Cultura

Nota referente ao artigo Ventos de Havana

Carta de Leonardo Padura enviada ao Institut du Tout Monde e ao juri do 22ª edição do Prêmio Carbet, que o escolheram vencedor pelo livro O Homem Que Amava os Cachorros, em dezembro de 2001

(…) Não tenho de repetir que vivo e escrevo em Cuba, pois todos sabem. E talvez não teria de dizer o que significa ter escrito este romance vivendo em Cuba e aspirando que fosse lido, sobretudo, em Cuba. A experiência da grande frustração utópica do século XX, na qual meu país participou com todos seus sonhos e conquistou muitos de seus benefícios ao mesmo tempo que pagou muitas de suas consequências indesejáveis, era e ainda é um conflito histórico que atingiu até as últimas fibras das vidas individuais de muitos cubanos, com especial ênfase e rancor os homens e mulheres de minha geração. Um grupo de pessoas cresceu, educou-se e trabalhou convencido da viabilidade dessa utopia, sem muitas vezes ter uma ideia real dos excessos que haviam sido cometidos em nome da construção de um mundo melhor. O ocultamento desses excessos – que neste caso eram qualificados como “erros”, quando muitas vezes foram em realidade “horrores” –  constituiu justamente uma das causas que provocou sua frustração com o projeto, e a frustração dos sonhos e das vidas de muitos homens e mulheres da minha geração, nesta Cuba onde nasci, onde vivo e escrevo por “sobrenada” [NT: brincadeira com sobretudo] uma decisão pessoal (...).

http://www.cubasi.cu/cubasi-noticias-cuba-mundo-ultima-hora/item/2959-leonardo-padura-satisfaccion-por-premio-carbet-2011?device=desktop

“A escrita como competência”, de fevereiro de 2006

À beira dos vinte anos que logo cumpriria, eu era à época a estampa viva da inocência, uma folha ao vento, imprevisível, poderia me mover rumo a um destino muito mais imprevisível. Há apenas alguns meses, o dia que em uma sala do pré-universitário no qual estudava, me vi no transe de optar por uma carreira universitária. Minhas vocações eram tão incongruentes e díspares que, depois de pensar várias vezes e diante da notícia que aquele ano a escola de jornalismo não seria aberta (me agradava um pouco a ideia de ser cronista esportivo, mas, repito, um pouco), descartei em um minuto a ideia de estudar arquitetura ou qualquer outra especialidade diretamente vinculada à Matemática (matéria que sempre foi meu forte) e inclinei-me pela carreira da História da Arte, em primeira opção, e por Geologia! na segunda.

Por que um matemático aficionado por geologia pretendia estudar História da Arte é ainda um mistério para mim. Creio que tudo se deveu ao fato de que, entre as disparatadas e desatualizadas listas das carreiras universitárias a escolher, havia visto que existia uma especialidade de Cinema, Teatro e Televisão como parte de História da Arte, e gostei da tentadora possibilidade de passar a vida entre cinemas, teatros e televisores, mais que entre equações e logaritmos.

Entretanto, uma semana antes do 1o. de setembro, tive um tropeção com a realidade: a muito seletiva carreira de História da Arte que eu havia escolhido e merecido (era o aspirante com a mais alta pontuação entre todos os pré-universitários da capital) não abriria suas matrículas naquele ano, assim, teria que optar por algumas das especialidades de Letras, as únicas à nossa disposição.

Devo ter sido um dos estudantes de Letras mais iletrados entre os que alguma vez se matricularam na Escuela de Zapata y G. Minhas leituras até aquele momento eram tão raquíticas quanto a de qualquer garoto de vinte anos que dedicou o melhor de sua vida a jogar bola, conversar com os amigos e perseguir alguma garota com primeiras intenções. Muitos de meus colegas de classe, enquanto isso, já tinham lido García Márquez e Carpentier, até mesmo Cortázar e Borges, e podiam falar da poesia e da prosa de Benedetti e, em voz baixa, de algum daqueles fabulosos romances do primeiro Mario Vargas Llosa, àquela altura já inimizado à morte com o sistema cubano.

Como aquele “bom selvagem” do bairro havanês de Mantilla, que era eu naquele 1o de setembro de 1975, pode começar a abrir os caminhos de sua monumental incultura e, dois anos depois, se tornar um colaborador habitual de revistas como El Caimán Barbudo, Alma Máter e Universidad de la Habana, e ser dez anos depois autor de um primeiro livro publicado, e logo definitivamente me converter em escritor? Creio que a única resposta possível seja esta: graças à bola.

Ter jogado bola todos os dias da minha existência até o momento em que me converti em estudante da Escola de Letras, ter pensado sempre na bola, e ser, ainda hoje, um jogador frustrado, foi a chave que, associada ao ter estado no dia 1o de setembro de 1975 em frente ao edifício de Zapata y G e não em outro lugar, decidiu minha vida. A bola desenvolveu em mim um “espírito esportivo”, ou para ser mais exato, uma necessidade de concorrência tão imaculada que, ao perceber-me no último lugar da lista de notas entre os estudantes da Escola de Letras, decidi que minha única possibilidade era demonstrar em campo que eu também podia competir (...)

Li em tais proporções que antes de terminar o primeiro ano da carreira me senti tão em forma, tão preparado para a concorrência, que até escrevi o que parece ter sido o meu primeiro conto: um relato semi-fantástico que dei para que lesse ao Abilio (que naquele tempo já estava no terceiro ano), quem, com sua mesura habitual, só se atreveu a dizer que não devia abusar tanto das admirações nos diálogos, pois minhas personagens falavam de assombro em assombro, de alarido em alarido.

Vistos à distância de duas décadas, os cinco anos que passei na Escola de Letras – em algum momento batizada de Faculdade de Filologia, da Universidade de Havana, foram um período mais feliz que infeliz, apesar de que naquele então – plena década de 1970, por Deus, ortodoxa e repressiva – recebi as primeiras acusações de sofrer de desvio ideológico e – cito textualmente – e de ser um “malandro auto-suficiente”, com todo o risco que aquelas avaliações acarretaram. Mas a atmosfera intelectual que se vivia entre os estudantes, as possibilidades que nos desvendavam alguns professores – o gordo Guillermo Rodríguez Rivera, Daniel Chavarría com seus romances, Maggie Mateo e o lado bom de Salvador Redonet –, elevaram a cada dia a grande lista de minhas aspirações e me empurraram para o caminho da literatura – da leitura, da análise e da escrita –, no qual, por participar de uma concorrência, ando ainda hoje com um bastão [NT: referência ao beisebol, paixão cubana] no ombro e a bola na mão”.

http://laventana.casa.cult.cu/noticias/2012/11/29/la-escritura-como-competencia/

Tradução: Mila Frati