Internacional

Com o controle do Legislativo pela oposição, se apresenta a primeira grande derrota eleitoral do chavismo, depois de dezessete vitórias  pleitos eleitorais

Diferente do Brasil, na Venezuela é pouco provável que se crie uma situação de golpe que coloque em risco o acúmulo de dezessete anos de governos bolivarianos. Mesmo tendo o controle da Assembleia Nacional, a oposição não tem recurso constitucional e não tem poder político, nem institucional, nem apoio popular para tentar uma saída com ruptura da Constituição

A oposição controla o Legislativo cavalgando sobre o antichavismo

A oposição controla o Legislativo cavalgando sobre o antichavismo, sem programa de governo. Foto: Marco Bello/Reuters

Próximo o fim de 2016, podemos afirmar que este vem sendo um dos anos mais complexos para o processo bolivariano. Mesmo antes da desaparição física do comandante Hugo Chávez, a queda dos preços do petróleo e a crise global do capitalismo já afetavam a economia venezuelana – altamente vinculada à dinâmica internacional. Outros problemas, como o profundo entrave burocrático, a corrupção e as limitações econômicas ainda não foram superados, impedindo que uma sociedade capitalista baseada na produção petroleira como a Venezuela pudesse dar o giro ao socialismo.

Crise ou guerra econômica

Nos últimos três anos tais problemas vêm se agravando, na contramão das propostas de superação apresentadas por Hugo Chávez em 2012. Desde o primeiro dia da gestão de Nicolás Maduro, a oposição se utiliza de argumentos, como a incapacidade do governo em enfrentar essas dificuldades, para tentar desestabilizar a economia e a política do país.

Aos problemas da queda dos preços do petróleo soma-se um ataque especulativo da moeda venezuelana frente ao dólar, com uma desvalorização estimada de 900% entre julho de 2014 e março de 2015. O câmbio é controlado pelo governo, mas esse controle acabou estimulando múltiplas formas ilegais e criminais de obtenção da moeda americana. Numa economia altamente dolarizada, em pouco tempo todas as atividades econômicas venezuelanas se vincularam ao manejo especulativo do dólar, gerando um espiral inflacionário incontrolável, o que coloca a Venezuela entre as economias de mais alta inflação do planeta. Alguns analistas a calculam entre 400% e 470% até o fim de 2016.

Nesse cenário complexo da economia, a oposição aos governos bolivarianos tem encontrado uma forma de destruir o acúmulo de mais de dezessete anos de conquistas sociais e políticas. A oposição agrupada na chamada Mesa da Unidade Democrática (MUD), mesmo não tendo projeto nem liderança a oferecer ante o chavismo, tem instrumentalizado o descontentamento popular e se aproveitado da falta de respostas eficientes do governo diante de um cenário internacional adverso.

Também têm sido exploradas fortemente as situações de burocracia e corrupção por parte do governo Maduro nesses três anos de mandato. E isso explica o resultado eleitoral de dezembro de 2015 para eleição da Assembleia Nacional, quando a oposição saiu vitoriosa com pouco mais de 30% – mantendo seus níveis de votação histórica, sendo que a eleição teve 40% de abstenção, principalmente do voto chavista.

Com o controle absoluto do Legislativo pela oposição, se apresenta a primeira grande derrota eleitoral do chavismo, depois de dezessete vitórias em dezenove pleitos eleitorais. O arquipélago de partidos e grupos que conformam a MUD pela primeira vez tem um espaço de poder estratégico para disputar a hegemonia do chavismo. Mesmo assim a oposição chega à Assembleia Nacional cavalgando sobre o antichavismo e explorando os problemas que afetam a maioria do povo venezuelano. Não existe um programa para além do “Fora Maduro” ou acabar “com as longas filas” – símbolo da crise pelo abastecimento de alimentos e outros bens essenciais para a população.

A composição da oposição que chega ao controle de um dos principais poderes do país é um amálgama de setores conectados com as articulações da “nova direita” neoliberal e setores fascistas que reivindicam a saída do “regime chavista” a qualquer custo, inclusive com violência. Dentro dessa “aliança” seria muito difícil construir uma proposta séria de alternativa ao chavismo.

Referendo revogatório

É evidente que a oposição logrou capitalizar o descontentamento da população sobre o governo Maduro. E para cumprir sua promessa de retirada do presidente chavista tenta impulsionar o referendo revogatório – instrumento previsto na Constituição venezuelana que permite a saída do presidente eleito a partir da metade de seu mandato. Para iniciar o procedimento de referendo, são necessárias 200 mil assinaturas (1% dos eleitores).

Em abril, três meses depois do prazo para iniciar o procedimento, a oposição anunciou a entrega de 2 milhões de assinaturas, das quais foram aceitas 1.257.759. O Conselho Nacional Eleitoral (CNE) promoveu uma auditoria de 30% das assinaturas, como prevê o rito do revogatório, e identificou mais de 1.500 com diversos vícios e erros que constituem crimes eleitorais, sendo então rejeitadas pelo CNE. Os partidos chavistas denunciaram que mais de 10.900 do total das assinaturas tinham irregularidades e iniciaram ações penais ante os tribunais de justiça.

Mesmo a MUD anunciando nacional e internacionalmente que estava promovendo o revogatório, vários de seus representantes continuaram a anunciar que Maduro e o chavismo sairiam, por “qualquer via”, em 2016. Isso significava que “todas” as opções estavam em aberto, incluídas as violentas e inconstitucionais. Esse grupo é basicamente representado por Maria Corina Machado, ex-parlamentar, líder do grupo “Vente Venezuela”, e Leopoldo Lopez, ex-prefeito do município Chacao, líder de “Voluntad Popular”, preso e condenado a 13 anos por ações violentas que ocasionaram a morte de 43 pessoas nas chamadas “guarimbas” – manifestações violentas convocadas por setores da oposição nos anos 2014 e 2015.

Leopoldo Lopez, sua esposa Lilian Tintori e Maria Corina Machado, mesmo não representando a maioria dos setores da oposição democrática, têm logrado alcançar o reconhecimento internacional, com forte apoio de conglomerados midiáticos internacionais e dos principais foros internacionais dominados pela direita. Nesses espaços busca-se desenhar a situação venezuelana como passível de “intervenção humanitária” pela comunidade internacional, dizendo que há um “regime ditatorial e violador dos direitos humanos” e que a população venezuelana está em situação de fome e miséria.

É muito comum observar o trânsito natural dessas figuras no parlamento europeu, nos parlamentos de países como Espanha, Alemanha, Estados Unidos, e, mais recentemente, da Argentina e do Brasil. Tudo isso com respaldo de Luís Almagro, secretário geral da OEA, do governo estadunidense e de outros países governados pela direita.

Desgaste da oposição e a ofensiva bolivariana

O governo Maduro, e a articulação política e social que o sustenta, tem desenvolvido no segundo semestre de 2016 uma ofensiva que permite atender os problemas da população venezuelana, mas também para retomar a iniciativa frente à oposição em suas vertentes nacional e internacional. Mesmo não tendo resolvido as dificuldades básicas das pessoas, como produtos alimentares, de higiene pessoal e saúde, o governo tem executado diversas iniciativas que tentam dar resposta à ansiedade da população frente a essas necessidades essenciais.

Ainda com muita crítica pelas limitações e ineficiência, e às vezes corrupção desses operativos, a população tende a reconhecer o esforço do governo. Também pela decisão de combater as práticas criminosas de deixar de comercializar produtos que estão em estoque (acaparamiento), da especulação e do contrabando de produtos que são adquiridos com dólares preferenciais entregues pelo governo.

Uma ação importante também tem sido a cruzada internacional empreendida pelo governo para recuperar os preços internacionais do petróleo, agindo junto com os sócios da Opep e outros produtores independentes de petróleo, como a Rússia, para estabilizar a produção e elevar os preços no curto e médio prazos.

No campo político o governo tem se aproveitado da conduta errática da oposição, que, mesmo tendo o controle da Assembleia Nacional, desaproveita esse espaço para promover iniciativas além do “Fora Maduro”, deixando de se preocupar com a população. O pouco feito até agora foi para diminuir as conquistas do período chavista, o que também gera uma reação contrária da população.

A outra linha de ação de Maduro tem sido reconhecer a necessidade de encontrar uma forma de negociação com os fatores da oposição política e também econômica, frente à evidência de que não é possível apenas com o governo e as forças que o respaldam encontrar saídas para os problemas do país. Para isso tem apelado ao apoio internacional, ciente de que não existem garantias suficientes para confiar numa oposição que já tem demostrado sua permanente tendência a utilizar vias violentas e inconstitucionais para alcançar seus objetivos. Para isso tem sido fundamental contar com a mediação internacional de organismos como a Unasul, que tem tido papel importante para alcançar consensos mínimos entre os atores em pugna.

A figura do secretário Geral da Unasul, Ernesto Samper, tem sido fundamental para acercar posições e construir confianças. Assim como figuras como os ex-presidentes Rodriguez Zapatero da Espanha, Leonel Fernández da República Dominicana e Martin Torrijos do Panamá, que atuam há meses como facilitadores nesse processo. Outro ponto importante nesse caminho foi a incorporação de um representante pessoal do Papa Francisco nessa última etapa de diálogo, o que traz ainda mais compromisso entre as partes.

E no início de novembro a mesa negociadora anuncia os primeiros avanços entre o governo e a MUD. Os mais importantes foram os acordos para enfrentar a grave crise econômica, priorizando a questão de alimentos e medicamentos; restabelecer a convivência respeitosa e democrática entre os poderes públicos; e um compromisso pela criação de um clima de paz e tolerância.

Tem futuro a estabilidade e seu processo de mudança?

Num cenário internacional altamente complexo e de disputas em aberto a partir da vitória do neorrepublicano Donald Trump nos Estados Unidos e de reagrupamento de governos de direita no sul do continente, é muito difícil determinar o que poderá acontecer na Venezuela ou em outros países da região e do mundo. Mas poderíamos aventurar algumas conjecturas.

Distintamente do Brasil, na Venezuela é muito pouco provável que um poder possa agir para criar uma situação de golpe que coloque em risco o acumulado em dezessete anos de governos bolivarianos. Mesmo tendo o controle da Assembleia Nacional, a oposição não tem o recurso constitucional nem o poder para criar um desequilíbrio que leve à queda do governo bolivariano. Não existe a figura do impeachment para o presidente da República. Mas também a oposição não tem poder político, nem institucional, nem apoio popular para tentar uma saída com ruptura da Constituição.

A situação econômica, mesmo complexa, pode ser contornada. Um grupo de economistas internacionais, coordenados pela Unasul, apresentou uma série de recomendações para curto e médio prazos, com enorme potencial de contribuir para a superação desse momento. Porém, é preciso que o governo, seus especialistas e gestores tenham uma atitude mais aberta e menos dogmática para adotar medidas que, sem afetar as conquistas e avanços sociais de dezessete anos de revolução, possam atualizar a economia venezuelana – há mais de 100 anos dependente da atividade petroleira.

Do ponto de vista político, os cenários de mudança apontam 2017 como um ano importante do calendário eleitoral. Inviabilizado para 2016, o referendo revogatório do presidente Maduro já não teria o efeito desejado pela oposição, porque, ainda que realizado em 2017, com a saída improvável do presidente, o país seria governado pelo vice-presidente executivo, indicado pelo próprio presidente Maduro.

Não obstante, o revogatório em 2017 já é descartado por um setor da oposição, que negociaria um calendário eleitoral focado nas eleições de governadores em 2017 e trabalharia para o desgaste do chavismo ao apresentar uma candidatura com chances de enfrentar Maduro ou a figura que o bloco chavista apresente em 2019.

Neste momento a oposição se apresenta dividida, sem líderes reconhecidos e confiáveis, e profundamente desgastada ante a opinião pública, que questiona sua errática conduta e suas agendas antidemocráticas. Construir uma figura e um programa que supere o legado chavista será seu grande desafio, que implicará erradicar agendas golpistas, violentas e irresponsáveis, muitas das vezes impostas e alimentadas por interesses estadunidenses e suas articulações a nível internacional.

O campo do chavismo, Maduro, seu governo, o PSUV e os setores do Grande Polo Patriótico que o acompanham deverão trabalhar intensamente para recuperar o apoio e a credibilidade do povo chavista, desiludido e pouco empolgado para apoiar um governo que não mostrou capacidade em resolver problemas essenciais da população, colocando em risco todo o acúmulo da herança do presidente Chávez.

Ao contrário da oposição, o chavismo é um fenômeno que representa um sujeito político e social concreto que chegou para permanecer no cenário político da Venezuela, que transcende a lógica do partido ou do aparelho do governo, dando mostras de profunda capilaridade e identidade com amplas massas populares. Esse chavismo tem suportado as mais dramáticas provas: golpes de Estado, sabotagem econômica, violência paramilitar, até a perda do seu máximo líder.

Em todas elas logrou superá-las e manter os ideários da revolução bolivariana. O povo chavista ainda espera que a condução do processo político e econômico corresponda ao seu apoio e possa retificar os erros cometidos e adotar medidas que garantam a continuidade ao processo de transformações mais importantes na história contemporânea da Venezuela.

Iván González Alvarado é venezuelano, professor de História, especialista em temas de sindicalismo internacional e desenvolvimento