Política

O colapso da União Soviética possibilitou uma “autópsia” de parte dos debates e das teorias acerca da natureza do socialismo soviético

É preciso destacar que o tipo de socialismo que se instalou na URSS foi exitoso durante parte do século 20. Não em comparação com algum parâmetro abstrato, com alguma teoria prévia, com algum sonho; mas na capacidade de enfrentar e/ou derrotar o capitalismo realmente existente no mesmo período

Lenin e seus camaradas atuaram sem ter nenhuma experiência anterior como parâmetro. Já nós não poderemos alegar ignorância. Foto: Reprodução

Debater a Revolução Russa de Outubro de 1917 é algo muito atual, por diversos motivos. O primeiro deles é a existência de semelhanças entre o momento que vivemos e o anterior à Primeira Guerra Mundial (1914-1918), tanto no que diz respeito aos possíveis desdobramentos dos conflitos intercapitalistas e entre as grandes potências mundiais quanto no que diz respeito à desigualdade social imperante.

Um segundo motivo é a brutal crise do capitalismo, que estimula o debate sobre uma alternativa socialista. Um terceiro motivo é a incapacidade que o capitalismo contemporâneo vem demonstrando, quando se trata de reformar seu modo de ser, o que coloca sobre a mesa o debate sobre a necessidade, a atualidade e a urgência da revolução, como único meio de produzir as mudanças necessárias.

O debate sobre a Revolução Russa envolve os antecedentes, seu contexto internacional, seus desdobramentos externos e internos; a Guerra Civil de 1918-1921, a Nova Política Econômica de 1921 a 1929, a coletivização forçada e a industrialização acelerada dos anos 1930; as transformações no Estado Soviético e no Partido Comunista da União Soviética (PCUS), inclusive a brutal luta de facções que resultou nos chamados Processos de Moscou; os efeitos da invasão nazista em 1941 e da Grande Guerra Patriótica, seguidas da formação de governos comandados por partidos comunistas em diversos países do Leste Europeu; a postura do PCUS e da URSS na Guerra Fria, sua relação com as diferentes forças da esquerda no plano mundial; as reformas e contrarreformas; e, finalmente, o colapso e desaparecimento da União Soviética entre 1989 e 1991.

O colapso atingiu o conjunto de suas repúblicas e também os aliados no Leste Europeu. Teve como consequência o fortalecimento do capitalismo em geral e dos Estados Unidos em particular; o enfraquecimento de todas as variantes capitalistas que não eram neoliberais e também do movimento socialista como um todo. Porém, embora tenha afetado experiências como a chinesa, a cubana, a vietnamita e a norte-coreana, não chegou ao ponto de destruí-las.

Há quem sustente que a URSS colapsou entre 1989-1991 por culpa do então secretário-geral do PCUS, Gorbatchev, que teria aplicado uma política de “traição ao socialismo”. Outros relacionam o colapso à “burocratização” ocorrida no período de governo do também secretário-geral Brezhnev, que teria esclerosado o que restava de vital na experiência socialista soviética; ao ocorrido no período de Nikita Kruschev, em particular seu ataque a Stalin; ao período de Stalin, que teria traído os ideais da revolução dirigida por Lenin. Não falta quem acuse o Partido Bolchevique, que em outubro de 1917 teria dado um golpe de Estado e capturado para “fins partidistas” o que até então seria uma revolução popular, autêntica e democrática. Além, é claro, dos que consideram que o “pecado original” estaria em tentar fazer um processo de transformação social violenta.

A natureza da revolução

Durante grande parte do século 19, e no início do século 20, os revolucionários russos e europeus discutiam intensa e abertamente qual seria a natureza da Revolução Russa, porque eles estavam convictos de que viria.

A discussão prosseguiu durante e após a revolução, prolongando-se até os dias de hoje e envolvendo temas como: ocidentalismo e orientalismo; modernização pelo alto e revolução vinda de baixo; revolução burguesa e camponesa; capitalismo e socialismo; democracia burguesa e ditadura do proletariado; transição direta ou prolongada ao comunismo; capitalismo de Estado e socialismo estatal; modo de produção asiático ou de transição; Estado operário burocraticamente degenerado, socialismo real e totalitarismo.

É como parte desse debate que deve ser compreendida a afirmação de Gramsci, ainda em 1917, quando ele falou da Revolução Russa como uma revolução contra o capital: contra o capitalismo, mas também contra certa interpretação da obra de Karl Marx.

A social-democracia revolucionária no século 19 imaginava que o processo de transição socialista ocorreria em primeiro lugar nos países capitalistas avançados; seria intrinsecamente democrático; e – passada a fase inicial da tomada e consolidação do poder – transcorreria em condições pacíficas. Por quê?

Simplificadamente, porque se imaginava que a revolução socialista triunfaria em primeiro lugar nos países capitalistas mais desenvolvidos, onde o proletariado tendia a ser maioria relativa da população. Portanto, onde a ditadura do proletariado seria uma ditadura da maioria. De outro lado, como os países capitalistas mais avançados eram os grandes promotores do imperialismo e da guerra, sua transformação em países socialistas criaria um contexto propício à construção e evolução pacífica do socialismo.

Como sabemos, não foi nada disso que aconteceu. Tanto a Revolução de 1917 quanto as demais revoluções socialistas do século 20 ocorreram em países onde o operariado e de maneira geral os trabalhadores assalariados eram minoria; onde o capitalismo era relativamente pouco desenvolvido; e foram vítimas de sistemática agressão econômica, política, ideológica e militar por parte das potências capitalistas.

Grande parte das críticas feitas à Revolução Russa e à tentativa de construção do socialismo na URSS, especialmente aquelas feitas ao período de Stalin, à coletivização forçada e à industrialização acelerada, não enfrenta adequadamente essa questão, a saber: como nessas condições enfrentar o atraso econômico, o predomínio da pequena propriedade, o cerco e a agressão capitalistas? Como nesse contexto impedir o regresso do capitalismo e prosseguir na construção do socialismo?

Sem responder adequadamente essas e outras questões, a crítica pode muito facilmente desembocar num beco sem saída. Por exemplo, achar que foi um erro ter conquistado o poder em 1917. Ou que era possível prolongar indefinidamente a Nova Política Econômica, apesar dos sinais crescentes de que ocorreria uma nova guerra mundial. Ou, ainda, acreditar que bastaria implementar a “verdadeira democracia socialista” para que os problemas daquela tentativa de transição do capitalismo ao comunismo fossem devidamente equacionados. Ou, finalmente e no limite, na crença de que seria possível uma passagem direta do capitalismo ao comunismo, sem transição e, portanto, sem problemas.

O colapso da União Soviética possibilitou uma “autópsia” de parte dos debates e das teorias acerca da natureza do socialismo soviético.

As teorias que falam do totalitarismo, por exemplo, foram completamente desmoralizadas. Elas foram estimuladas durante a Guerra Fria, para tentar neutralizar o papel que a União Soviética jogou na luta contra o nazismo; para tentar sequestrar em favor dos Estados Unidos e em favor do capitalismo a luta pela democracia; e também para justificar a corrida armamentista, pois supostamente a única maneira de destruir um inimigo “totalitário” seria por meio da guerra. As teorias do totalitarismo chegaram a ter a força de um preconceito, sendo comum que até mesmo pessoas de esquerda se referissem e se refiram até hoje à União Soviética como “totalitária”. A força dessa categoria aparece de maneira indireta nas teses que atribuem o fim da URSS a algum fator externo, como se a União Soviética fosse mesmo um monólito sem contradições internas, submetida a um controle “totalitário”, uma ditadura “total” que, semelhante ao nazismo, só poderia ser destruída a partir de fora.

Outro exemplo da influência que as teorias do totalitarismo tiveram e têm sobre pessoas de esquerda é a crença de que os Estados e as sociedades produto das revoluções socialistas seriam “indestrutíveis”, coisa que há quem diga inclusive sobre processos (revolucionários ou não) que estão em curso neste momento. Mas a experiência da própria URSS demonstrou que as revoluções e as sociedades produto delas são reversíveis, também podem ser derrotadas.

O colapso da União Soviética mostrou, ainda, a artificialidade das teorias que advogavam a existência de outro modo de produção. De fato, a hipótese de que a União Soviética era uma sociedade socialista, portanto que tentava realizar a transição entre o capitalismo e o comunismo, é suficiente para “enquadrar” o que ocorreu, desde 1917 até o colapso.

Mas o que aconteceu também mostrou as debilidades das teses que afirmavam que a URSS seria “o” modelo do socialismo realmente existente. Quem acreditava nisso depois do colapso muito facilmente passou a acreditar que o socialismo se demonstrara impossível, que o fim da União Soviética seria o fim de todo o socialismo. Isso ajuda a entender, aliás, por que muitos dos partidários daquela tese passaram para o outro lado.

A sobrevivência e a decolagem da China mostraram que o modelo soviético não era o único socialismo realmente existente, confirmando mais uma vez que não havia e segue não havendo “modelos”. Aliás, a trajetória da própria União Soviética já havia demonstrado ser possível organizar de várias formas uma sociedade socialista.

O colapso também mostrou as debilidades das diferentes variantes que afirmavam ali existir um “estado operário burocraticamente degenerado”. Não é controverso que houvesse burocracia, mas é controverso que houvesse mesmo um “estado operário”. Mas o fundamental diz respeito a se uma “revolução política” seria o mecanismo capaz de democratizar a experiência soviética e revitalizar o socialismo. A rigor, a revolução política realmente existente acabou com o socialismo.

Apesar disso, segue muito forte a influência das ideias inspiradas em Leon Trótski, mais exatamente naquela parte de suas ideias elaboradas entre o final dos anos 1920 e seu assassinato. A influência pode ser constatada, por exemplo, no uso e abuso de termos como “burocracias”, “socialismo burocrático” e “stalinismo”, que em muitos casos foram convertidos em chavões.

A interpretação de Trótsky destacava, corretamente, o atraso brutal da Rússia. Paradoxalmente, apontava para “soluções” de corte voluntarista, concentradas no plano das direções, das vanguardas, na mudança de quem comanda, na “revolução política” e na expectativa acerca de novos processos revolucionários, em outros pontos do planeta.

Vindo de quem defendia a “revolução permanente” e um “programa de transição”, é em certa medida surpreendente a dificuldade em entender as transições realmente existentes, a dificuldade em extrair as devidas conclusões da compreensão de que a transição socialista é convivência conflituosa e contraditória entre diferentes modos de produção, um processo por definição imperfeito, incompleto, que pode ter desfechos e formas as mais variadas. Donde, aliás, a importância de estudar as variadas teorias acerca do chamado “capitalismo de Estado”.

Socialismo exitoso

Seja como for, é preciso destacar que o tipo de socialismo que se instalou na URSS foi exitoso durante parte do século 20. Não em comparação com algum parâmetro abstrato, com alguma teoria prévia, com algum sonho; mas na capacidade de enfrentar e/ou derrotar o capitalismo realmente existente no mesmo período.

O socialismo soviético foi vitorioso em Outubro e na Guerra Civil, suplantou o cerco imposto à União Soviética nos anos 1920 e 1930, assim como derrotou os nazistas durante a Segunda Guerra. Também foi capaz de enfrentar e – por algum tempo e em alguns aspectos – empatar com o capitalismo hegemônico entre o final da Segunda Guerra Mundial e os anos 1960.

Exemplos disso podem ser encontrados na corrida espacial e armamentista, no processo de industrialização, crescimento e desenvolvimento; na extensão dos direitos políticos e sociais, nos direitos da mulher, no combate ao racismo, nas políticas de saúde, educação pública e habitação; na ampliação do nível de cultura geral e política das massas.

Entretanto, aquele socialismo de tipo soviético não demonstrou ser capaz de enfrentar e muito menos de derrotar o capitalismo que se tornou hegemônico a partir dos anos 1970.

Essa incapacidade de continuar competindo, enfrentando, empatando e eventualmente até derrotando o capitalismo tem relação não com o socialismo em geral, mas com o tipo de socialismo existente na URSS: um “socialismo estatal” em que não apenas os principais meios de produção, mas a quase totalidade dos meios de produção era de alguma maneira propriedade e comandada pelo Estado.

A partir de certo momento, o socialismo existente na URSS deixou de desenvolver as forças produtivas no patamar necessário para enfrentar o capitalismo. Impôs um nível de centralização que foi se tornando economicamente ineficiente. O que tem relação direta com a democracia, no sentido de controle social sobre o que produzir, como produzir e como distribuir as riquezas que são produzidas coletivamente.

A necessidade de fazer reformas no socialismo soviético foi apontada pelos seus próprios dirigentes, diversas vezes. Mas a combinação entre as resistências internas – não apenas de setores do partido e do governo, mas também de setores da classe trabalhadora – e uma espécie de “boom das commodities” fez com que o socialismo soviético deixasse as reformas de lado e “deitasse no berço esplêndido”. Num certo sentido, os soviéticos viveram o seu melhor momento econômico e social nos anos 1970, o que contribuiu para não realizar as reformas no momento em que elas tinham grande chance de êxito.

A perestroika

Já nos anos 1980, os problemas eram muito maiores, e as chances de uma reforma com êxito, muito menores. Para agravar, a cúpula do PCUS decidiu começar as reformas pela chamada glasnost (“transparência”), enfraquecendo o poder do núcleo central do partido e do Estado. Acontece que num socialismo de tipo estatal, o comando e o planejamento central eram fundamentais para fazer as coisas funcionarem. O resultado foi agravar os problemas, impossibilitando qualquer êxito na perestroika (reconstrução) econômica e resultando no colapso final.

O colapso da URSS foi uma dupla vitória do capital: uma vitória do capitalismo, mas também uma vitória de certas teses de Marx e Engels acerca do que era a transição socialista, sobre a necessidade de ter um alto nível de desenvolvimento das forças produtivas para poder transitar em direção a uma sociedade comunista etc.

O socialismo – ou seja, a transição ao comunismo – supõe a ampliação do controle da sociedade sobre o que produzir, como produzir e como distribuir. Mas, para que esse controle social não se converta num obstáculo ao desenvolvimento da capacidade de atender as necessidades sociais, é preciso que já tenha ocorrido e/ou que possa continuar ocorrendo o desenvolvimento das forças produtivas. Uma estatização completa ou quase completa dos meios de produção pode, durante algum tempo, estimular esse desenvolvimento; mas também pode, em determinadas condições, se converter em um obstáculo para aquele desenvolvimento das forças produtivas e num obstáculo para a ampliação da democracia. Por essas razões, é possível dizer que o tipo de socialismo consolidado na URSS tinha tudo para não desembocar no comunismo, mesmo que abstraídas as circunstâncias externas.

Ainda assim, o socialismo originado da Revolução de 1917 cumpriu um papel histórico extremamente positivo, tanto internamente quanto externamente. Por exemplo, contribuindo direta ou indiretamente para as lutas anticoloniais, anti-imperialistas, contra o nazismo, pela paz, na solidariedade aos povos que viviam sob ditaduras. Devemos estudar a experiência da Revolução Russa de 1917 e da URSS. Lenin e seus camaradas eram gigantes, que atuaram sem ter nenhuma experiência anterior para servir de parâmetro. Já nós, se cometermos erros parecidos, não poderemos alegar ignorância.

Valter Pomar é doutor em História pela USP e professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC