Internacional

A privatização do ensino superior voltou a representar uma ameaça aos estudantes universitários em países onde essas políticas pareciam superadas

O ingresso de estudantes através de quotas étnicas, raciais e sociais ampliou o acesso à universidade em países como o México, Brasil e Venezuela. Foto: Divulgação

Celebrou-se na Argentina, entre 11 e 15 de junho, o centenário da Reforma Universitária de Córdoba, evento realizado nos marcos da III Conferência Regional do Ensino Superior (CRES) da Unesco, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura. Cerca de 10 mil participantes, entre autoridades governamentais, reitores, professores, estudantes de graduação e pós-graduação e técnicos administrativos, oriundos de 33 países do continente, discutiram a situação da educação superior na América Latina e Caribe, em um contexto de internacionalização e mercantilização do ensino na região.

Uma delegação da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), composta por autoridades acadêmicas, professores e estudantes, encabeçada pelo reitor pro tempore, professor Gustavo Vieira, participou da III Conferência Regional da Unesco, que foi realizada na Cidade Universitária de Córdoba, na Argentina. Do encontro resultaram recomendações de políticas públicas e gestão universitária para a próxima década. Dentre os expositores internacionais participaram os professores Boaventura de Sousa Santos, da Universidade de Coimbra, Portugal; Gabriel Rabinovich, da Universidade Nacional de Córdoba, Argentina; Ruth Martha Shady Solís, da Universidade Nacional Maior de São Marcos, Lima, Peru; Daniel Mato, da Universidade Três de Fevereiro, Argentina; Axel Didriksson, da Universidade Autônoma do México, entre outros.

Temas diversos foram apresentados e debatidos pelos participantes, como o sistema educativo da América Latina e Caribe; a diversidade cultural e a interculturalidade; a reforma universitária de Córdoba; o papel estratégico do ensino superior para o desenvolvimento sustentável da América Latina e Caribe; o papel das universidades em face dos novos desafios sociais e identitários; a internacionalização e integração regional da América Latina e Caribe; e a pesquisa científica e tecnológica como motor do desenvolvimento humano.

Única região do planeta resiliente às políticas neoliberais prevalecentes no restante do mundo na década passada, a América Latina passou por mudanças políticas recentes e, a exemplo do que aconteceu nos anos 1990, vem se alinhando às políticas de abertura comercial, flexibilização financeira e privatização das empresas e serviços públicos impostas pelos organismos internacionais. Nesse contexto, a universidade pública tem sido alvo de ataques que visam a desconstruí-la e desacreditá-la. A privatização do ensino superior voltou a representar uma ameaça aos estudantes universitários em países onde essas políticas pareciam superadas.

A internacionalização da educação pela via do mercado abriu as fronteiras da América Latina ao ingresso de empresas transnacionais de ensino oriundas dos países desenvolvidos. Atualmente, essas empresas estão presentes por toda região, onde atuam sem qualquer regulamentação que normatize o seu funcionamento. Sob o comando das transnacionais, o direito à educação vai sendo reconvertido em um privilégio, uma mercadoria lucrativa, o que é muito prejudicial para nossos povos, pois, além de implicar na desnacionalização do sistema educativo, resultará na exclusão dos setores sociais menos favorecidos que não podem pagar pelo acesso à universidade.

Os critérios de acreditação dos cursos superiores, o reconhecimento dos diplomas, o financiamento das pesquisas científicas e tecnológicas passam cada vez mais pelo crivo das empresas transnacionais de ensino. Considerando o papel estratégico da universidade para a formulação de conhecimento que dê sustentação a projetos nacionais e regionais de desenvolvimento, o controle exercido por essas empresas representa uma séria ameaça à soberania da América Latina e Caribe. Ao mesmo tempo, essa tendência vai de encontro à democratização do acesso à universidade, contrariando as políticas que vinham sendo implementadas com êxito por universidades do México, Venezuela e do Brasil, entre outras.

Como se evidenciou ao longo da Conferência, o ingresso diferenciado de estudantes através de quotas étnicas, raciais e sociais ampliou de forma significativa o acesso à universidade nesses países. Essas políticas de inclusão não poderiam ser abandonadas, sob pena de regredirmos à situação de elitização predominante anteriormente. Do modo como vem sendo feita, a internacionalização do ensino representa uma ameaça a esse processo. Para ser contemporânea dos novos tempos, a universidade pública deve abrigar os diferentes segmentos sociais presentes nas sociedades, considerando, especialmente, a riqueza cultural dos povos originários e afrodescendentes, as carências das populações menos favorecidas, a acessibilidade dos portadores de necessidades especiais, as orientações sexuais de grupos LGBTs, entre outros. Isso não será alcançado se a busca do lucro e a mercantilização do ensino prosseguirem avançando sobre as universidades públicas da forma e no ritmo como vem acontecendo.

Nesse contexto de mudanças regionais e internacionais, povoado de incertezas em relação ao futuro das universidades públicas, convém ressaltar o lugar especial das universidades interculturais indígenas. Essas instituições tiveram lugar de destaque na III CRES. Pela primeira vez o encontro contou com a presença de reitores indígenas, representados pela Rede de Universidades Indígenas Interculturais e Comunitárias de Abia Yala (RUIICAY). A educação pública e de qualidade, direito do cidadão e dever do Estado, só alcançará com plenitude os seus propósitos se levar em consideração a pluralidade cultural latino-americana. Em sociedades marcadas por desigualdades socioeconômicas e, por consequência, étnico-raciais, a educação intercultural deve resgatar e valorizar outras cosmovisões e percepções de mundo. O futuro da diversidade cultural depende da qualidade da nossa relação intercultural no presente, como um elemento que seja capaz de valorizar os saberes das populações historicamente excluídas. A temática foi discutida no concorrido painel sobre “Interculturalidade e internacionalização desde os povos da América Latina”, do qual participou a professora Alta Hooker, reitora da Universidade das Regiões Autônomas da Costa Caribe da Nicaraguense (Uraccan) e coordenadora da RUIICAY.

O Brasil constitui um caso exitoso de expansão de universidades públicas na América Latina e Caribe. O exemplo das políticas de inclusão social e democratização do acesso às faculdades brasileiras foi lembrado em diferentes painéis. Segundo dados do Ministério da Educação, o número de estudantes matriculados nos cursos de graduação presencial, graduação a distância e pós-graduação cresceu de 2003 a 2015 de forma contínua e sustentada, como se pode observar no gráfico abaixo:

Gráfico 1 – Matrículas nas universidades federais

Evolução das matrículas em graduação (presenciais e a distância) e em cursos de mestrado e doutorado nas instituições federais de educação superior (em milhares). Fonte: Inep-MEC

Fonte: Inep-MEC, apud Murilo Silva de Camargo, Mesa 19: “Políticas públicas de inclusión sócio-educativas en la educación superior”. III Conferência Regional do Ensino Superior, Unesco.

Nos governos dos presidentes Lula e Dilma, o número de universidades federais passou de 45, em 2003, para 63, em 2016. Foram abertos 331 campus de universidades federais, em 275 municípios, e criados Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) em mais de quinhentos municípios. No mesmo período, foram realizadas mais de 1,2 milhão de matrículas nas universidades federais. Essa expansão tornou-se possível em razão da adoção de programas de ingresso e permanência estabelecidos no Plano de Desenvolvimento de Educação. O Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (2004); o Programa Universidade para Todos (Prouni, 2004); o Programa de Interiorização das Universidades Federais (2005); o Programa Universidade Aberta do Brasil (UAB, 2006); o lançamento do Programa Nacional de Assistência Estudantil e do Reuni (ambos de 2007) são alguns passos que permitiram esse avanço.

Igualmente exitosas foram as políticas de quotas étnico-raciais e ações afirmativas implementadas por universidades públicas a partir de 2003. A IV Pesquisa do Perfil Socioeconômico e Cultural dos Estudantes de Graduação das Universidades Federais (Andifes Fonaprace), de 2014, realizada em um universo de 1 milhão de estudantes das 63 universidades federais, chegou às seguintes conclusões sobre o perfil desses estudantes.

Quadro 1

As atuais políticas do Ministério da Educação do governo Temer colocam em risco esse avanço consistente da expansão da educação superior no país, que poderá voltar a ser privilégio de poucos. Sem recursos para a assistência estudantil e outros programas de permanência, os índices de evasão nos últimos dois anos voltaram a crescer, o que é um sinal do desmonte que o atual governo vem provocando nas universidades brasileiras.

Uma das mesas mais concorridas da Conferência discutiu o significado da Reforma Universitária de Córdoba, movimento de democratização das instituições de ensino superior levado a cabo por estudantes argentinos no início do século passado. Frequentada por filhos de imigrantes europeus, em sua maioria descendente de trabalhadores braçais e iletrados, aqueles jovens estudantes viam na educação superior um meio de ascensão social capaz de libertá-los de uma vida condenada à exploração do trabalho, como foi a de seus pais.

Mas a exemplo do que acontecia nas demais, a Universidade Nacional de Córdoba era uma instituição oligárquica e semifeudal, controlada pelo pensamento religioso, na qual os filhos dos imigrantes se sentiam alvo dos mesmos preconceitos predominantes na sociedade argentina. Divorciada da realidade social do país, a Universidade de Córdoba, com sua liturgia tradicional, métodos pedagógicos ultrapassados e saberes escolásticos e medievais, reproduzia um modelo de ensino distante da realidade cultural, política e social daqueles jovens. Por isso eles se levantaram em junho de 1918, exigindo a participação paritária nos órgãos de gestão e a democratização da universidade, o que implicava a remodelação de todo o ensino superior.

O movimento reformista se espalhou por outros países da América Latina e Caribe e alcançou seus objetivos porque os estudantes cordobezes não se limitaram às reivindicações corporativas dos diferentes segmentos da comunidade acadêmica. Com suas justas demandas por uma universidade à altura dos desafios argentinos, eles conquistaram amplas camadas sociais, indo muito além dos muros universitários. Se posicionaram ao lado de movimentos emancipatórios; apoiaram a revolução russa e lutaram pela igualdade de direitos entre homens e mulheres. Suas posições políticas foram divulgadas no Manifesto de Córdoba de 1918, no qual expressaram a sua visão de uma universidade autêntica. Em seu Manifesto, denunciaram as injustiças reinantes e afirmaram: “As dores que permanecem são as liberdades que nos faltam”. Com seu grito emancipatório, latino-americanista e integracionista, anteciparam em um século o pensamento pós-colonial atualmente em voga na América Latina e Caribe.

As conclusões do encontro foram divulgadas ao final do evento e encontram-se disponíveis para consulta no site da Conferência. Elas reafirmaram o entendimento de que a educação é um bem público, um direito do cidadão e um dever do Estado. Às instituições de ensino superior e à comunidade acadêmica da América Latina e Caribe, que em última instância são sujeitos responsáveis pelo fortalecimento das universidades públicas, competem agora conhecer e divulgar as recomendações da III CRES.

Danielle Araújo é antropóloga, docente da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila)
Renato Martins é sociólogo, docente da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila)