratados separadamente, em vídeos, textos e imagens, passassem a ser reunidos em um só espaço, o que permite um novo tipo de aprendizado e acúmulo de informações. Certamente, nos meios virtuais, existem redes homofóbicas, expressões nazistas, preconceitos raciais e exercícios de bullying. Afinal, os recursos tecnológicos podem ser (re)apropriados por jovens de diferentes classes sociais e perfis ideológicos. O ciberespaço também reflete as disputas presentes na sociedade.

Contudo, a bandeira por “software livre” também foi ganhando destaque nas organizações juvenis pautando questões de autonomia, qualidade de acessos e democratização de instrumentos tecnológicos. Assim, com os recursos tecnológicos disponíveis, movimentam-se redes virtuais para difundir causas, convocar para eventos, documentar manifestações. Surgem, então, possibilidades inéditas de identificação e articulação social, possibilitando a realização de atividades em conjunto com quem está geograficamente separado.

É nesse contexto que os jovens das periferias também se tornaram novos mediadores sociais, levando informações e provocando debates. Para eles, a internet tem sido também um meio de registro e de construção de memória de seus territórios. No Rio de Janeiro, sobretudo após a repressão policial contra os professores no dia 15 de outubro de 2013, “midialivristas de favela” ganharam visibilidade. Em uma identificação conjuntural, alguns desses jovens aderiram à tática de luta conhecida como black bloc. Como disse um entrevistado à época, essa tática performática serviu para encarar a polícia e “extravasar o sentimento de aprisionamento, de segregação que o Estado causa nas favelas”.

Sem dúvida, as tecnologias de informação e comunicação (TIC) não agem em espaços vazios de valores e experiências sociais. Pesquisas têm registrado a experiência negativa dos jovens brasileiros com a polícia, que achaca os jovens de classe média exigindo propinas, assim como humilha e agride fisicamente jovens moradores de áreas pobres e criminalizadas. Experiências negativas com a polícia criam elos entre jovens com trajetórias diferentes. Ou seja, as manifestações de 2013 não teriam o mesmo nível de adesão se não tivessem circulado vídeos e fotos que evidenciam a violência usada pela polícia (sobretudo em São Paulo e no Rio de Janeiro).

Naquele contexto de 2013, em um movimento de espiral, o “preço das passagens” foi puxando a necessidade de políticas de transporte, educação, saúde e, também, segurança, o que acabou sendo diretamente relacionado ao mau uso do dinheiro público, com gastos de grandes eventos, em particular a Copa do Mundo. Ao mesmo tempo, conquistas recentes, relativas à orientação sexual e aos direitos das mulheres, legitimaram a presença de cartazes e palavras de ordem que remetem ao “direito à diferença”. Pelas ruas também foram vistos cartazes com “Fora Feliciano”, que presidia a Comissão de Direitos Humanos na Câmara Federal e publicamente fazia declarações homofóbicas e machistas.

E depois de 2013?

Voltemos agora à trajetória de Paulo citado no início deste artigo. Ele que era um “estreante” em manifestações passou a fazer parte de um “coletivo”. E, não demorou muito, tornou-se um “secundarista” ativo participante nas ocupações de escolas públicas. Paulo participou das ocupações em São Paulo iniciadas em novembro de 2015 para se contrapor a uma reforma que pretendia dividir “as escolas por séries e criar mais escolas de ciclo único”, o que implicava o fechamento de 94 escolas cujos prédios passariam para outros órgãos.

Foram cerca de duzentos estabelecimentos estaduais ocupados em um movimento que acabou escancarando nas redes sociais e na imprensa o estado precário das escolas. Depois das críticas à ação truculenta da Polícia Militar por ocasião das manifestações dos estudantes e, também, mediante a forte queda de popularidade de Geraldo Alckmin, o governo recuou. Em dezembro de 2015, a decisão da Justiça de São Paulo reforçou a suspensão da reorganização escolar para 2016. Desde então, essa vitória dos secundaristas de São Paulo inspirou outras tantas ocupações.

Como vimos, há mais de uma década, através da questão do transporte, os jovens do ensino médio vêm renovando a pauta do movimento estudantil. Nesse novo fazer do movimento estudantil, as questões de acesso (vagas) têm cedido maior espaço às referentes a melhorias do ensino público. Nos últimos anos, por meio das ocupações, os jovens secundaristas, em várias cidades do país, defendem maior participação estudantil nas decisões escolares; valorização dos professores; melhora da infraestrutura de prédios deteriorados, banheiros precários e salas de aula sem ventilação. Também foram feitas denúncias sobre material escolar e equipamentos não distribuídos, bem como sobre as péssimas condições de bibliotecas, laboratórios e salas de informática.

“Ocupando a gente chama atenção”, diz Diana, uma jovem de Porto Alegre, também identificada em um jornal local como “filha de 2013”. E o que mais significa “Ocupar e resistir” no território escolar? Significa convencer as famílias de que a causa é justa. Significa conseguir doações para alimentação e outras despesas. Significa agir em rede para convocar para escrachos, atos e outras manifestações de rua. Significa também contar com “parceiros” – como Levante Popular da Juventude, Mídia Ninja e Jornalistas Livres, entre outros –, que possam potencializar a circulação de fotos, vídeos de suas performances. Significa, ainda, criar uma espécie de rede de proteção (virtual e presencial) que de alguma maneira constranja a violência policial.

Em resumo, historicamente inéditas, as ocupações nas escolas reafirmam três das principais características dos atuais movimentos juvenis, a saber: a importância das TICs e das novas formas de interação entre indivíduos conectados; a afirmação da horizontalidade e negação de uma única direção centralizada e, por fim, a forte presença de diferentes linguagens artísticas e de comunicação que tornam a “ação direta” nas escolas mais divertida, irreverente e performática.

Porém, vale ainda chamar a atenção para as tensões que têm lugar nas ocupações. Entre os próprios secundaristas há divergências expressas recentemente por um movimento autodenominado Desocupa, que reivindica a volta às aulas. Ainda não se sabe o quanto é possível dialogar com estes opositores (e com seus aliados). Mas, se houver espaço para a disputa de valores, novas maneiras de conquistar corações e mentes deverão ser experimentadas.

Já entre os secundaristas e as organizações juvenis mais amplas que os apoiam existem tensões que remetem às clássicas disputas em torno de autonomia, coordenação e direção dos acontecimentos. Nesse caso, a realidade está a exigir reinvenções de concepção e práticas políticas que favoreçam aproximações e ações conjuntas entre organizações sem pretensões de conquistar “hegemonia do movimento”.

Política também se aprende na escola

Como concluir? Lembrando mais uma vez da trajetória de Paulo, citado nas primeiras linhas deste artigo, podemos visualizar uma ampliação do campo de possibilidades de participação dessa geração. Entre os jovens de hoje, o espalhamento da noção de direitos tem provocado uma certa desnaturalização da lógica do favor, diminuindo espaços de clássicos clientelismos e outras formas de subserviência. Ou seja, algumas mudanças fizeram com que, nos dias de hoje, o Brasil – persistentemente hierárquico e excludente – seja obrigado a conviver com um novo patamar de exigência de direitos de cidadania. Nesse novo patamar, a ocupação das escolas surpreende, revela e ensina.

Entre os ensinamentos, o mais importante: a valorização da escola pública em suas múltiplas dimensões. Chama a atenção o cuidado com que os “secundas” têm tratado o patrimônio público, cuidando da manutenção das quadras, dos equipamentos e salas de aula. Já as atividades culturais, as rodas de conversação e discussão política tem transformado as escolas em criativos espaços de convivência das diversidades (de causas e atores) que compõem o mundo da participação juvenil. Ainda é cedo para avaliação das repercussões dessas experiências. Mas, já podemos afirmar, vivencia-se hoje nas escolas um sinal de fortes mudanças nas usuais maneiras de pensar, agir e construir uma sociedade democrática.

Regina Novaes é antropóloga, como pesquisadora do CNPq, desenvolve projetos de investigação nas áreas de Juventude, Religião e Política. Integra o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo