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Governo desconsidera mecanismos constitucionais que reconhecem a divisão sexual do trabalho, um dos elementos-chave da desigualdade de gênero

Não é razoável propor uma regra que trata as mulheres como iguais numa sociedade profundamente patriarcal, que reserva condições desfavoráveis no mercado de trabalho a elas e as submete aos maiores níveis de desemprego, ao trabalho informal e precário, aos baixos salários, à dupla e tripla jornada, derivada de responsabilidades, ainda, desiguais em relação ao trabalho doméstico e não remunerado

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Reforma ignora a diferença entre o trabalho rural e urbano, penalizando a mulher do campo. Foto: Joel Silva/Folhapress

“Nunca se esqueça de que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá de manter-se vigilante durante toda a sua vida.” Existem pensamentos que perpassam a história e se mantêm ao longo do tempo com uma clarividência irrefutável. Simone de Beauvoir nos apresenta um deles, nessa célebre frase, ao nos dizer que a sociedade nem sempre caminha rumo ao futuro de forma linear. Estamos todos submetidos a fluxos e refluxos, avanços e retrocessos.

É comum em tempos de exceção que as primeiras vítimas sejam as mulheres. Não tem sido diferente nesse momento limiar que o Brasil atravessa. O processo de quebra da legalidade democrática – imposto por um conluio jurídico, midiático e parlamentar – não fica circundado em si mesmo, não se limita à retirada da primeira mulher presidente da República do poder.

Os interesses daqueles que seguem rasgando diariamente a Constituição são muito mais ambiciosos. Buscam engendrar um bloco de poder que lhes permita proteger corruptos, atacar a soberania nacional e vender o patrimônio do povo brasileiro. Paralelo a isso, há a intrépida marcha do retrocesso, a qual vai esgarçando o tecido dos direitos e avançando sobre os nossos corpos, desejos e liberdades.

O golpe travestido de impeachment foi marcado, desde o início, por uma série de simbolismos que autoproclamam o seu caráter racista, machista, misógino e sexista. O mais evidente deles foi, sem dúvida alguma, a imagem da ascensão ilegítima de homens, brancos e ricos ao poder central do país em detrimento da presença de mulheres, negros nos postos mais altos da República.

Só um governo com essa cara seria capaz de gestar e enviar ao Congresso Nacional uma reforma da Previdência tão cruel e desumana contra as mulheres, como é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC 287/2016). Fundamentada no falacioso discurso de “rombo” da Previdência, a PEC quer condenar a grande maioria dos trabalhadores e trabalhadoras à morte, sem que antes tenham acesso ao direito básico à aposentadoria.

A desfaçatez é tão gritante e absurda que o governo Temer tem a audácia de produzir uma propaganda publicitária com o intuito de convencer o povo brasileiro de que o desmonte da Previdência Social é o único caminho para garantir os benefícios previdenciários às gerações futuras. Na verdade, deveria assumir que os números apresentados são manipulados e que a reforma põe fim ao direito à aposentadoria no Brasil.

De acordo com dados da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT), a economia que Temer fará em dez anos com a PEC 287 (R$ 678 bilhões) é menor do que o montante que o governo federal perde em seis meses com o pagamento de juros da dívida pública, desonerações fiscais e tributárias, sonegação fiscal e corrupção (aproximadamente R$ 750 bilhões).

No que concerne especificamente às mulheres, a reforma é absolutamente inaceitável. Ao igualar a idade de aposentadoria em 65 anos para homens e mulheres, propor contribuição mínima de 25 anos para ambos e obrigar homens e mulheres a trabalharem 49 anos para ter direito à aposentadoria integral, o governo desconsidera que as regras diferenciadas são mecanismos constitucionais que reconhecem a divisão sexual do trabalho, um dos elementos-chave da desigualdade de gênero.

Não é razoável propor uma regra que trata as mulheres como iguais numa sociedade profundamente patriarcal, que reserva condições desfavoráveis no mercado de trabalho a elas e as submete aos maiores níveis de desemprego, ao trabalho informal e precário, aos baixos salários, à dupla e tripla jornada, derivada de responsabilidades, ainda, desiguais em relação ao trabalho doméstico e não remunerado. Dados da PNAD-IBGE de 2014 comprovam essa realidade ao apontar que as mulheres trabalhadoras dedicam 19,21 horas por semana com afazeres domésticos, ao passo que os homens dedicam apenas 5,1 horas.

A pesquisa revela, ainda, que a parcela feminina em idade ativa que trabalhava ou estava à procura de trabalho era de 57%, ante 79,2% no caso dos homens. As mulheres são mais vítimas do desemprego que os homens, 13,8% e 10,7%, respectivamente. Mesmo sendo mais escolarizadas, as mulheres continuam tendo rendimento médio mensal menor, R$ 1,2 mil frente a 1,8 mil dos homens.

As propostas contidas na PEC não atingem da mesma maneira todas as mulheres. Elas são ainda mais cruéis quando analisamos os impactos causados às mulheres negras e rurais.

No caso das mulheres rurais, por exemplo, a PEC 287 acaba com o bônus de cinco anos para a aposentadoria rural e propõe que as trabalhadoras contribuam mensalmente e de forma individualizada para a Previdência com a mesma alíquota das trabalhadoras urbanas. Esse modelo desconsidera a sazonalidade da safra, o fato de a maioria das trabalhadoras rurais não possuir renda todos os meses do ano. Ignora, também, a diferença do trabalho rural e urbano, a expectativa de vida, a idade de ingresso na atividade profissional (muitas começam a trabalhar com 14 anos), a penosidade e o esforço do trabalho no campo.

Se aprovada, a PEC aprofundará ainda mais as atuais assimetrias de gênero na Previdência. Devido aos piores rendimentos e de inserção mais precária no mercado de trabalho, 48,3% dos benefícios previdenciários concedidos às mulheres são de um salário mínimo (contra 23,9% no caso dos homens).

O aumento de 15 para 25 anos do tempo mínimo de contribuição representará enormes dificuldades para o acesso à aposentadoria. As mulheres serão penalizadas em todos os aspectos. Se considerado o tempo médio de trabalho semanal, ao longo de 35 anos de contribuição as mulheres teriam trabalhado sete anos mais que os homens.

Se considerado o primeiro emprego aos 22 anos e aposentadoria aos 65 anos de idade, após vínculos formais de emprego, as mulheres teriam trabalhado, por conta da jornada dupla, 8,6 anos a mais que os homens.

Por fim, se consideradas as atuais idades médias de inserção no mercado de trabalho, 16,1 anos para os homens e 17,1 para as mulheres, elas chegariam aos 65 anos tendo trabalhado 9,6 anos a mais que os homens.

Se todas essas diferenças não justificam a aposentadoria diferenciada para as mulheres, o que mais poderia justificar?

Nesse ínterim, o governo Temer penaliza as mulheres com uma reforma da Previdência de conteúdo extremamente agressivo, quando, na verdade, a histórica desigualdade de gênero exige o respeito aos acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário, que versam sobre a necessidade de se desenvolver políticas que garantam a equidade entre homens e mulheres.

O governo, fruto e semente da ruptura democrática em curso no país, aposta cegamente num modelo de austeridade fiscal, de supressão dos direitos sociais e trabalhistas para atender os interesses de banqueiros e rentistas.

Desde que Temer usurpou o poder, vimos a piora de todos os indicadores sociais e econômicos. Ao invés de um ajuste fiscal regressivo e injusto, no qual somente os trabalhadores e trabalhadoras são chamados para pagar a conta, Temer deveria centrar esforços para oferecer mais Estado às mulheres, melhores condições de trabalho, igualdade de remuneração, acesso a creches e equipamentos públicos, de modo a contribuir para mitigar os impactos da dupla e tripla jornada em suas vidas.

Para que o Brasil se faça verdadeiramente democrático, a desigualdade de direitos não pode ser encarada como uma discussão menor. Enfrentar a desigualdade não é enfeite democrático, é uma necessidade estruturante para que possamos construir uma sociedade livre, justa e mais igualitária.

Negar o direito à aposentadoria para as mulheres é uma violência a um direito social básico de existência garantido na grande maioria das democracias modernas.

A PEC 287, sem dúvida alguma, se aprovada, perpetuará a discriminação de gênero e trará impactos incomensuráveis à vida das mulheres. Não podemos permitir o fim da aposentadoria às trabalhadoras negras, rurais e domésticas. Domésticas que apenas recentemente passaram a gozar dos mesmos direitos que os demais trabalhadores e trabalhadoras, a exemplo do direito à carteira assinada e aos direitos trabalhistas.

Nosso desafio histórico imediato é impedir que os retrocessos avancem sobre os nossos direitos. Barrar o desmonte da Previdência é fundamental para impedir que o abismo social e econômico entre homens e mulheres se aprofunde ainda mais em nosso país.

Erika Kokay é deputada federal (PT-DF)