Internacional

Ao entender a água como bem comum, o Fórum Alternativo dá ênfase à uma gestão pública que leve em conta, prioritariamente, as necessidades das comunidades locais, de excluídos e/ou silenciados, diante das vozes do mercado

A água não é nem pode ser mercadoria, esse “precioso líquido” é um bem comum, que deve ser preservado e gerido pelos povos.  Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Criado em 1996 pelo Conselho Mundial da Água, o Fórum Mundial sobre o tema acontece a cada três anos. Agora em sua oitava edição, o evento foi idealizado com o objetivo de debater e propor iniciativas de defesa e preservação dos recursos hídricos. Também em Brasília, aconteceu o Fórum Alternativo (Fama). Ambos bastante representativos, os debates se desenvolveram a partir das suas premissas, concepções e valores. E, ainda que por ângulos diferentes em suas abordagens sobre o “precioso líquido” e sua importância vital, o ponto em comum é o necessário compromisso para a boa gestão da água.

Do Fórum Mundial, que reuniu representantes de 172 países, resultou documento que propõe a colaboração entre governos e nações e reforça a necessidade de enfrentar os crescentes desafios das questões relacionadas à água. No texto, autoridades reconhecem o papel central dos governantes para o alcance dos objetivos do desenvolvimento sustentável, como prevê a Agenda 2030, da Organização das Nações Unidas (ONU), e aponta para uma visão compartilhada para políticas de saneamento.

A resolução então aprovada lista inclusive recomendações como: priorizar o acesso a água e saneamento de qualidade; avançar em legislações que permitam o uso justo, eficiente e a utilização sustentável dos recursos hídricos; aumentar o financiamento para projetos sobre água e saneamento; apontar riscos e buscar adaptação às mudanças climáticas e proteger áreas sensíveis; e, inclusive, fortalecer a capacidade de governos e cidadãos para a gestão da água.

“Mundo” jurídico no fórum

O 8º Fórum Mundial, considerado o maior já realizado, com mais de 350 sessões em seis dias de atividade, traz também resoluções de segmentos específicos. O Poder Judiciário, representado por juízes, promotores e especialistas em questões ambientais e saneamento dessas corporações em 57 países, que participou pela primeira vez, produziu a “Carta de Brasília”, na qual elenca diretrizes com o propósito de garantir que todas as populações do planeta possam usufruir da água e a garantia de seu acesso para todos.

Também o Instituto Global do Ministério Público, que reúne membros de instituições dessa natureza ao redor do mundo, elaborou sua “Declaração do Ministério Público sobre o Direito à Água”, da qual destaco dois dos princípios então estabelecidos: 1) os direitos, costumes e relacionamentos dos Povos Indígenas e das Populações Tradicionais com os recursos hídricos são fundamentais para a preservação da qualidade da água, devendo entes públicos e privados respeitá-los e protegê-los; e 2) que a água deve ser contínua, suficiente, segura, com qualidade aceitável e preços acessíveis para todos, com regras e mecanismos para a integração e inclusão dos mais pobres.

Eclético e plural, no fórum tivemos também, em âmbito local, um “chamado para a ação sobre água e saneamento”, que reuniu prefeitos, governadores e deputados estaduais de vários estados brasileiros. E, com a preocupação de garantir um futuro sustentável para o planeta e pelo compromisso de enfrentar os crescentes desafios das questões relacionadas à água, foi elaborada e aprovada a “Declaração de Sustentabilidade”, que faz um chamado às partes interessadas para essa necessária mobilização mundial em defesa dos recursos hídricos.

Legislativos debatem e propõem

Como presidente da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável e autor da resolução que indicou a representação da Câmara nesses eventos, tive a oportunidade de acompanhar os dois fóruns e, na condição de coordenador da delegação brasileira, participei dos debates em diversos grupos. Com representantes de legislativos de vinte países, a Conferência Parlamentar produziu também seu manifesto, que aponta os esforços em garantir a segurança hídrica, universalização do acesso à água potável e promoção do desenvolvimento sustentável.

O Acordo de Paris, firmado em 2015, e as Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs – sigla em inglês) são mencionados nesse manifesto como referências para o combate ao aquecimento global cujos efeitos impactam os recursos hídricos do planeta, o que dificulta estimativas sobre sua efetiva disponibilidade e aumenta a incidência de eventos extremos, como secas e inundações. Também destacamos que a boa governança hídrica deve ser fundamentada em processos participativos e democráticos no âmbito de decisões nacionais e internacionais.

Entre outros pontos, o Manifesto Parlamentar aponta, também, que os países devem atuar no sentido de reverter as tendências negativas acerca de uso e distribuição de água potável para todos, de tal maneira que o Objetivo 6 sobre as metas do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável estabelecidas pela ONU, com base em sua resolução 64/292 de 2010, seja alcançado por meio de políticas públicas adequadas para garantir a segurança hídrica e a progressiva eliminação das desigualdades.

Fama: a água como bem comum

Ao mesmo tempo em que o fórum oficial acontecia o alternativo, com mais de 7 mil participantes representando entidades de dezenas de países, foi também evento marcante. De maneira incisiva denuncia as “estratégias das corporações” que visam exercer o controle da água através da privatização, mercantilização e sua titularização como meios para gerar lucros. E vai além, ao destacar que o resultado desejado pelas corporações é a invasão, apropriação e controle dos territórios, nascentes, rios e reservatórios para atender aos interesses do agronegócio, hidronegócio, indústria extrativa, mineração e geração de energia.

O Fama faz o alerta de que o mercado de bebidas e outros setores querem o controle dos aquíferos – estamos, nesse momento, sob a ameaça de privatização do aquífero Guarani. E de que as corporações desejam, também, controlar toda a indústria de abastecimento de água e esgotamento sanitário para impor seu modelo e, com isso, transformar direito histórico do povo em mercadoria – o que nos remete à política desenvolvida no governo Alckmin para a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), cujo papel essencial agora é gerar lucros para seus acionistas, em detrimento da eficiência e qualidade da prestação dos seus serviços.

Veemente na afirmação de que água não é nem pode ser mercadoria, a resolução do Fama entende que esse “precioso líquido” é um bem comum, que deve ser preservado e gerido pelos povos para a necessidade da vida, de tal maneira que possa garantir sua reprodução e perpetuação. Contrário às diversas estratégias que visam a apropriação privada sobre a água, defende seu caráter público dos sistemas urbanos de gestão, bem como os cuidados com água e saneamento.

Ao compreender a água como bem comum, que também é a nossa compreensão, o Fórum Alternativo dá ênfase à necessidade de uma gestão pública que leve em conta, prioritariamente, as necessidades das comunidades locais, em especial os excluídos e/ou silenciados, diante das vozes do mercado. O que pode ser alcançado só mesmo com um processo realmente democrático de debates e decisões sobre projetos que interferem no uso da água e da terra. A cultura da água deve se sustentar em valores éticos, ecológicos e culturais que garantam a inclusão e a justiça socioambiental.

O Fama revela que a onda de privatização verificada na última década do século passado agora vem sendo revertida pela retomada dos serviços pelas municipalidades. Mais de uma década se passou nesses países para concluírem que essa riqueza natural não pode se resumir a fonte de lucros. São centenas de casos de remunicipalização, em cidades como Atlanta (EUA), Accra (Ghana), Berlim (Alemanha), Buenos Aires (Argentina), Budapeste (Hungria), La Paz (Bolívia) e Paris (França), entre outros. Ressalte-se, porém, que a Sabesp de Geraldo Alckmin segue na contramão.

Água e interesses em jogo

Na época apresentada como nova era da globalização, a mercantilização da água, as privatizações dos recursos hídricos e de saneamento revelaram-se em grandes falhas e fracassos. Após experiência conduzida pelos dogmas de mercado para esses serviços essenciais à humanidade e para o bem da natureza, a “fatura” chega também na questão hídrica, com devastações ambientais e humanas em grandes dimensões. Com a remunicipalização desses serviços (bom que os adeptos do “deus mercado” no Brasil tomem conhecimento), os rios com lençóis freáticos, lagos com zonas úmidas, água potável com águas minerais naturais saem ganhando.

Porém, mesmo diante dessa “meia volta” em mais de 180 cidades pelo mundo, ao rever o caráter meramente mercantil da água e saneamento, o fato é que no mundo capitalista os valores de todos os bens são definidos, a partir do seu assim chamado potencial de mercado. Recursos naturais em geral são reduzidos a simples fontes de lucros. Da busca por petróleo e extração de minerais diversos passando, é claro, pela água, impõe-se o poder financeiro dos que detêm o controle sobre as explorações dessas riquezas oferecidas pela “mãe natureza”.

A água para uso, sabemos, é um bem cujo acesso torna-se cada vez mais difícil em razão da poluição e outros fenômenos causados pela degradação humana que contaminam rios e lençóis freáticos. Não por acaso, esse “precioso líquido” é, hoje, razão de muitos conflitos, com tendência a se agudizar com o passar do tempo. Natural, portanto, associar as grandes corporações empresariais a essa disputa. Basta imaginar, por exemplo, o interesse de uma Coca-Cola, Ambev e setores extrativistas como petroleiras e mineradoras. Diante desse cenário, as tarifas de serviços de saneamento e fornecimento de água aumentam em todo o mundo. E, pela perversa lógica do “deus” mercado, esse bem comum tende a não ser mais tão comum assim.

Além das grandes corporações industriais urbanas, o setor agropecuário também se coloca no espectro dos grandes consumidores de água. Estudos da ONU revelam que cerca de 70% desse precioso líquido disponível no planeta destinam-se a processos de irrigação, por conta de um modelo altamente dependente de produtos químicos e fertilizantes que ressecam o solo e contaminam os mananciais. Embora já sejam possíveis iniciativas rumo à agroecologia, com soluções de baixo custo para uso racional da água, sem prejuízo da produção agrícola, o chamado agronegócio resiste e combate medidas nessa direção.

A água e a “lógica” do mercado

Para ter acesso à água e aos serviços hídricos, paga-se preço estipulado pelo mercado. O financiamento da infraestrutura e dos serviços hídricos é assegurado pelo pagamento de uma conta pelos consumidores. Ou seja, prevalece a tese de que os usuários dos serviços hídricos não são cidadãos que têm direitos, mas consumidores dos quais se pode tirar vantagem – é a tal “mão invisível” do mercado, no seu bolso. Vai para o “ralo”, então, a visão da água como bem comum e fica de lado o reconhecimento do direito universal à água e ao saneamento, como prevê resolução da ONU, de julho de 2010.

As questões relacionadas à água apontam muitas preocupações e sérias dúvidas sobre conceitos como bem comum e público referentes aos recursos hídricos e saneamento. A tendência, de fato, aponta na direção do enfraquecimento da atuação estatal para favorecer operações comerciais que, pela crescente dificuldade de acesso, vai se tornando cada vez mais caro. É o jogo do mercado e das finanças sobre o controle deste, que deveria ser um bem comum da natureza para todos, como instrumento para geração de lucro e riqueza para poucos.

Interesses comerciais, disputas e fatores climáticos previsíveis no horizonte de 2050 colocam a questão hídrica como tema central nas esferas políticas, empresariais e das nações. A água, hoje, ocupa papel estratégico em todos os debates sobre os destinos e sobrevivência da humanidade. O problema é que, além do uso predatório, tudo indica que mesmo se respeitados os compromissos assumidos em Paris, na Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2015 (COP21), por ações fortes e coordenadas em plano mundial, o planeta não será poupado dos fenômenos extremos (inundações e secas) que irão impactar os regimes da água em todo o mundo.

Água é preocupação de todos

A complexidade e a seriedade do tema certamente explicam tamanha representatividade tanto no Fórum Mundial como no Alternativo. Água, hoje, é questão de Estado, de geopolítica, de estratégias de sobrevivência de nações, seja através da atuação dos povos e suas organizações populares, seja por meio de corporações empresariais e governos. Não é pouca coisa promotores e juízes de 57 países produzirem sua “Carta de Brasília”. Assim como o Instituto Global do Ministério Público elaborar sua “Declaração sobre o Direito à Água”. Haveria, por trás disso, um processo embrionário de judicialização planetária da água?

São bem-vindas as iniciativas acerca de um tema cuja preocupação é crescente. Autoridades e organizadores do evento apontam como importante inovação a participação, pela primeira vez, do Poder Judiciário de 57 países nesse fórum. Segundo afirmam, por ser instância a qual cabe decisão final sobre disputas envolvendo recursos hídricos, é necessário que tenham melhor compreensão acerca das questões técnicas. As dúvidas começam a aparecer na medida em que possíveis litígios entre nações exigirem soluções de conflito.

A “Carta de Brasília”, documento final como resultado da Conferência dos Magistrados, aborda questões como o papel da propriedade privada na preservação de florestas e do ciclo hidrológico e a relação dos povos indígenas e comunidades tradicionais com a água. Fala de justiça hídrica, equidade no acesso à água e ao saneamento, importância da governança e, também, do necessário acesso público e transparente às informações e da gestão do risco, em casos de incerteza científica. Até aí, perfeito. A pergunta é: para onde penderá a balança diante da escassez? Grandes corporações e países com maiores dificuldades de acesso à água, certamente, estão de olho.

Nilto Lula Tatto é deputado federal (PT-SP) e secretário nacional de Meio Ambiente do Partido dos Trabalhadores