Política

De junho de 2013 a janeiro de 2014, o tratamento dado aos protestos pela presidenta Dilma em seus pronunciamentos no exterior

“As manifestações, em geral, sejam de quem sejam, têm que ser respeitadas como manifestações de reivindicações, de busca de mais direitos sociais. (...) Querer mais é algo muito positivo na democracia. (...) O Brasil é um país tão forte, em termos democráticos, que ele consegue conviver de forma positiva com as manifestações”, respondeu a presidenta a uma jornalista.

Dilma em Cuba já não precisava dizer mais nada sobre junho de 2013

Dilma em Cuba já não precisava dizer mais nada sobre junho de 2013. (Foto: Claudia Daut/Reuters)

 

Passou meio despercebido no Brasil, algures e alhures, que entre 7 de setembro de 2012 e 10 de junho de 2013 foram celebrados o Ano do Brasil em Portugal e o Ano de Portugal no Brasil. Uma iniciativa acordada entre os dois países em maio de 2010¹. Por essa razão, no dia 10 de junho de 2013, a presidenta Dilma Rousseff brindava com seu homólogo português o “grande reencontro” do Brasil “consigo mesmo, o qual tem como desdobramento necessário o desejo de aproximação dos povos irmãos que, lamentavelmente, ainda conhecemos tão pouco”.²

O dia 10 de junho é feriado nacional do Dia de Portugal e feriado das comunidades lusitanas do Dia de Camões. Um dia de festa. Festa na qual, desde 1989, se entrega o valor em dinheiro do Prêmio Camões a escritores, literatos ou críticos de língua portuguesa dispersos pelos rastros da diáspora lusitana. Os brasileiros João Cabral de Melo Neto (1990), Rachel de Queiroz (1993), Jorge Amado (1994), Antonio Candido de Mello e Sousa (1998), Autran Dourado (2000), Rubem Fonseca (2003), Lygia Fagundes Telles (2005), João Ubaldo Ribeiro (2008), Ferreira Gullar (2010), Dalton Trevisan (2012) foram agraciados em sessões anteriores. Os portugueses José Saramago (1995) e Antonio Lobo Antunes (2007) também receberam o gracejo antes. Em 2013 foi a vez do moçambicano Mia Couto, autor dos inesquecíveis Terra Sonâmbula e A Chuva Pasmada. No ano de 2014, foi contemplado o memorável poeta, historiador, diplomata e embaixador brasileiro Alberto da Costa e Silva.

Na ocasião da cerimônia de entrega do prêmio em 2013, a presidenta Dilma Rousseff era, de fato e direito e conveniência e contingência, convidada de honra em Portugal. Para além da amabilidade da circunstância e da urbanidade do momento, os portugueses queriam saber como o Brasil poderia ajudá-los a superar a brutalidade das crises – financeira, econômica, social, política, institucional – que ganhava níveis de agudeza raramente vistos.³

Diante disso, a presidenta Dilma então acentua que a proposta brasileira seguiria sendo “a ênfase que damos ao estreitamento das relações entre o Mercosul e a União Europeia, entre o Brasil e a União Europeia e entre Brasil e Portugal”.4 No caso específico da relação entre os dois países, a presidenta fez lembrar dos dois projetos da Embraer em Évora e dos vários investimentos do grupo Galp Energia nos campos de petróleo de Lula, Cernambi, Júpiter, Caramba, todas áreas de pré-sal na costa brasileira.5

Os protestos brasileiros estavam em seu segundo dia. Ninguém sabia da dimensão que poderiam chegar. Passaram, então, despercebidos. Como indiferença compulsória, fogo que arde e não se vê.

Na companhia da senhora Maria Carvaco da Silva, a presidenta Dilma regressou ao Brasil sem nada mencionar sobre junho. Situação diferente seria vivenciada em sua passagem por Montevidéu no mês seguinte.

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No dia 11 de julho de 2013, a presidenta Dilma foi ao Uruguai para participar da reunião da Cúpula dos Estados Parte e Associados do Mercosul. Três semanas após seu pronunciamento de 21 de junho e uma semana depois da plena dispersão das investidas de junho.

As revelações de Edward Snowden sobre a atuação da National Security na vigilância norte-americana e mundial e o acirramento da situação da Síria após a comprovação de que o presidente Assad ultrapassara a redline estabelecida pelo presidente Obama pautavam o grosso da discussão internacional. Mesmo assim, a jornalista responsável pela entrevista oficial com a presidenta apresentou como essência de seu questionamento: “Como a senhora viu hoje as manifestações lá no Brasil?”. Nesse dia 11 de julho, centrais sindicais estavam bloqueando rodovias Brasil afora. A presidenta Dilma não titubeou em desarmar a questão e a jornalista. Respondeu direto: “Olha, minha querida. As manifestações, em geral, sejam de quem sejam, têm que ser respeitadas como manifestações de reivindicações, de busca de mais direitos sociais. (...) Querer mais é algo muito positivo na democracia. (...) O Brasil é um país tão forte, em termos democráticos, que ele consegue conviver de forma positiva com as manifestações”.6

Para acentuar o local e a circunstância – América do Sul e Mercosul –, a presidenta não por acaso considerou que no caso brasileiro “nós temos grandes avanços nos últimos dez anos e agora as pessoas querem mais”.7 Essa foi também para lembrar que o Brasil segue major power na região e nessa condição tem autoridade para servir de exemplo e modelo. Foram esse exemplo e modelo que transcorreram todo o seu discurso do dia seguinte, quando junho de 2013 simplesmente desapareceu.8

Desapareceu também nas suas intervenções quando da posse do presidente paraguaio Horácio Cartes em 14-15 de agosto de 2013 em Assunção9 e esteve muito subliminar nas aparições em São Petersburgo por conta da reunião do G20 entre 6 e 7 de setembro.10 O efeito Snowden dava a nota e o allegretto da discussão.

Em defesa ao presidente Evo Morales, que fora humilhado na Europa ao ter seu avião impedido de passar por espaço aéreo francês no trajeto Moscou-Portugal, a presidenta Dilma dizia que “nós também fomos atingidos diretamente pelas recentes denúncias que as comunicações eletrônicas e telefônicas de cidadãos e instituições de nossos países e de outros países da América Latina estão sendo objeto de espionagem por órgãos de inteligência”.11 Na longa entrevista coletiva concedida na Rússia, a presidenta falou praticamente somente disso e de seu impacto sobre as relações americano-brasileiras e brasileiro-americanas.12

Corriam rumores da possibilidade de a presidenta brasileira cancelar sua visita aos Estados Unidos no mês de outubro. As atenções estavam, portanto, direcionadas a saber como tinham sido as conversações, em pessoa, entre a presidenta Dilma e o presidente Obama nos bastidores da reunião do G20. Não se sabe em essência o que em suas conversas se falou. Fato foi que à imprensa a presidenta Dilma considerou que “guerra é guerra, terrorismo é terrorismo, espionagem de país democrático é espionagem” e era “incompatível com a convivência entre países amigos”, como Brasil e Estados Unidos.13

Por fim, a presidenta Dilma acabou de fato não indo aos Estados Unidos em outubro e o Brasil liderou o estabelecimento de um marco civil multilateral para a governança da internet que ganhou corpo e se afirmou a partir do acordo realizado no Global Multistakeholder Meeting on the Future of Internet Governance, em abril de 2014 em São Paulo.14 A proposta geral desse acordo foi lançada em 24 de setembro de 2013 em Nova Iorque por ocasião da Assembleia Geral das Nações Unidas. De certa maneira, o impacto do efeito Snowden abrangeu parte importante desse discurso da presidenta Dilma. Nele a presidenta brasileira ainda dizia que as “recentes revelações sobre as atividades de uma rede global de espionagem eletrônica provocam indignação e repúdio em amplos setores da opinião pública mundial” e que no caso brasileiro “fizemos saber ao governo norte-americano nosso protesto, exigindo explicações, desculpas e garantias de que tais procedimentos não se repetirão”.15 Independentemente da repetição ou não dos atos americanos de vigilância, foi nessa ocasião que a presidenta Dilma voltou a falar de junho. E dessa vez para expor de modo oficial ao mundo inteiro a sua apreciação dos acontecimentos.

A presidenta disse mais do mesmo. Não teria sentido dilapidar a exposição. “As manifestações de junho, em meu país, são parte indissociável do nosso processo de construção da democracia e da mudança social. O governo não reprimiu, pelo contrário, ouviu e compreendeu a voz das ruas.”16 Pareceu importante à presidenta promover uma suave modificação no tom da justificação de sua atuação, enfatizando que “ouvimos e compreendemos porque nós viemos das ruas. Nós nos formamos no cotidiano das grandes lutas do Brasil. A rua é o nosso chão, a nossa base”.17 Essa mudança de tom servia simplesmente para amplificar o caráter pedagógico de sua explicação. No mesmo sentido, ela lembra aos ouvintes que “os manifestantes não pediram a volta ao passado. Os manifestantes pediram sim o avanço para um futuro de mais direitos, mais participação e mais conquistas sociais”.18 A pujança dessa explicação-exposição-narração seguiu a mesma nos demais compromissos – participação na abertura do Foro Política de Alto Nível sobre Desenvolvimento Sustentável no dia 24 de setembro e no encerramento do Seminário Empresarial “oportunidades em infraestrutura no Brasil no dia 25 de setembro – da presidenta em Nova Iorque.19

Nada similar fora apresentado nas passagens da presidenta Dilma pelo Paraguai em 29 de outubro de 2013, quando da inauguração da linha de 500 kV entre Villa Hayes e a subestação de energia da margem direita da Itaipu Binacional em Hernandárias, nem pelo Peru em 11 de novembro, durante sua visita oficial ao presidente Humala. A retomada da narrativa veio nos cortejos da presidenta pela Suíça e por Cuba.

Na Suíça, no dia 23 de janeiro de 2014, a presidenta foi primeiro a Zurique, à sede da Fifa, “na casa do futebol”. O objetivo, transcrito na mensagem, foi reafirmar que o Brasil tem sim o fair play que requeria Joseph Blatter na abertura da Copa das Confederações e, mais que isso, iria fazer a “Copa das Copas”.20 No dia seguinte, foi a vez da presidenta discursar em Davos, no Fórum Econômico. Nesse contexto e circunstância, sua leitura e exposição dos acontecimentos de junho foram implacáveis.

No momento mundial de ainda permanente agonia diante dos resguardos da crise financeira de 2008, a presidenta apresentou junho como o modelo de exemplo que o Brasil foi, é e pode ser. Para isso, acentuou que “criamos um imenso contingente de cidadãos com melhores condições de vida, maior acesso à informação e mais consciência de seus direitos. Um cidadão de novas esperanças, novos desejos e novas demandas”.21 Esses novos desejos e novas demandas eram entendidos claramente como o fruto dos acontecimentos de junho. Demandas e desejos que emanaram do efeito concreto da criação de “um grande mercado interno de consumo de massas” e de “(...) um dos maiores mercados de automóveis, computadores, celulares, refrigerados, fármacos e cosméticos” do mundo. Mais que isso, enumera a presidenta, mesmo assim “apenas 47% dos domicílios têm computador; 55% apenas possuem máquinas de lavar roupa automática; 17%, freezer; 8% TV plana”.22 Desse contraste, faz entender a presidenta, emanou junho.

De Davos à província de Artemisa em Cuba – fazendo o caminho inverso do presidente Lula, que saía do Fórum Social Mundial de Porto Alegre e seguia para o Fórum Econômico Mundial de Davos –, a presidenta simplesmente reiterou a sua força de concepção de timing. Em Artemisa, no dia 27 de janeiro, foi inaugurar o Porto e a Zona de Desenvolvimento de Mariel com capacidade de recepção de navios de grande porte, estilo os Super Post-Panamax.23 Ambos empreendimentos contam com financiamento do BNDES brasileiro. No dia seguinte, teria início em Havana a II Cúpula da Comunidade dos Estados Latino-Americanos – Celac.24 Nesse momento, a presidenta Dilma não precisaria dizer mais nada. Os acontecimentos de junho de 2013 eram, em parte, história e memória e, em parte, desejo e convicção.

Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e pós-doutor em Relações Internacionais pelo Ceri - Sciences Po, de Paris