Sociedade

Apoiando-se nas frustrações e medos do setor mais volátil da sociedade, a classe média, o golpe tem uma dimensão racista, misógina e xenofóbica e, portanto, fundamentalmente fascista

Os governos Lula e Dilma elegeram como prioritários setores vulneráveis da população: mulher negra, jovem negro, nordestino, operário, trabalhador rural. Créditos: Ricardo Stuckert/Instituto Lula

Toda mudança social ocorre primeiro na dimensão simbólica, assim como a violência física também é precedida pela violência metafórica. Os governos Lula e Dilma foram identificados por aqueles que os apoiavam e por quem lhes fazia oposição por alguns símbolos e sínteses que, em verdade, representam os setores da população eleitos como prioritários na intenção de corrigir suas históricas vulnerabilidades: mulher negra, jovem negro, nordestino, operário, trabalhador rural.

Ao longo do segundo mandato de Lula e do primeiro de Dilma, um debate que envolveu boa parte da intelectualidade, da militância de esquerda e dos meios de comunicação foi a tentativa de determinados setores de caracterizar como classe média a parcela da população mais pobre que obteve ascensão econômica naquele período. Marilena Chaui, Jessé Souza, Marcio Pochmann, dentre outros, souberam precisar o caráter daquele grupo social como integrante da classe operária, agrupamento que, desde o advento do trabalho assalariado no país, foi condenado à miserabilidade e que, naquele período, graças à recuperação do poder aquisitivo dos seus salários e aos programas de inclusão social, se aproximava do padrão de consumo da classe operária europeia.

Não se pontuou naquele debate, todavia, o fato de que a tentativa de “capturar” para a classe média os operários com mais acesso a bens de consumo se assemelhava a um projeto de cooptação anterior, que tem a questão racial como centro. O contumaz mascaramento da negritude de quem ascendeu socialmente no Brasil – que passa a ser chamado de mulato, moreno, jambo e mais um cem-número de classificações – surge do desejo de sua absorção subalternizada à sociedade que, em contrapartida, condiciona essa inserção ao seu branqueamento físico (eugenia) e cultural (etnocídio).

Vivemos em um país onde raça e classe são coincidentes. A imensa maioria da classe operária e dos pobres é composta de negros, enquanto praticamente a totalidade da classe dominante e a maioria da classe média são brancas. Classificar os operários com pequena melhora nos padrões de consumo de “nova classe média” e os negros com incipiente ascensão social de “morenos” são duas vertentes da mesma concepção ideológica, matriz dos instrumentos de cooptação que supervalorizam a mobilidade econômica e social individual em detrimento dos processos coletivos e buscam esvaziar de caráter revolucionário tanto a classe operária como os negros que, a bem da verdade, compõem o mesmo agrupamento social.

Não foram somente os setores historicamente excluídos os únicos beneficiados pelas quatro gestões petistas. Também os setores médios obtiveram significativas melhorias nos seus padrões de consumo e acesso facilitado a bens mais valiosos, até então conquistados com extrema dificuldade; além disso, graças ao vigoroso crescimento do mercado interno e das exportações, as elites econômicas aumentaram suas fortunas.

Concordando com as argumentações e análises de agrupamentos políticos que criticavam aqueles governos a partir de concepções mais à esquerda, é possível caracterizar as gestões de Lula e Dilma como governos de colaboração de classes. Todavia, essa colaboração é rompida quando o establishment internacional e nativo detecta o início da supressão de seus lucros astronômicos e a possibilidade de perpetuação da esquerda no poder, fatores que devem ser somados às razões ideológicas da classe média, que considerava – e considera – que aqueles governos não eram seus. Consideração essa materializada na frase “quero meu país de volta”, bordão utilizado pelos manifestantes de 2013, pelos apoiadores de Aécio Neves em 2014 e pelos defensores do impeachment em 2016.

A construção do caldo de cultura teve início bem antes dos episódios de 2016, e segue legitimando o desprezo ao diferente, maximizando os preconceitos escondidos e alimentando o ódio, que acabou sendo materializado no apoio da classe média branca ao golpe. Foi necessário utilizar a violência simbólica para desclassificar e tornar inimigos os indivíduos que sintetizavam aqueles governos. Foram assim se criando, no imaginário do país, as condições subjetivas que iriam legitimar o golpe, como forma de fazer com que aqueles “usurpadores” voltassem a “seus lugares”.

Mais uma vez, o movimento de reciclagem e fortalecimento dos velhos preconceitos dos historicamente privilegiados utilizou a arte e os meios de comunicação como principais instrumentos. Humoristas, apresentadores de televisão e músicos que se vendiam como modernos e transgressores, insurgidos contra a “chatice” e “caretice” do politicamente correto, ocuparam a vanguarda da desconstrução de valores éticos de respeito e solidariedade. E paulatinamente conquistaram a aceitação popular, na medida em que seu discurso encontrava eco nas frustrações e incômodos daquela classe média, contrariada com a perigosa proximidade das figuras sínteses das gestões petistas que, então, ousavam ultrapassar a linha tênue que separa os privilégios de uns e a segregação social e econômica de outros.

Conquistaram assim notoriedade programas humorísticos como Pânico, CQC, Legionários, Agora É Tarde etc., que propagandeavam e naturalizavam o racismo, a misoginia, o homofobismo, a xenofobia e, de quebra, desqualificavam e ridicularizavam a política e os políticos, reforçando o senso comum. Consciente ou inconscientemente, tornaram-se porta-vozes da ideologia estamental que estabeleceu um padrão social, racial, cultural, religioso, estético, geográfico, comportamental e sexual excludente e elitista.

Não por acaso, tendo iniciado suas carreiras de stand up em clubes e pequenos teatros, esses humoristas e comunicadores foram rapidamente contratados pela grande mídia. Para serem legitimados, contaram ainda com defensores na academia, como, dentre outros, o midiático filósofo Luiz Felipe Pondé, que em entrevista à Folha de S. Paulo em 11/4/2012, em torno do seu livro Guia Politicamente Incorreto da Filosofia, reforçava e dava verniz erudito àquele humor chulo. Argumentava aquele professor que “o pensamento politicamente correto é uma praga, uma vez que existem diferenças naturais de virtudes entre os homens” e, assim, o discurso igualitário estaria a serviço do mau-caratismo, da preguiça e da nulidade, uma vez que, segundo ele, alguns poucos seriam mais fortes, mais capazes e melhores, exercendo, portanto, liderança natural sobre “os médios e medíocres”.

Em 1977 o cineasta sueco Ingmar Bergman lançou o filme O Ovo da Serpente, abordando a gênese do nazismo, processo no qual a ciência e o imaginário popular foram manipulados para favorecer a construção e a implementação daquele regime, que maximizou o histórico antissemitismo europeu. Enquanto na Alemanha das décadas de 20 e 30 do século passado o inimigo era o judeu, que “roubara os empregos e a riqueza do país”, no Brasil do século 21 os inimigos são o negro, o nordestino e o pobre em geral, que ousaram “sair dos seus lugares”, como bem ilustram as inúmeras manifestações de preconceitos que inundaram as redes sociais ao final do pleito de 2014. Esse golpe, portanto, construído no imaginário popular com os mesmos métodos de Joseph Goebbels, apoiando-se nas frustrações e medos do setor mais volátil da sociedade – a classe média –, tem uma dimensão racista, misógina e xenofóbica e, portanto, fundamentalmente fascista.

O fascismo e seus sinais

Embora sejam as principais propagadoras dessa ideologia, dificilmente as classes dominantes se tornam de fato fascistas. Seu pragmatismo e o domínio das informações estratégicas que determinam o andamento da sociedade e a manutenção do seu poder impedem que se deixem seduzir por propostas construídas a partir de elaborações teóricas rasas e slogans superficiais. Esse é um fenômeno típico da classe média, de ordinário, manipulada por quem de fato detém o poder econômico e político. A maneira como se dá sua construção pode ser resumida nas quatorze características, como alertava Umberto Eco, em palestra na Universidade de Columbia, em 19951.

  • Culto da tradição. Para amalgamar o público manipulado, é necessário fortalecer a tradição e exaltar um passado idealizado que, na maioria das vezes, se materializa em um mito fundador da nação ou do grupo étnico/social que se quer conquistar.
  • Rechaço do modernismo. Os valores difundidos pelo Iluminismo e até mesmo parte das ideias do Modernismo renascentista, o Racionalismo em especial, são vistos como o princípio da depravação moderna. Nesse sentido, o fascismo pode se definir como um irracionalismo.
  • Culto da ação pela ação. Pensar é uma forma de castração. Por isso, à medida que é identificada com atitudes críticas, a cultura torna-se suspeita.
  • Rechaço do pensamento crítico. O espírito crítico opera distinções e distinguir é sinal de modernidade, logo está em desacordo, é traição.
  • Medo do diferente. O primeiro chamamento de um movimento fascista, ou prematuramente fascista, é contra os intrusos. O fascismo é, pois, xenofóbico e racista por definição.
  • Apelo às classes médias frustradas. Em nossa época, o fascismo encontrará seu público nessa nova “maioria”. No caso do Brasil, essa base social é formada principalmente pelas classes médias, temerosas de uma possível perda de privilégios seculares e incomodadas pela crescente proximidade econômica e social dos “de baixo”, que confundia os sinais de status que distinguem umas e outros.
  • Nacionalismo e xenofobia. Obsessão pelo complô. Os seguidores do fascismo têm que se sentir ameaçados. Em um país onde a imigração foi a tônica e o motivo de orgulho dessa classe média oriunda da Europa, é necessário que o imigrante que representa perigo tenha alguma marca que o distinga do “imigrante legítimo”. Assim, o imigrante abjeto será aquele que mais semelhanças tiver com o brasileiro síntese, objeto das políticas sociais daqueles governos: haitianos, latino- americanos e africanos em geral.
  • Inveja e medo do “inimigo”. Esse inimigo – interno ou externo – deve ser acusado de se apropriar de algo que não é seu e que deveria beneficiar somente o cidadão “legítimo”. Seja bens de consumo que o “legítimo” almeja, seja empregos que por ventura poderia ocupar, e até mesmo se for beneficiário de programas de inclusão social, classificados pelos fascistas e protofascistas como formas de o Estado “sustentar vagabundos”.
  • Princípio de guerra permanente, antipacifismo. Se existem inimigos, a guerra será sempre necessária. O fascismo é, por natureza, violento. Sua tônica são soluções bélicas para todos os problemas da vida em sociedade: apoio ao retorno de regimes militares, no caso do nosso país reforçado por um passado recente idealizado; defesa da pena de morte; redução da maioridade penal; matança e hiperencarceramento da juventude negra e pobre são soluções sempre à mão do pensamento fascista.
  • Elitismo, desprezo pelos fracos. Muito presente naqueles programas de humor a que nos referimos anteriormente, em que o ódio e o desprezo pelos diferentes eram disseminados, com os velhos preconceitos reciclados e apresentados como transgressão e inconformismo. O objeto da ridicularização nunca será um homem branco, do Sudeste, heterossexual, adulto, com compleição física dentro dos padrões estabelecidos pelas academias de ginástica, com bom poder aquisitivo e nível superior. O alvo será sempre a mulher, o homossexual, o nordestino, o pobre, o analfabeto, o negro, os portador de necessidades especiais, o mais fraco, o marginalizado.
  • Heroísmo, culto à morte. É uma ideia que se soma à de guerra permanente. Há que se apropriar de heróis e mártires do passado ou criá-los no presente, assim como levar alguns (milhares, se for o caso) inimigos à morte para exemplificar e explicitar até onde se é capaz de chegar em “defesa da nação”. A violência precisa ser naturalizada, valorizada e cultuada.
  • Transferência da vontade de poder às questões sexuais.Transferência do sexo ao jogo das armas. O fascismo é fundamentalmente misógino e homofóbico. Ao criar um ideal de cidadão baseado em valores e comportamentos tradicionais, será necessariamente criminalizada a orientação sexual diversa e exaltado o papel subordinado das mulheres que a tradição propugna. A energia sexual reprimida por esses valores será canalizada para atos de agressividade social, para jogos e modalidades esportivas supostamente viris, que envolvam armas e violências, com seus praticantes apresentados como exemplos de destemor e superação individual. Para além do objetivo econômico, a retirada da velha “luta livre” dos programas e canais de baixa audiência das madrugadas e sua elevação à condição de espetáculo nos horários nobres da Globo fez parte desse movimento de naturalização da violência. Adotam nomenclaturas em inglês, UltimateFightingChampionship – UFC e MixedMartialArts – MMA, para agradar as cabeças colonizadas, de maneira que, com mais facilidade, sejam vendidas a versão glamorizada de um esporte extremamente violento e a ideia de tratar-se de um “programa para toda a família”. É sintomático que parte significativa dos manifestantes de 2013 fosse integrada justamente por frequentadores de academias de ginástica.
  • Populismo qualitativo, oposição aos “apodrecidos governos”. Disseminação de dúvidas acerca da legitimidade do Parlamento e do Executivo, que já não representariam a “voz do povo”. Busca por um führer ou um duce que irá salvar a pátria. Desvalorização sistemática, demonização e criminalização da política. Práticas óbvias do Poder Judiciário e da grande mídia monopolista durante a última década.
  • “Novilíngua”. Todos os textos escolares nazis ou fascistas se baseavam em um léxico pobre e em uma sintaxe elementar, com a finalidade de limitar os instrumentos para a prática do raciocínio complexo e crítico. Em nosso país, as duas grandes vertentes desse pensamento estão representadas nas lideranças religiosas fundamentalistas e no movimento autodenominado Escola sem Partido, que se opõem à educação sexual, questionam a laicidade do ensino e combatem o estudo da cultura africana.

Os flash mobs do mal

Em um espectro ideológico oposto à onda fascista que ganhava corpo junto à classe média branca, estudantes universitários iniciaram, em junho de 2013, manifestações em defesa da gratuidade no transporte coletivo. Essas manifestações foram lideradas pelo “Movimento Passe Livre”, criado em 2005 durante o Fórum Social Mundial em Porto Alegre, e que já havia protagonizado diversas outras manifestações com essa mesma demanda. Composto basicamente por estudantes universitários do Sul e Sudeste do país – integrantes portanto da mesma classe média branca que flertava com o fascismo –, esses ativistas de extrema-esquerda rejeitavam as “velhas” formas de organização popular, questionavam o “verticalismo” do movimento sindical e dos movimentos sociais tradicionais, e propunham uma forma horizontal de organização e luta, em que não existiam lideranças e porta-vozes. Alguns se identificavam como anarquistas e parte deles adotava as táticas black blocs, surgidas na Alemanha nos anos 80 do século 20.

Inicialmente limitada à defesa da “tarifa zero”, a pauta precisou ser ampliada quando, devido às possibilidades de divulgação proporcionadas pelas redes sociais e surpreendendo os organizadores, as manifestações foram se tornando gigantescas. Na verdade não havia demandas a serem apresentadas para aquela juventude que atendia os chamados que viralizavam na internet, sem saber exatamente o que fazia ali e que se movimentava com um espírito muito parecido ao dos participantes dos flash mobs, convocações feitas pelas redes sociais, surgidas nos Estados Unidos nos anos 2000, com o objetivo de promover uma intervenção artística ou uma brincadeira coletiva em espaços públicos surpreendendo os transeuntes.

Surge, então, a palavra de ordem “não é só pelos 20 centavos”. Carentes de demandas objetivas, as lideranças do “Passe Livre” improvisaram e ampliaram para pautas óbvias, de fácil absorção pelo senso comum e defendidas por todos os espectros políticos: saúde, educação, habitação, segurança e... combate à corrupção. Essa última, diligentemente pautada pela Rede Globo que, desde a Ação Penal 470 – primeira tentativa de golpe, debelada graças à extrema habilidade e popularidade de Lula –, tentava carimbar os governos petistas como corruptos.

A esquerda inicialmente exultou com aqueles “novos atores”, mas, a partir das agressões sofridas nas manifestações, sob o lema “sem partido”, percebeu que aquela massa havia sido capturada pelas pautas impostas da mídia e da direita e, perplexa, desistiu de disputar a direção do movimento. Sem lideranças definidas, organização concreta e pauta real, o movimento foi hegemonizado por policiais, provocadores pagos pelo empresariado e segmentos que defendiam bandeiras absolutamente diversas, com objetivo único de desgastar o governo federal. Os verdadeiros “flash mob” de 2013, portanto sob a palavra de ordem absolutamente despolitizada e vazia de conteúdo, “vêm pra rua”, são responsáveis pelo ressurgimento da direita e de setores que pregam a volta da ditadura civil/militar, racistas, misóginos e xenófobos.

Essa despolitização inicial permitiu que, ao promover a mais extraordinária e tendenciosa cobertura jornalística de que se tem notícia no país, a Globo impusesse sua pauta às manifestações. Mais que responsáveis por fazer a cobertura dos fatos, os jornalistas, âncoras e analistas da emissora tornaram-se as verdadeiras lideranças do movimento, convocando a população para apoiar bandeiras sobre cujo significado não fazia a menor ideia qual era – como a oposição à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 37, que limitava o poder do Ministério Público – e imprimindo dimensão épica ao episódio por meio, por exemplo, do slogan publicitário “o gigante acordou”.

Abriram-se, assim, “as portas do inferno”, um período em que todo tipo de celerado foi para as ruas e redes sociais vomitar ódio ou abraçar as causas mais absurdas, em uma miríade de demandas desconexas e improváveis, gerando, inclusive, iniciativas bizarras, como um grupo que, em 18 de outubro de 2013, invadiu um laboratório de pesquisas em São Roque, interior de São Paulo, para “salvar” cachorros, coelhos e... ratos de laboratório que, segundo aqueles “ativistas”, eram vítimas de maus-tratos.

A falta de lastro social e de reivindicações reais e objetivas, o caráter de surto daquelas manifestações, próximo de uma histeria coletiva, levaram ao seu fim, da mesma maneira espontânea, desorganizada e sem propósito que surgiram. Deixaram como remanescentes, por mais alguns meses, centenas de baderneiros mascarados, sem demandas, sem objetivos, sem rumos, contribuindo apenas para legitimar a ação truculenta das polícias, além do fortalecimento das propostas e personagens obscurantistas do submundo da política que, a partir daí, se sentiram legitimado(a)s para se apresentar em público e à luz do dia.

O roteiro do golpe

Foi a partir do empoderamento das forças reacionárias, resultado direto daquelas manifestações, que se traçou um verdadeiro roteiro para o golpe. Evidentemente não se trata de um plano único, formulado por uma mente maquiavélica, com início, meio e fim, e sim um conjunto de ações mais ou menos coordenadas, unidas por um fio condutor e objetivo central: fazer os pobres voltarem ao “seu lugar”, apear, a qualquer preço, tirar a esquerda do poder e alinhar novamente o país com os interesses do mercado financeiro internacional. Os vacilos anteriores, as hesitações e fragmentações das elites, resultantes da ação, das gestões conciliadoras dos dois governos Lula e do primeiro governo Dilma, foram absolutamente superados e, a partir de então, todas as armas passaram a ser utilizadas.

A grande festa midiática, esportiva e comercial prometida para a Copa do Mundo tornou-se um dos pontos a serem atacados. Resgatou-se o velho “complexo de vira-latas”, disseminando na grande mídia e nas redes sociais toda sorte de mentiras, boatos e previsões catastróficas acerca da mobilidade, hospedagem e violência urbanas das quais se tornariam vítimas os visitantes estrangeiros, além de críticas nunca antes vistas em eventos semelhantes quanto aos valores investidos. Tudo isso foi materializado na campanha “Não vai ter Copa”, abraçada inclusive por alguns grupos de esquerda que, de maneira oportunista e irresponsável, fizeram coro aos ataques da grande mídia.

Para decepção daqueles arautos da desgraça, o único vexame ocorreu dentro do campo. Os estrangeiros elogiaram a organização, limpeza, rapidez e receptividade dos brasileiros, os resultados econômicos e de empregabilidade superaram todas as expectativas e a imagem positiva do Brasil no exterior atingiu níveis nunca antes experimentados. Desesperados, os futuros golpistas apostaram todas suas fichas nas eleições de 2014. Nem mesmo na eleição de Fernando Collor de Mello, em 1989, houve uma tão declarada parcialidade da mídia na cobertura de um pleito. Os principais meios de comunicação do país transformaram-se em verdadeiras assessorias de imprensa e núcleos de propaganda das candidaturas oposicionistas. O ponto mais alto, certamente, foi a capa da revista Veja, de 23/10/2014, às vésperas do segundo turno, com matéria inverídica e tão caluniosa que o Tribunal Eleitoral se viu obrigado a proibir a veiculação.

Em que pese todo esse movimento orquestrado, a direita perdeu as eleições para presidente porque no segundo turno os movimentos sindical, social e estudantil, portanto as organizações populares tradicionais, perceberam o risco de derrota e foram para as ruas defender aquele projeto, com uma espetacular união da esquerda em torno da defesa do mandato de Dilma. Talvez tenha sido nesse momento que a direita se convenceu de que não conseguiria mais voltar ao poder central através de eleições, em que pese o fato de ter conseguido eleger governadores conservadores em estados importantes e ampliar as bancadas defensoras do mercado, do conservadorismo e do autoritarismo. Foi essa maioria parlamentar, eleita em 2014, que protagonizou o impeachment da presidenta Dilma, evidentemente apoiada por um Judiciário elitista e antinacional e uma mídia monopolista, historicamente descomprometida com os valores democráticos.

Assim, podemos afirmar que as manifestações de 2013 deixaram um “belo” saldo para a população brasileira: a midiática e hiperpartidarizada Operação Lava Jato, iniciada em 17 de março de 2014; grupos organizados de extrema- direita como Movimento Brasil Livre (MBL) e Revoltados On Line; aumento do fundamentalismo, da misoginia, do racismo e da homofobia, agora legitimados e publicizados; estado laico em perigo; surgimento do movimento Escola sem Partido e imposição da educação religiosa cristã; aumento da violência no campo e na cidade e do discurso a favor de mais violência; eleição de um Congresso campeão em conservadorismo, entreguismo e defesa do mercado; materialização do golpe de 2016, seguida do maior ataque de todos os tempos aos direitos sociais, além da entrega do patrimônio nacional.

Outros protagonistas

Em que pesem certas semelhanças e a proximidade etária, os estudantes secundaristas que ocuparam centenas de escolas em São Paulo e em outros estados em 2015 não podem ser considerados como parte do mesmo movimento de 2013, nem mesmo herdeiros daquelas agitações. Esses novos protagonistas eram, na totalidade, meninas e meninos moradores das periferias e de habitações precárias dos centros urbanos, pobres, em sua grande maioria de negros. Eram os filhos da classe operária, atendidos pelas redes estaduais de educação e, evidentemente, com demandas diferentes daqueles que se mobilizaram em 2013. Levaram a luta ao limite, enfrentaram corajosa e organizadamente a violência policial; conquistaram apoio dos sindicatos de professores, dos pais, de organizações de estudantes universitários, de artistas e de amplos setores da sociedade. Em São Paulo impuseram ao governador Geraldo Alckmin, do PSDB, a sua mais profunda derrota política, obrigando-o a demitir o secretário de Educação e revogar o decreto que impunha o projeto de reorganização das escolas.

Diferentemente do Movimento Passe Livre, os estudantes secundaristas reconheceram a legitimidade das organizações estudantis, sindicais e populares, souberam estabelecer alianças sem se subordinar à lógica das direções daquelas entidades, garantindo a autonomia do movimento. Possuíam uma pauta objetiva, contra a reorganização escolar e pela defesa da escola pública de qualidade, e se manifestavam utilizando as mais diversas linguagens artísticas, imprimindo um clima de grande solidariedade e fraternidade entre os integrantes do movimento. Suas demandas, todavia, eram amplas, generosas e profundamente questionadoras dos valores conservadores.

Desde o início, levantaram bandeiras contra a discriminação racial, o machismo e a homofobia e deixaram como legado uma miríade de novos atores políticos extremamente jovens, empoderados e conscientes.

Praticamente o mesmo grupo social – adolescentes negros das periferias –também criou grandes transtornos para o establishment – o governo de São Paulo e as forças de repressão – ao colocar em cheque a democracia e um dos direitos a eles historicamente negados: frequentar os centros de consumo da classe média. Ligados ao movimento funk, os chamados rolezinhos, que saíram da invisibilidade dos guetos e periferias para ocupar espaços nos shoppings centers de São Paulo, representaram um vigoroso desafio à secular gentrificação, além de constituírem um exemplo de resistência sócio/cultural.

Embora efêmero, aquele movimento guardava semelhanças com os batuques e cateretês do século 19, com a infiltração de negros nos corsos de carnaval da burguesia no início do século 20, e com os bailes blacks, antecedidos pela ocupação de ruas elegantes do centro de São Paulo, onde nas décadas de 1960 e 1970 funcionavam os points, e ainda com a radicalidade discursiva e comportamental do movimento hip-hop dos anos 1980 e 1990. E assim como aquelas manifestações do passado, o movimento dos rolezinhos foi criminalizado e reprimido com violência, até que mais uma vez aqueles jovens “voltassem ao seu lugar”.

Superando o “esquerdismo, doença infantil do comunismo”

Os ativistas de 2013 desapareceram porque não tinham compromisso social real. Personagens que obtiveram extraordinária notoriedade na ocasião e que hoje estão ausentes na resistência ao golpe – como Elisa Quadros, a Sininho, e Karlayne da Silva Moraes, a “Moa” – exemplificam a origem social dessas pessoas e o quanto suas militâncias eram efêmeras, assim como os milhares de black blocs, na verdade agentes provocadores infiltrados que focavam governos como Dilma e Haddad, embora causassem desconforto para os governadores de direita. As manifestações de junho de 2013 constituíram um típico movimento de classe média que saiu do controle, representaram um erro e abriram as portas para a direita e o golpe. Os pobres que a ele inadvertidamente aderiram tiveram tratamento semelhante ao dado a Rafael Braga, negro, favelado, encarcerado até os dias de hoje, o único condenado por conta daquelas imensas e, via de regra, violentas manifestações.

Quem garantiu a eleição de Dilma em 2014 e está resistindo ao golpe é o movimento sindical e social organizado, que também está à frente no enfrentamento ao avanço do fascismo, cuja expressão mais evidente é a prisão política do ex-presidente Lula. A resistência tem sido possível graças à organização e união das entidades populares tradicionais, que contam com estrutura ordenada, lideranças legítimas e representativas, além de demandas claras, objetivas, e à grande capilaridade nacional. Esse conjunto de entidades, todavia, não tem sido suficiente para barrar o avanço fascista nos meios de comunicação, nos legislativos, executivos e, principalmente, no Judiciário que, não por acaso, tem sistematicamente criminalizado os movimentos por elas representados.

É fato que as históricas organizações populares e sindicais precisam ser arejadas, recicladas nas formas de luta e na estrutura organizacional, de maneira a abrir espaços para as gerações atuais e futuras que, certamente, enriquecerão e ampliarão a luta com práticas diferenciadas. É falsa, contudo, a ideia de que existe uma crise geracional e que as práticas da juventude estariam em oposição às tradicionais formas de luta; ao contrário, elas são complementares, tornando-se portanto urgente a incorporação desses novos protagonistas às lutas específicas e gerais.

Certamente esses novos atores não são representados pelos moradores dos bairros nobres das capitais e grandes cidades do interior, que lotaram as avenidas, atendendo a convocação de federações de empresários e da Rede Globo. Tardiamente arrependidos, é possível que, confirmando o caráter pendular dessa classe média, em algum momento tais atores venham a somar com os trabalhadores e os pobres em geral. Contudo, os novos protagonistas, aliados naturais do movimento sindical e organizações sociais populares, são aqueles e aquelas que representam a síntese dos governos petistas, presentes nas ocupações de escolas, na Marcha das Mulheres Negras em 2015 e nas manifestações dos sem-teto e sem-terra, antes e depois do golpe. São os 19 milhões de desempregados2 atirados à marginalização econômica pelos golpistas, que não têm como participar de sindicatos, mas necessitam que estes abram seus espaços para suas demandas e organização.

As inúmeras e acertadas iniciativas do movimento social organizado ainda não foram suficientes para politizar esse enorme contingente de maneira que a identificação com aqueles governos fosse convertida em mobilizações na defesa dos seus interesses com as mesmas proporções daquelas que a classe média branca realizou em defesa dos seus privilégios. O reconhecimento do protagonismo e do caráter revolucionário dessa juventude e a agregação das suas formas de luta, sem tentativas de cooptação e respeitando sua autonomia, é possível e desejável, mas é fundamental a compreensão que a composição étnica e de classe os diferencia profundamente dos manifestantes de 2013.

Essa aliança com segmentos diversos da mesma classe social só será possível se as organizações tradicionais reinventarem as formas de participação, superarem o exagero de verticalismo e forem capazes de agregar as legítimas demandas dessa juventude e dos demais segmentos ainda não organizados, permitindo a eclosão de todo o seu potencial como reais agentes da renovação, da defesa dos direitos conquistados e como construtores da sociedade igualitária que vinha sendo erigida na última década, abortada – temporariamente, temos certeza – pelo golpe de Estado que em 2016 vitimou todo o povo brasileiro.

Ramatis Jacino é professor do Bacharelado em Ciências Econômicas da Universidade Federal do ABC e militante do Partido dos Trabalhadores, atualmente participando da Comissão Nacional do Programa de Governo da candidatura Lula