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Homem de esquerda, o político se opunha a qualquer manifestação de autoritarismo. Defendia a democracia que combatesse as desigualdades e garantisse a soberania do povo brasileiro. Seu sonho se encontrou com o sonho de Lula e do Partido dos Trabalhadores

Waldir Pires terminou sua longeva vida pública como vereador do PT. Foto: Xando Pereira/Ag. A Tarde

Waldir Pires partiu na madrugada de 22 de junho, próximo ao São João, a maior festa da Bahia. Despedira-se do povo da Bahia no lançamento do primeiro volume de sua biografia escrita por mim, quatrocentas páginas cobrindo do ano de 1926, quando nasceu, até o final de 1978, quanto termina o AI-5 e ele decide voltar à sua terra para liderar as oposições1. O segundo volume cobrirá o turbulento período de 1979 aos dias atuais. Era 14 de junho, uma semana antes. São as artes do destino para alguns, a mão da providência para outros, ou o insight vindo da alma, a convicção de que o fim está próximo e que aquela podia ser a última chance de ele estar próximo do povo que ele tanto amava. Sabe-se lá o quê, tudo isso é do território do insondável.

As filhas Cristina, Vívian, Lídia, o filho Francisco, a irmã Wilma, Zonita, sua atual companheira, ainda ponderaram: não estava em condições de ir. Reunindo forças, determinou: quero ir. Queria estar onde o povo estava. E receber o livro de minhas mãos. Foi. Quando chegou, já na fase final do lançamento, que reuniu mais de mil pessoas e vendeu quatrocentos exemplares, esgotados às 19h30, iniciado às 17 horas, encerrado às 22h30. Em cadeira de rodas, foi cercado, abraçado, muitas lágrimas, o inesquecível jingle de sua campanha de 1986 cantado por uma centena de pessoas que resistiam na esperança de que ele viesse, eu quero ver um tempo novo de crescer e construir, a Bahia vai mudar trabalhando com Waldir.

Aquilo era um bálsamo. Waldir sempre vivera no meio do povo. Trazia-o de volta à vida, reanimava-o. Não o corpo, já bastante alquebrado, movimentos lentos. Mas a alma, o espírito ardendo em fogo pela proximidade com o calor de sua gente. Deve ter pensado que devia dar uma palavra, aquelas pessoas mereciam uma palavra dele, ele que fora inegavelmente um dos maiores oradores que o Brasil teve. Reuniu as forças que lhe restavam, e eram poucas, e fez o seu último discurso: eu amo todas e todos vocês. Só. E era muito. Declarou o seu amor pelo povo da Bahia, povo que nunca deixou de amá-lo. Teve noção de que deixava sua última mensagem pública. Certamente, compreendia que não teria outra chance, mas isso é ainda outra vez o território do insondável. A Bahia e o Brasil perderam um de seus maiores homens públicos.

Nesse momento, não quero esboçar qualquer tentativa biográfica ampla. O livro o fará. Aqui, atenho-me à relação dele com o Partido dos Trabalhadores. Waldir nasceu no PSD, partido democrático de centro, mas integrado por alguns democratas convictos, de centro que fossem, como Tancredo Neves, e por alguns políticos de esquerda, como os casos de Waldir e Francisco Pinto. Entre 1950 e 1997, passou pelo PTB, MDB/PMDB, PDT e PSDB antes de chegar ao PT. A atração pelo Partido dos Trabalhadores inicia-se no final da década de 1980, quando ele no segundo turno da eleição presidencial afronta os hesitantes do PMDB, afronta o governador Nilo Coelho que o substituíra quando ele saiu para disputar a vice-presidência na chapa de Ulysses Guimarães, e decide pelo apoio a Lula.

Mesmo entre seus companheiros, havia os situados mais ao centro da vida política, que ponderavam, que engatavam um veja bem, que era preciso considerar bem as coisas, essas conversas de quem não quer arriscar. E Waldir nessas horas se agigantava. Correr todos os riscos, mas nunca ficar em cima do muro. Assumiu Lula. Ainda não era hora de ir para o PT, no entanto. Desembarca no PSDB, e nesse partido encabeça a posição de apoiar Lula novamente na eleição de 1994, durante a qual rompia com a política neoliberal de Fernando Henrique Cardoso. Fora um passo a mais na aproximação. Lula, desde 1989, dava sinais a Waldir de que o queria no partido.

Após 1994, vendo o desenrolar agressivamente neoliberal de FHC, começa a refletir seriamente no seu destino partidário. A permanência no PSDB tornara-se insuportável. Em 1997, decide-se pelo PT. Não foi uma decisão fácil. Vários de seus companheiros mais próximos resistiam à ideia. Preferiam uma opção mais suave. Lembro-me de ter me confidenciado a preferência pelo partido, de ter me incumbido de conversar com Zezéu Ribeiro, presidente do PT da Bahia, cuja serenidade e discernimento foram essenciais para uma chegada tranquila. Houve um longo período em que era difícil entrar no PT se o pretendente não tivesse as credenciais de esquerda que o partido considerasse apropriadas. Brincava-se que para alguns se exigia que ajoelhassem no milho. Waldir não entraria de joelhos, nem com o chapéu embaixo do braço, como dizia Goulart. Entraria dignamente, cabeça erguida.

Zezéu contornou tudo. Evidente que havia resistências. Havia a renúncia dele para disputar a vice-presidência ao lado de Ulysses, Nilo Coelho governador, com todas as consequências. E havia algumas visões corporativistas dentro do PT, relativas ao funcionalismo. Tudo foi devidamente aparado, ele chegou ao partido no dia 28 de abril de 1997, numa cerimônia realizada nas escadarias da Câmara Municipal porque os portões não foram abertos para a solenidade, como fora previsto, com as presenças de Lula e José Dirceu. Foi sua última morada partidária. Recusou sempre quaisquer acenos para mudar. Às vezes, fazia críticas à orientação do partido, nunca publicamente, no entanto. Tinha convicção da opção que fizera.

Viu em Lula desde o primeiro momento a grande liderança a conduzir o país a um desenvolvimento cujo destino fosse o de melhorar as condições de existência das maiorias despossuídas, garantir a soberania, inscrever o país entre os grandes do mundo, ser o instrumento de um diálogo civilizatório. Várias vezes escreveu sobre isso, manifestou essa opinião em reuniões do Diretório Nacional, ao qual pertenceu. Sempre teve de Lula um carinho imenso. Era desembarcar na Bahia, e Lula ia à casa dele, e sempre o tinha ao lado nos palanques, e isso acontecia desde antes, quando não havia ainda ingressado no partido. Tornaram-se amigos, e esse sentimento de amizade Lula manifestou quando da morte dele, num curto bilhete vindo da prisão.

É provável que poucos entendam essa guinada de Waldir, já com mais de 70 anos. Talvez porque não saibam como se constituiu seu pensamento. A consciência democrática profunda de Waldir, seu fundamento socialista nascem da inspiração de um Harold Laski, marxista heterodoxo, do Partido Trabalhista britânico, autor de um livro notável, de 1942, editado no Brasil em 1946, tradução de Ênio Silveira e Isa Silveira Leal – Reflexões sobre a Revolução de nossa Época. Essa leitura nos anos 1940 foi sua estrada de Damasco, acompanhado do melhor que havia em Ruy Barbosa, mais ainda em João Mangabeira, recolhendo o que de melhor aparecia em Abraham Lincoln, nas revoluções francesa e americana, em Péricles, sem que nunca, ao lembrar dessas heranças, deixasse se embevecer por tais acontecimentos históricos – sempre lembrava que a democracia, como a compreendia, era um processo em construção no mundo, e que aquelas revoluções nunca eliminaram variadas exclusões.

De Laski, sobretudo, herdara a convicção de que o socialismo, se viesse, deveria vir do leito democrático. Por isso, como o autor britânico, jamais acompanhou a ideia da ditadura do proletariado. E, curioso, o fato de que tal posição não o tenha afastado dos comunistas com quem sempre teve uma relação fraterna, respeitosa, solidária. Quando de sua candidatura a governador em 1962, se indispôs com o cardeal dom Augusto Álvaro da Silva, que exigia dele que declarasse publicamente que não aceitava o apoio do PCB. Recusou-se, teve o combate aberto da Igreja Católica, e por isso perdeu a eleição por menos de cinco por cento dos votos. Na segunda fase de seu recolhimento, quase um segundo exílio, no Rio de Janeiro, entre 1970 e 1978, encontrou-se algumas vezes com dirigentes comunistas, como Giocondo Dias e Luiz Ignácio Maranhão Filho, do Comitê Central do PCB.

Era político visceralmente contrário a quaisquer ditaduras, a quaisquer espécies de autoritarismo. Houve, é verdade, muitos liberais no Brasil que se opuseram ao autoritarismo. Mas Waldir ia além, por convicção. A luta política e a democracia só tinham sentido se acompanhadas de modo rigoroso pelo combate implacável às desigualdades. Democracia não podia ser entendida simplesmente como o regime de eleições. Ela havia de implicar protagonismo popular e distribuição da riqueza, garantia de que todos tivessem condições dignas de existência. E em Waldir havia também a noção de que o Estado Democrático de Direito há de se pautar sempre pela transparência, pela existência de instituições sólidas capazes de combater a tentação humana de se apropriar de recursos públicos. Sua forte compreensão nacionalista não o levava a ser estreito, a ser partidário de qualquer fechamento do país em si mesmo. Era marcado, sobretudo, pela independência em relação aos impérios, especialmente, durante sua vida, ao Império norte-americano.

Toda essa compreensão ele observou durante a existência como homem de esquerda. E por isso o encontro das águas – o encontro com o PT. Partido democrático, que desde o início não adotara a ditadura do proletariado, que afirmava a democracia como um valor essencial, que marcava-se pela luta contra a desigualdade, que admitia divergência, que queria o diálogo entre diferentes, o Brasil como parceiro de seus vizinhos e dos países mais frágeis. Não foi acaso o encontro. Um encontro de sonhos, de ideais. E por isso o mais longevo partido de Waldir durante toda sua vida política. Terminou sua atividade política pública como vereador do PT. Morreu militante do PT.

Emiliano José é escritor e integra o Conselho de Redação de Teoria e Debate