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A discussão sobre a franquia de dados para a internet fixa, com prejuízo para os consumidores e conveniência das operadores, não está passando pela população

O recuo da Anatel em abril, quando a agência proibiu a adoção de franquias de dados na internet fixa por parte das operadoras, foi uma grande vitória da mobilização popular. Mas com o golpe em curso, o discurso da agência mudou e estamos diante da possibilidade de que uma intervenção tão impactante na vida social passe despercebida

As empresas se aproveitam da crise política para impor uma restrição de uso que

As empresas se aproveitam da crise política para impor uma restrição de uso que ofende direitos. (Foto: Portal Brasil)

A discussão acerca da franquia de dados para a internet fixa não está passando pela população, por mais que a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) reafirme a necessidade de um amplo debate com a sociedade e com todas as partes envolvidas. Isso é conveniente para as operadoras interessadas na limitação de dados e para a própria Anatel, que chegou a ser acusada pelo presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Claudio Lamachia, de atuar como instrumento das operadoras em prejuízo dos consumidores.
Acesso à informação, nos tempos de hoje, é um direito básico dos cidadãos. Em 2004, 20% da população brasileira estavam conectados à internet. Dez anos depois, esse número saltou para 50%. A inclusão digital proporcionada aos brasileiros pelos governos Lula e Dilma garantiu que milhões de pessoas se atualizassem, pudessem se informar e se expressar, das mais diversas maneiras, sobre diferentes assuntos.

O passo seguinte, portanto, é garantir que todos esses novos internautas consigam manter a qualidade de sua navegação, já incorporada ao dia a dia, e absolutamente fundamental para todas as esferas da vida: pesquisa, educação, saúde, compras, acesso a direitos, entretenimento. Por tudo isso, a internet é uma imprescindível condição da cidadania nos dias atuais.

Como o debate da presente crise política brasileira ocupa hoje, de forma quase exclusiva, o espaço da mídia e o da opinião, a ofensiva contra o livre acesso à internet acaba sendo varrida para baixo do tapete. O recuo da Anatel em abril, quando a agência proibiu a adoção de franquias de dados na internet fixa por parte das operadoras, foi uma grande vitória da mobilização popular.

Uma enxurrada de críticas e mais de 1,5 milhão de assinaturas contrárias à limitação de dados fizeram com que a Anatel e as operadoras retrocedessem naquele momento. Vale ressaltar que na ocasião a presidenta eleita, ainda em exercício, Dilma Rousseff, teve uma intervenção crítica para evitar a adoção de franquias. Dilma agiu de acordo com o princípio de que a internet não pode ser tratada apenas como um bem de consumo, já que constitui elemento indispensável para o desenvolvimento social.

Com a adoção de franquias, quanto menor a velocidade contratada, maior o limite de uso. Dessa forma, os mais pobres e com menos recursos seriam seriamente prejudicados, já que a estratégia das operadoras é justamente fazer com que o uso ultrapasse o limite preestabelecido. A medida intensificaria ainda mais a desigualdade, pois criaria uma internet dos ricos, com melhores condições de ter um plano mais abrangente, e uma outra para os pobres, com planos mais econômicos, franquias menores e menor capacidade de navegar com qualidade na internet.

O presidente da Anatel, João Rezende, disse que daria uma resposta ao mercado cinco meses após a decisão de abril. Com o golpe em curso, Dilma afastada e Temer na interinidade, o discurso conciliatório da agência já mudou. Com a turbulência no meio político, a Anatel joga novamente com a possibilidade de que uma intervenção tão impactante na vida social passe despercebida.

No início do mês de junho, Rezende em evento realizado pela  Associação Brasileira de Provedores de Internet e Telecomunicações (Abrint) afirmou que não irá regular ou controlar os modelos de negócios das empresas prestadoras de acesso à internet. Ou seja, as operadoras ficariam livres para optar entre estabelecer ou não a franquia de dados de banda larga fixa. O evento contou com a presença do secretário de Inclusão Digital e Internet do (novo) Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicação (MCTIC) do governo interino, Maximiliano Martinhão, fato que permite supor o endosso pelos golpistas de um modelo de negócios que só interessa às operadoras.

O site Olhar Digital fez um levantamento em que toma o uso do site Netflix como exemplo. Caso alguém assista a dois episódios de um seriado por dia, com cerca de 50 minutos cada, ao fim do mês essa pessoa terá gasto 180 GB da sua franquia de dados fixa. O plano mais alto e mais caro da Vivo, por exemplo, oferece apenas 130 GB. Como se vê, nem no plano mais caro cabem usos relativamente banais da internet. Além disso, de uma forma geral, o usuário também não tem como evitar a publicidade oferecida automaticamente por aplicações, que consomem volume grande de dados.

Portanto, como consequência da adoção de franquias, o usuário terá de fazer escolhas para conseguir usar o computador. Segundo a exposição feita pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) na audiência pública na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática, realizada no dia 8 de junho, muitas pessoas, diante da limitação, pararam de atualizar o sistema de antivírus para, em contraposição, poder acessar outras funções de seu maior interesse. Eis o tipo de situação em que perdem todos.

Outra informação relevante é de que 86,7% do mercado são controlados por apenas três grandes empresas. Despedimo-nos aqui daquela bela conversa sobre mercado desregulado e aumento das opções para o consumidor. A imposição de franquia de dados na internet fixa só se coloca como política preferencial para as empresas exatamente porque o mercado está inteiramente oligopolizado e o pobre usuário da internet não terá para onde correr.

A diminuição da capacidade de uso da internet e o aumento de seus custos sem justa causa violam flagrantemente o Código de Defesa do Consumidor e, pior que isso, o Marco Civil da Internet, que garante a “não suspensão da conexão à internet, salvo por débito diretamente decorrente de sua utilização”; aliás, o marco assegura também o direito à manutenção da qualidade contratada da conexão.

Nada de extraordinário nisso: em mais de 70% dos países do mundo, segundo a União Internacional de Telecomunicações (UIT), os pacotes mais básicos de internet fixa são ilimitados do ponto de vista do consumo de dados. A jabuticaba estará em as empresas se aproveitarem de nossa presente vulnerabilidade política para impor uma restrição de uso que se afigura como clara ofensa a direitos já conquistados. A luta pela democracia no Brasil exige hoje que a internet seja livre. Na verdade, um aspecto interessante da contemporânea evolução do capitalismo dá-se pela centralidade da produção de bens imateriais, que acrescentam à riqueza comum.

É por isso necessário que essa riqueza venha a ser apropriada na forma de universalização do acesso aos meios de comunicação e de elaboração simbólica. A imposição de limites ao transporte eletrônico de dados vai na contramão desse propósito. Eis por que, nesse momento de tantos desafios para os brasileiros democratas, é absolutamente essencial reconhecer essa outra agenda de lutas em defesa da liberdade e da dignidade humana.

Margarida Salomão é deputada federal (PT-MG)