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O “barril de pólvora” é resultado da inércia dos governos federal e estadual, que condicionam o problema da terra à burocracia dos parcos assentamentos

De janeiro a maio de 2017, já foram registradas 37 mortes no campo, segundo a Comissão da Pastoral da Terra. O início de ano mais violento do século. As dez mortes durante a operação policial em Pau D’Arco, em 24 de maio, se configuram como o conflito agrário mais acirrado registrado desde o fatídico episódio de Eldorado do Carajás, em 1996

O conflito na operação Pau D'Arco se configura como o mais acirrado desde Eldorado do Carajás Foto: Marcio Ferreira/Agência Pará

O presente artigo ensaia uma reflexão política e sociológica acerca dos conflitos agrários que marcam a situação da posse da terra e das relações de poder fundadas no acesso injusto e desigual à propriedade desse bem no estado do Pará, em um contexto de agravamento e acirramento de disputas entre o latifúndio e os trabalhadores rurais que lutam por dignidade, reconhecimento e respeito nesse canto do Brasil.

O estado do Pará lidera o ranking de assassinatos no campo, segundo relatórios da Comissão Pastoral da Terra (CPT), desde 1985, quando a entidade, como forma de denúncia, começou a sistematizar os dados e publicá-los. Conforme a CPT, entre 2015 e 2016 foram registradas 111 mortes no campo no país, sendo que dessas foram 19 mortes em 2015 e 6 mortes em 2016 no Pará, somando 25 mortes, o que corresponde a 22,52% das mortes por conflitos agrários no Brasil.

Para um debate, por exemplo, no campo dos direitos humanos, devemos compreender que as situações de conflitos que se expressam em números cada vez mais alarmantes, com um índice agravante de perseguições e assassinatos contra lideranças comunitárias, compõem um mosaico perverso e cruel de mortes que se torna constante e banal, reproduzindo e reforçando um quadro social de violência e barbárie, como se, para além desse apenamento desumano de vítimas entre aqueles que lutam pela terra, não houvesse praticamente nenhuma chance de reação ou defesa.

Airton dos Reis Pereira, professor da Universidade do Estado do Pará (Uepa) de Marabá, em sua tese de doutorado pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) intitulada “A luta pela terra no Sul e Sudeste do Pará: migrações, conflitos e violência no campo”, aponta como fatores de tais conflitos: 1) a expulsão de posseiros por empresas, do Centro-Sul do país, que se instalaram nessa parte do território amazônico estimuladas e apoiadas financeiramente pelo governo federal; 2) disputas, simultâneas, entre trabalhadores rurais e fazendeiros, comerciantes e empresários por uma mesma área de terras devolutas; 3) ocupações de grandes propriedades com títulos definitivos ou de aforamentos por trabalhadores rurais, principalmente migrantes do Nordeste, do Sudeste e do Centro-Oeste que chegaram atraídos pela propaganda; e 4) as políticas de desenvolvimento que os sucessivos governos da ditadura civil-militar haviam planejado para a Amazônia.

Os recentes casos de assassinato e chacina de trabalhadores do campo no Pará, que, mais uma vez, levaram o estado aos noticiários nacionais e internacionais como um dos maiores violadores dos direitos e da dignidade da pessoa humana, fazem eco, portanto, a outros tantos que, em sua maior parte, aguardam um desfecho da justiça, inclusive com identificação e prisão de mandantes. Inequivocamente, é relevante uma discussão acerca dessa questão que marca o contexto biopolítico da estruturação desigual econômica e socialmente do Pará e, no geral, da própria Amazônia – de sua ocupação e colonização até os dias atuais, passando obviamente pela implantação dos grandes projetos desenvolvimentistas durante a ditadura militar – para se considerar qual projeto civilizador queremos para o país, em vista, justamente, da necessidade de se consagrar e realizar os princípios fundamentais de nossa Constituição.

O relatório de violência de 2016 da CPT revelou uma média de cinco assassinatos por mês, com 61 mortes de quilombolas, indígenas, líderes e integrantes dos movimentos sem terra, um aumento de 22% das mortes em comparação com 2015. O informe também denuncia a criminalização dos movimentos do campo. Houve um aumento de 86% nas ameaças de morte, de 68% nas tentativas de assassinato e de 185% nas prisões. Entre 1985 e 2016, 1.834 pessoas perderam a vida em conflitos no campo, mas, segundo a organização, apenas 31 mandantes desses assassinatos foram condenados.

Além do mais, trazer essa questão em discussão é reiterar uma lição teórica de natureza histórica, segundo a qual só será possível avançar de situação e contextos de conflitos, injustiças e desigualdades tomando um posicionamento verdadeiramente crítico em favor dos que estão à margem dos processos sociais de participação, frente aos que se apropriam da terra como meio de enriquecimento ilícito e morte. Assim, para início, é necessário lembrar que na cosmografia dos povos e populações que ocupam tradicionalmente suas terras, elas são a origem da vida, constituindo suas marcas identitário-diacríticas e, portanto, a fonte mesma de todas as resistências e lutas.

De janeiro a maio de 2017, já foram registradas 37 mortes no campo, segundo dados da CPT. Trata-se do início de ano mais violento do século. As dez mortes durante a operação policial em Pau D’Arco, no sudeste paraense, no dia 24 de maio, se configuram como o conflito agrário mais acirrado registrado desde 1996, quando houve o episódio fatídico de Eldorado do Carajás. Como já relatado acima, o número de mortos desse ano já superou a violência registrada em 2016.

Um dos fatores apontados para esse acirramento foi a extinção, em 2016, da Ouvidoria Agrária Nacional (OAN), criada em 2004, que atuava na prevenção e mediação de conflitos no campo. Desde a incorporação do Ministério do Desenvolvimento Agrário à Casa Civil, quando o órgão foi excluído da nova estrutura da pasta, suas atividades vinham sendo descontinuadas. Em 24 de novembro, uma portaria publicada no Diário Oficial da União exonerou servidores que compunham a equipe da OAN e, desde 12 de janeiro de 2017, o órgão passou a integrar a estrutura do Incra.

Os mortos da Fazenda Santa Lúcia foram identificados como: Weldson Pereira da Silva, Milhomem Weclebson, Ozeir Rodrigues da Silva, Regivaldo Pereira da Silva, Bruno Henrique Pereira Gomes, Hércules Santos de Oliveira, Nelson Souza, Jane Julia de Oliveira, Ronaldo Pereira de Souza, Antonio Pereira Milhomem.

Vinte dias após o assassinato em Castanhal (PA), essas pessoas tornaram-se, mais uma vez, estatísticas das vidas ceifadas nesse acirramento das disputas por terra no Pará, cujo relatório da CPT aponta, nos últimos dez anos, 103 mortes por conta desses conflitos. Sem contar as ações de intimidação às famílias ocupantes de terras, como os fatos registrados em julho de 2017, nas ocupações de Hugo Chavez em Marabá e Frei Henri em Curionópolis, ambas no Pará. Evidentemente também há de se frisar a criminalização dos movimentos sociais, a exemplo do ocorrido recentemente na Fazenda Mutambo, localizada em Marabá, onde houve a destruição de maquinários e da propriedade por um grupo armado “supostamente” ligado a movimentos pela terra.

A preocupação com os conflitos campesinos não é de hoje, e tampouco somente no estado do Pará. Em 1º de maio de 2017, o Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Zeid Ra’ad Al Hussein, externou preocupação por ser “um dos estados mais violentos em termos de disputas por terras”, saudando a iniciativa da criação do Programa Estadual de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos e solicitando que as autoridades estatais “deem andamento ao funcionamento do programa”.

Também é importante ressaltar que em 5 de maio de 2017, um dia depois da morte da líder do assentamento em Castanhal (PA), Kátia Martins de Souza, o Brasil passou pela Revisão Periódica Universal do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, na qual foi constatado que, desde a última avaliação em 2012, o país avançou muito pouco no enfrentamento de violação de direitos humanos, chamando atenção, em especial, à ineficiência do Estado brasileiro em apurar e resolver os crimes envolvendo camponeses.

Esse “barril de pólvora” é resultado da inércia tanto do governo federal quanto do estadual, que condicionam o problema da terra à burocracia dos parcos assentamentos e do incentivo desmedido da agroindústria, acéfala e destoante de uma realidade social de miséria e exclusão social, a míngua da agricultura familiar.

Deve-se ressaltar que os apontamentos críticos das ressonâncias desse estado de violação de direitos humanos no Pará é sintomático de uma realidade em que os poderes instituídos voltam as costas para os interesses populares e, de modo negligente, cooperam para a manutenção de uma situação cruel, percebida e vivida tanto por todos os agentes defensores dos direitos humanos quanto, principalmente, pela população mais pobre, que num país historicamente marcado por desigualdades estruturais bizarras se vê totalmente desamparada em tudo aquilo que consagra o valor humano da reprodução da cultura e da vida – terra livre!

José Araújo de Brito Neto é advogado, mestre em Psicologia pela UFPA e presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-PA

Wladirson Cardoso é filósofo, mestre em Direitos Humanos, doutor em Antropologia Social e professor nas UEPA/UFPA