Internacional

Ainda há muitas perguntas sem respostas. A mídia turca continua a especular sobre como foi organizada a tentativa de golpe, quem a liderou e por que fracassou

Sem dúvida, a tentativa de golpe na Turquia foi espetacular, mas não foi uma surpresa. E a detenção ilegal e a prisão de parlamentares, jornalistas e civis, em suma, o poder das forças coercitivas que eventualmente foram usadas durante o golpe tem sido uma constante na política turca durante todo o governo de Erdogan

O povo foi convocado por Erdogan  para ocupar as ruas e proteger seu gove

O povo foi convocado por Erdogan para ocupar as ruas e proteger seu governo. (Foto: Alkis Konstantinidis/Reuters)

Na noite de 15 de julho de 2016, um grupo de militares turcos tentou levar a cabo um golpe de Estado. Os militares usaram aviões de guerra, helicópteros e tanques para derrubar a liderança turca. Porém, a tentativa de golpe durou poucas horas e no dia seguinte foi controlada pelas forças policiais que apoiam o governo de Recep Tayyip Erdogan. A base de seu partido, Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), também assumiu um papel importante na resistência. Após ser avisado sobre a tentativa do intento, Erdogan convocou pela TV todo o povo da Turquia a tomar as ruas para proteger seu governo contra o golpe.

As primeiras consequências

Após o ocorrido, ainda há muitas perguntas sem respostas. A mídia turca continua a especular sobre como foi organizada a tentativa de golpe, quem a liderou e por que fracassou. Segundo Erdogan, o golpe foi orquestrado por um grupo militar influenciado por Fethullah Gülen, com quem ele compartilhou o poder por dez anos, de 2003 a 2013. Informações divulgadas pelo ministro de Assuntos Internos dão conta de que 240 pessoas morreram (62 policiais, 5 soldados e 173 civis) e mais de 1.500 ficaram feridas durante o confronto.

Até o momento, 13.165 pessoas foram detidas. O expurgo levado a cabo pelo presidente turco atingiu dois conselheiros presidenciais, 492 funcionários da Diretoria de Assuntos Religiosos, 1.485 policiais, 8.838 militares (120 generais e 282 oficiais do alto comando), 2.101 juízes e promotores, mais de 250 funcionários do Gabinete do Primeiro-Ministro e 689 civis. No total, 5.863 pessoas ligadas aos poderes de Estado foram presas.

Além disso, mais de 60 mil funcionários foram demitidos de vários órgãos governamentais, como o Conselho Superior de Educação, o Ministério da Educação, a Agência Nacional de Inteligência, a Presidência de Assuntos Religiosos, o Ministério da Família e da Política Social, o Ministério das Finanças e o Departamento de Controle de Mercados Energéticos.

Os grupos islâmicosAlém da mídia moderna, as mesquitas foram usadas por Erdogan para mobilizar o povo. Na noite do golpe fracassado, as mesquitas particularmente em Ancara e em Istambul chamaram o povo não só para proteger o governo de Erdogan, mas também para proteger o Islã e os muçulmanos – ou seja, os chamaram para a jihad. A transmissão das mesquitas começou com o chamado de Erdogan e continuou depois que o fracasso do golpe foi confirmado pelo governo. Na Turquia, desde 1980 o número das mesquitas construídas com capacidade média de trezentas pessoas cresceu tão rapidamente que ultrapassou o número das escolas construídas na mesma época. Conforme os números do ano de 2015, existem 81 mil mesquitas e 67 mil escolas. As mesquitas estão sob a responsabilidade da Diretoria de Assuntos Religiosos, ligada ao primeiro-ministro. Por isso, os gastos nas mesquitas são financiados pelo orçamento público, ou seja, os imãs das mesquitas são funcionários públicos do governo.1) e o Estado turco

Os grupos islâmicos, reprimidos durante a formação do Estado laico turco, vêm se beneficiando das consequências políticas originadas pelo golpe militar ocorrido em 1980, quando se optou por uma ideologia turco-islâmica, incentivada pelo clima político criado pela Guerra Fria para favorecer os movimentos islâmicos contra os comunistas. Como nos outros países do Oriente Médio aliados dos Estados Unidos, os governos turcos também apoiaram e promoveram a reestruturação dos movimentos islâmicos desde a década de 1970. Os grupos islâmicos que atuavam secretamente se espalharam muito rapidamente entre o povo turco. Como encontraram um clima político que legitimava suas atividades, houve um crescimento drástico no número das organizações criadas por motivos islâmicos, com uma ampla variedade de organizações atuando na vida social, econômica e política. O Islã, hoje em dia, não é só uma crença arraigada nos corações das pessoas, mas também um entendimento de Estado associado à Ummah, isto é, à comunidade muçulmana como um todo, sem importar a descendência de seus seguidores.

O Alcorão é lido pelos muçulmanos não só para aliviar suas almas, mas também para referenciar os modos de governar seus países sem violar os valores islâmicos. De fato, isso explica muito bem os dois lados da moeda: por que a política do Oriente Médio sempre tem um tom religioso e por que os grupos islâmicos estão tão envolvidos com a política. Em outras palavras, os grupos islâmicos na Turquia não esconderam suas pretensões para aplicar suas formas religiosas de administração no Estado turco. No entanto, nem todos têm a mesma interpretação do Alcorão. Vale dizer que uma prática comum entre os partidos políticos turcos é ganhar o apoio dos grupos religiosos.

O movimento Gülen

No caso do movimento Gülen, em um vídeo divulgado em 2000, seu líder, o imã e pregador Fethullah Gülen, chamou seus discípulos a “passar pelas artérias do sistema, sem que ninguém perceba, até chegarem todos aos centros de poder”. Criado por ele no final da década de 1960, o movimento, segundo seus membros, tem como principal objetivo promover “a coexistência pacífica entre religiões e culturas, a democracia e a liberdade de pensamento por meio de organizações sem fins lucrativos, como centros culturais, escolas (incluindo universidades), jornais, canais de TV, hospitais e fundações”. No contexto político atual da Turquia, isso significa criar um poder paralelo dentro do Estado turco que é supostamente controlado pelo governo com o objetivo de disseminar valores islâmicos e manter a lealdade do Estado turco ao Islã. Como o movimento Gülen tem feito suas atividades de maneira a educar as novas gerações para a burocracia turca, cabe lembrar as organizações afetadas pelas operações recentes de Erdogan contra o movimento: o Conselho Superior de Educação, o Ministério da Educação, a Agência Nacional de Inteligência, a Presidência de Assuntos Religiosos, o Ministério da Família e Política Social, o Ministério das Finanças e o Departamento de Controle de Mercados Energéticos, o Gabinete do Primeiro-Ministro etc. Ou seja, essa ação revelou que todos os órgãos do Estado estavam no raio de ação do movimento Gülen. Considerando-se seu poder no setor privado, particularmente na mídia, representava um poder paralelo dentro do país. Por isso, foi acusado por Erdogan de ser uma organização terrorista cuja intenção era tomar o poder do Estado, pela via da manipulação de sua organização paralela.

Erdogan, Gülen e o AKP

A colaboração entre Gülen e Erdogan começou quando este concorreu às eleições para a Prefeitura de Istambul em 1994, prosseguindo no pleito de 2002, quando Erdogan foi eleito primeiro-ministro do país.

Com a vitória de 2002, tem início uma nova fase na história política da Turquia. Sua eleição com 35% dos votos colocou um fim aos governos de coalizão que predominaram na década de 1990. Os quatro governos de coalizão formados entre 1992 e 2002 são associados à instabilidade política, a duas crises financeiras ocorridas em 1994 e 2001 e à militarização da política turca em ofensivas contra os curdos. Assim, a década de 1990 foi marcada por uma crise política generalizada, que deixou os eleitores com poucas opções nas eleições em 2002.

No ano 2000, o AKP surgiu de uma crise política como uma aliança de grupos islâmicos que atuavam principalmente dentro do Partido da Virtude e de outros partidos liberais de direta (Anavatan, DYP e DSP), que compartilhavam a coalizão política que logo chegou ao poder. Foi nesse contexto que a aliança entre Erdogan e Gülen se fortaleceu e os levou a compartilhar o poder político pelos dez anos seguintes. Com essa colaboração, que teve início com as eleições de 2002Em 2002, como líder do partido, Recep Tayyip Erdogan havia sido proibido de assumir o cargo de primeiro-ministro. Por isso, esse posto coube a outro membro do partido, Abdullah Gül. Erdogan foi autorizado a assumir o governo em 2003, e Abdullah Gül passou a ocupar a presidência da Turquia., o movimento Gülen assumiu um papel-chave para substituir os cargos ocupados pelos kemalistas – os partidários do laicismo iniciado durante o regime de Kemal Atatürk – na burocracia turca. Apesar de, inicialmente, a agenda política de Erdogan e do AKP em relação aos órgãos democráticos do Estado não tenha ficado clara aos eleitores, nos seus primeiros dois mandatos, Erdogan conseguiu manter as preocupações de seus eleitores sob controle.

Kemalistas e o AKP

A partir daí, as características da burocracia turca vêm mudando. A eleição de Erdogan foi um triunfo para os conservadores em uma Turquia polarizada pela disputa sobre uso dos símbolos religiosos nos espaços públicos, ou seja, sobre o artigo da Constituição turca que define o caráter laico do Estado. Por isso, nos seus primeiros mandatos como primeiro-ministro, Erdogan foi alvo de críticas dos kemalistas preocupados com novos regulamentos sugeridos pelo AKP que organizam a vida pública conforme os valores do Islã. Como foi dito por Erdogan uma vez, um dos seus objetivos é tornar mais conservadoras as novas gerações. No entanto, a oposição criada pelos kemalistas entre 2003 e 2009 foi esmagada pela popularidade do primeiro-ministro.

A popularidade de Erdogan

Nos seus primeiros dois mandatos, Erdogan seguiu um caminho muito diferente do de seus antecessores. Pela primeira vez, os problemas de identidade dos diversos grupos religiosos e étnicos da sociedade, além dos turcos sunitas, foram abordados pelo Estado turco durante os governos de Erdogan. Por exemplo, armênios, gregos, cristãos, alevitas, curdos e outras minorias que vivem na Turquia desde o Império Otomano nunca tiveram sua identidade reconhecida oficialmente pelo Estado turco, e seus diretos nunca foram garantidos ou protegidos. Esses grupos sociais ganharam voz pública pela primeira vez nos governos de Erdogan.

Além de seu acolhimento positivo das minorias, Erdogan ganhou a confiança dos eleitores também pelo seu discurso que criticava a presença e o papel de tutela do Exército na política turca. Ao criticar a corporação militar, ganhou o vasto apoio dos eleitores. Em sua agenda de política externa, estabilizou as relações políticas e econômicas com a União Europeia, criticou as políticas de Israel na Palestina e engajou-se, juntamente com o Brasil, no pacto tripartite para resolver o impasse nuclear do Irã. Esses são mais alguns exemplos de fatos que aumentaram a popularidade de Erdogan não só na Turquia, mas também em todo o Oriente Médio.

Por último, porém não menos importante, estão as políticas econômicas de seus mandatos, durante os quais os índices econômicos da Turquia seguiram um patamar ascendente. Nos últimos quinze anos, foi o país que mais cresceu na região (na Europa e no Oriente Médio), em razão da realização de investimentos públicos e privados. Ao longo de seu mandato, Erdogan empreendeu diversos projetos públicos de grande porte, como a pavimentação de 20 mil quilômetros de rodovias, a instalação de um trem-bala entre as principais cidades e a construção da terceira ponte na região do Bósforo, além de outra ponte no golfo de Izmit, entre outras obras.

Erdogan e os curdos

Uma das conquistas de Erdogan durante seu mandato como primeiro-ministro foi iniciar as negociações com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK)O PKK é uma organização curda, que desde 1984 vem se engajando em uma luta armada contra o Estado turco, em defesa de um Curdistão autônomo e de mais direitos culturais e políticos para os curdos na Turquia., para pôr fim a uma guerra entre as forças curdas e turcas, e que causou a morte de quase 40 mil militares e civis nos últimos trinta anos.

Depois de seis anos das negociações iniciadas com o PKK em 2009, as partes chegaram a um acordo declarado no dia 25 de fevereiro de 2015 no Palácio Dolmabahce, mas, duas semanas depois, Erdogan, como presidente do país, não reconheceu mais o acordo, alegando que ele havia sido entre o governo e o PKK, mas não com ele. Esse episódio ocorreu quatro meses antes das eleições realizadas no dia 7 de julho de 2015. Quando o partido progressista pró-curdo HDP conquistou 13,5% dos votos nas eleições e elegeu 85 deputados no Parlamento turco (de um total de 550), o AKP perdeu sua maioria entre os parlamentares, o que colocou em risco os planos de Erdogan para consolidar seu sistema presidencial. Essa conquista dos curdos nas eleições não era, até então, prevista por ele.

A partir daí, Erdogan retomou as políticas tradicionais dos governos turcos que negaram a identidade aos curdos e seus direitos e buscou a solução usual da superioridade das armas. Em outras palavras, mais uma vez as armas tomaram o lugar da política na questão curda na Turquia, e Erdogan começou a formar um bloqueio político com o apoio dos nacionalistas turcos na guerra contra os curdos. O exército turco aumentou e intensificou os ataques não só contra as forças armadas curdas, mas também contra curdos civis, particularmente nas cidades onde houve mais votos para o partido pró-curdo, o HDP.

Erdogan e suas outras agendas

Não só na questão dos curdos, mas também todas as tentativas de Erdogan de dialogar com os grupos excluídos, como armênios e alevitas, não mais avançaram. Na verdade, recentemente tem piorado. Alimentar a hostilidade contra grupos excluídos, obrigar a assimilação de tais grupos, reprimir as identidades dos excluídos e identificar tais buscas como práticas de terrorismo: todas essas ações caracterizaram seus últimos anos como presidente do país. Por exemplo, durante seus mandatos, um jornalista armênio (Hrant Dink) foi assassinado por Ogün Samast, um jovem turco ultranacionalista, como efeito da hostilidade criada na sociedade contra os armênios. Erdogan foi criticado pelo envolvimento da polícia turca no assassinato e pelos problemas no processo judiciário do caso.

Cisão política dentro do governo

No entanto, nada disso significa que o movimento Gülen plantou o recente golpe militar. O movimento Gülen não ganhou forma política institucionalizada como partido político; seu poder não vem da sua base entre os eleitores. As últimas eleições em 2014 para a presidência e em 2015 para o Parlamento revelaram que a influência do movimento sobre os eleitores é limitada, cerca de 4%. Fato que não incomodou Erdogan, uma vez que pelo sistema eleitoral vigente somente os partidos políticos que alcançam o mínimo de 10% de todos eleitores podem ter representação no Parlamento.

Durante seus mandatos, Erdogan e Gülen têm colaborado ao substituir gradativamente os cargos ocupados pelos kemalistas no Estado turco, ou seja, no Exército, na polícia, nos serviços de inteligência, na educação e no sistema judiciário. Como o movimento Gülen tem a vantagem de ter quadros capazes para prestar os serviços que o Estado turco exige, durante os mandatos de Erdogan esses cargos foram preenchidos predominantemente por pessoas indicadas pelo movimento, com o consenso decrescente de Erdogan. Então, nesse contexto, a preocupação de Erdogan com o poder do movimento Gülen no Estado turco é compreensível.

A segunda tentativa de golpe

O poder do movimento Gülen manifestou-se quando uma operação com a colaboração dos policiais, da inteligência, do sistema judiciário e da mídia do país foi organizada para disfarçar um esquema de corrupção que envolveu quatro ministros de Erdogan, além dele mesmo e de seu filho, em 17 de dezembro de 2013. O conflito entre Erdogan e Gülen começou após acusações de corrupção nos investimentos públicos do governo. Os quatro ministros e Erdogan foram acusados de receber propinas nos leilões públicos, após os vazamentos de gravações de telefonemas entre eles. Erdogan negou todas as denúncias e apontou Gülen como fomentador de uma tentativa de golpe contra o poder público legítimo, ou seja, eleito.

Na verdade, a mais recente tentativa de golpe ocorrida na noite do dia 15 de julho contra o governo de Erdogan foi a segunda nos últimos três anos. A primeira foi organizada por um grupo dentro do poder estatal; a segunda, por um grupo dentro do Exército turco. O envolvimento do movimento Gülen com a primeira ação foi clara, porque uma tentativa de golpe por meio de órgãos democráticos do Estado não pode ser feita sem haver responsabilidades oriundas da polícia, da inteligência, do sistema judiciário, do Parlamento e da mídia. O grupo que realizou a operação de 17 de dezembro foi demitido e processado, mas Erdogan sabia que o poder do movimento Gülen não era limitado a esse quadro de pessoas.

As eleições presidenciais em 2014

Depois da ruptura no governo em 2013, Erdogan restabeleceu seu gabinete e começou a criar sua nova agenda. E utilizou a primeira tentativa de golpe para fortalecer ainda mais seu cargo no poder, como agora está fazendo após a segunda tentativa. Apesar das acusações de corrupção, Erdogan foi eleito presidente do país no primeiro turno das eleições presidenciais (51,8%), no dia 10 de agosto de 2014. Os resultados das eleições revelaram que a campanha da oposição apoiada pelo movimento Gülen nem sequer tinha um impacto significante sobre os eleitores, e que o poder do movimento é limitado a suas redes dentro do Estado turco. Nessa altura, o movimento Gülen simbolizava ser uma organização de elites que ocupam a burocracia turca.

Duas operações simultâneas organizadas pelo governo de Erdogan, em conjunto com o movimento Gülen, contra os curdos e contra os kemalistas, tiveram papel-chave nas eleições presidenciais de 2014 e na última tentativa de golpe em 2016. Depois da primeira tentativa, em 2013, Erdogan jogou a culpa das operações antidemocráticas feitas durante seu mandato sobre o movimento Gülen.

As operações contra os kemalistas

As operações denominadas Ergenekon e Balyoz foram uma série de processos judiciais que puseram em suspeita centenas de pessoas (745), incluindo oficiais militares, policiais, jornalistas, parlamentares da oposição, diretores de universidades, sindicalistas e membros de ONGs, que foram acusados de criar uma suposta organização clandestina secularista para tramar um golpe militar contra o governo de Erdogan. O processo judicial começou em julho de 2008 e finalizou em agosto de 2013, resultando em longas penas de prisão para a maioria dos acusados, inclusive o ex-chefe do Exército turco, Ilker Basbug.

Os processos judiciais receberam atenção especial dos curdos e dos grupos progressistas do país porque a maioria dos acusados, era suspeita de ter responsabilidade, simultaneamente, em massacres, assassinatos, perseguições, em suma, na repressão criada contra os curdos e os progressistas na década de 1990. Porém, como o foco do caso foi mantido na acusação da tentativa de golpe militar, a corte responsável pelo caso não incorporou as participações naqueles crimes, que custaram a vida de centenas de políticos, jornalistas, sindicalistas e defensores de diretos humanos, turcos e curdos.

Como em outros casos, os processos judiciais iniciados pelas operações Ergenekon e Balyoz não renderam nada além de substituir os cargos no Estado pelas pessoas indicadas pelo movimento Gülen e por Erdogan. Depois da primeira tentativa de golpe, Erdogan acusou Gülen de plantar as duas operações com provas falsas. Por ironia do destino, em abril de 2016, o Tribunal Supremo da Turquia revogou o julgamento dos acusados do caso com a decisão de aceitar Ergenekon como suposto esquema inventado pelo movimento Gülen. Depois da última tentativa frustrada de golpe, Erdogan começou a preencher os cargos abandonados pelo movimento Gülen com os quadros processados no caso Ergenekon.

Desde o fim do cessar-fogo, Erdogan seguiu um discurso mais nacionalista, que possibilitou uma aliança com setores nacionalistas entre os kemalistas, ou seja, com Ergenekon. Os quadros militares processados nesse caso agora estão sendo usados na guerra de Erdogan contra os curdos.

As operações contra os curdos

Foi estranho como Erdogan se manifestou no caso dos curdos. De um lado, um cessar-fogo foi iniciado para facilitar a participação dos curdos no sistema político turco, mas, de outro, o governo de Erdogan organizou operações contra os curdos eleitos e contra os membros de seu partido legal, o HDP, acusado de ser um braço do PKK. Assim como nas operações feitas contra os kemalistas, as ações contra as estruturas legais curdas e seus políticos eleitos têm durado alguns anos. Durante as operações, foram detidas 7.748 pessoas, particularmente membros dos conselhos das cidades onde o partido curdo HDP venceu nas eleições municipais, e 3.895 delas continuam presas. Além das operações judiciais, as negociações entre o governo turco e o PKK foram interrompidas, quando gravações secretas foram vazadas para a imprensa turca. Depois da primeira tentativa fracassada de golpe, Erdogan responsabilizou o movimento Gülen pelos vazamentos das negociações para a imprensa.

A agenda política de Erdogan sobre a questão curda não ficou muito clara, mas, como sempre, ele usou essa oportunidade também para aumentar o número de seus eleitores entre os curdos. As negociações iniciadas entre o governo turco e o PKK criaram um clima que possibilitou uma aliança entre os curdos e os segmentos progressistas da sociedade turca, através do partido HDP. A repercussão desse fato gerou um aumento na taxa de votação (13,5%) nas eleições realizadas no dia 7 de junho de 2016, que dobrou o seu desempenho quando comparado com as eleições anteriores. Entretanto, a vitória dos curdos custou a Erdogan a perda da maioria no Parlamento turco.

O cessar-fogo entre o PKK e o Estado turco acabou quando Erdogan não reconheceu mais o acordo declarado, como já citado acima. A partir daí, aumentando os ataques do Exército turco contra o partido, Erdogan tentou forçar o PKK a voltar ao conflito militar. Este evitou usar suas forças militares naquela época e conseguiu manter sua lealdade ao cessar-fogo até 1º de novembroQuando o AKP perdeu a maioria no Parlamento turco, Erdogan não reconheceu os resultados das eleições de 7 de junho e, como presidente, forçou a realização de novas eleições, no dia 1º de novembro.. A repressão contra os curdos e seu partido ficou ainda mais dura no período entre as eleições. Preocupado com as vidas de seus membros, o HDP interrompeu a campanha eleitoral, por causa dos ataques a seus ativistas e eleitores depois de um duplo atentado suicida que causou 103 mortos e mais de quinhentos feridos em uma manifestação organizada pela paz e democracia.

Nas eleições de 1º do novembro, Erdogan voltou a conquistar a maioria no Parlamento, com 49,5% dos votos nas urnas pelo seu discurso nacionalista, que estimulou uma aliança com os segmentos nacionalistas dos kemalistas. O HDP também conseguiu 12,5% dos votos, com perda de 1% em relação à eleição anterior, mas conseguiu 80 deputados no Parlamento turco.

Após a vitória inesperada dos curdos nas eleições e, em seguida, o desenvolvimento político no norte da Síria, Erdogan atacou as cidades curdas de uma forma sem precedentes. As cidades curdas onde a maior parte dos eleitores votou no HDP, particularmente Cizre, Nusaybin, Sur e Sirnak, foram cercadas pelas forças militares e policiais e bombardeadas por aviões de guerra e tanques. As operações militares ainda estão em curso. Até o momento, estima-se que 2 mil curdos (guerrilheiros, militantes e civis) morreram e milhares deles foram deslocados nos conflitos militares desde as eleições do dia 1º de novembro.

Agenda política do AKP e o futuro da Turquia

Desde então, a agenda política de Erdogan começou a ficar mais clara. Como na Turquia a Constituição vigente ainda é a do golpe militar de 1980, Erdogan quis utilizar essa oportunidade para possibilitar a reestruturação de todo o sistema. Por isso, a proposta de uma nova Constituição transformou-se na pauta política do país nos últimos anos. Considerando-se o discurso de Erdogan no começo de seu mandato para reconhecer os grupos excluídos, uma nova Constituição pode ser pensada pelos povos da Turquia como uma saída para a democratização do país. No entanto, ele propõe um sistema presidencial peculiar em que o presidente assume todos os poderes públicos, inclusive o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, ou seja, como se diz prosaicamente no país, defende a proposta de ser um novo sultão!

De fato, Erdogan propôs um Estado-partido. Sua gestão nos seus governos também mostrou que à medida que sua dominação cresce num órgão do Estado, o Estado fica mais impermeável a outros partidos. Por isso, ele aproximou as instituições públicas para fazê-las parte de sua dominação. Durante a gestão de Erdogan nos últimos treze anos, professores, médicos, funcionários públicos, trabalhadores, policiais e militares, que não votaram no AKP, vêm sendo perseguidos pelas forças desse partido no sistema governamental. Considerando a possibilidade de substituição dos cargos e de expurgos na burocracia turca em benefício dos partidários de Erdogan, seu objetivo é aparentemente criar um Estado-partido sob o governo de um novo sultão.

Enfim, até agora, a detenção ilegal e a prisão de parlamentares, jornalistas e civis, os massacres de civis por ataques de aviões de guerra e de tanques, em suma, o poder das forças coercitivas, que eventualmente foram usadas durante o golpe, tem sido uma constante na política turca durante todo o governo de Erdogan. Sem dúvida, a tentativa de golpe foi espetacular, mas não foi uma surpresa na política turca. O ato mais chocante da tentativa do golpe militar foi seu ataque aeronaval ao Parlamento turco, mas as mesmas forças e aeronaves já foram usadas meses atrás contra os curdos.

Bülend Karadag nasceu na Turquia, é mestre em Economia pela Universidade de Ankara e em Ciência Política pelas Universidades Kassel e Berlin Economic and Law School