Com o aumento do desemprego e a redução da renda das famílias cai o número de cidadãos que consegue manter um plano de saúde. Foto: Marcelo Camargo/ABr
A assistência à saúde, no Brasil, é direito social assegurado pelo art. 6º da Constituição, e, ainda, pelo seu art. 194, integrando o conceito de seguridade social como um conjunto de ações integradas dos poderes públicos e da sociedade. Entre os objetivos da seguridade social estão a universalidade da cobertura e do atendimento, assim como a seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços.
A saúde é também contemplada no art.196 como direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doença e de outros agravos e o acesso igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.
Na forma do art. 197, são de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao poder público dispor sobre a sua regulamentação, fiscalização e controle. A execução pode ser feita diretamente ou através de terceiros, e, também, por pessoa jurídica de direito privado.
Embora desde 1975 houvesse discussão sobre a implantação de um serviço público universal de saúde, inexistia, até 1988, a garantia constitucional de um sistema público de saúde de acesso universal. O atendimento em hospitais públicos era restrito aos trabalhadores filiados à Previdência Social, e prestado por meio de uma rede vinculada ao Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps)1, própria ou por ele credenciada, e remunerada com base em serviços prestados aos usuários, ou por meio de instituições filantrópicas, para os que não tivessem vínculo com a Previdência. Apenas o atendimento em prontos-socorros e a vigilância epidemiológica, de responsabilidade de municípios e estados, era universalizado2.
Para os trabalhadores empregados, ou aqueles que pudessem pagar por isso, havia, ainda, o acesso a um sistema privado de serviços de saúde, composto por operadoras de planos de saúde, que não estava sujeito a uma regulação específica, mas ao controle e regulação da Superintendência de Seguros Privados, vinculada ao Ministério da Fazenda.
Em 1986, a VIII Conferência Nacional de Saúde adota a proposta de criação de um sistema nacional de saúde, descentralizado, baseado nos preceitos da Reforma Sanitária e das Conferências Internacionais sobre Promoção da Saúde, realizadas em Alma-Ata, em 1976, e em Ottawa, em 1986, na qual a assistência à saúde passa a ser vista como um direito universal e um instrumento para o desenvolvimento social, a ser tratado como prioridade pelos governos. Em 1987, o Decreto nº 94.657, de 20 de julho, cria o Programa de Desenvolvimento de Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde nos Estados (SUDS), com o objetivo de contribuir para a consolidação e o desenvolvimento qualitativo das ações integradas de saúde a ser implantado e executado segundo diretrizes aprovadas pelo presidente da República, incorporando, como diretrizes, a universalização do acesso à saúde, a integração, a integralidade, a hierarquização, a regionalização do sistema de saúde e o controle social3.
A Constituição de 1988 incorporou esses princípios, mas manteve o modelo dual de prestação de serviços, e, em seu art. 199, preservou a liberdade de prestação de assistência à saúde pela iniciativa privada. Previu, ainda, que as instituições privadas poderiam participar de forma “complementar” do sistema único de saúde então previsto, mediante convênios ou contratos de direito público. E vedou, expressamente, a participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde do país, salvo nos casos previstos em lei4.
Porém, ao criar um sistema público e universal de acesso à assistência à saúde, o Sistema Único de Saúde (SUS), implementado pela Lei nº 8.080, de 1990, implantou um modelo de “cobertura duplicada”, que, em tese, oferece a cobertura para serviços de saúde já incluídos no seguro-saúde público, ou seja, oferece praticamente os mesmos serviços médicos do sistema público. Nesse modelo, o cidadão não tem a “opção” de não contribuir para o custeio do sistema público, e, assim, acaba por contribuir duplamente, por meio de uma contribuição ao sistema privado que não depende dos tributos que paga para o custeio do sistema público.
Ao regulamentar as ações e serviços de saúde, a Lei nº 8.080, de 1990, reservou o Título II à disciplina dos serviços privados de assistência à saúde, reiterando a liberdade de atuação do setor privado, mas submetendo-os à observância dos princípios éticos e às normas expedidas pelo órgão de direção do SUS quanto às condições para seu funcionamento.
Embora prevendo a atuação complementar do setor privado, quando as disponibilidades do Sistema Único de Saúde forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, a lei não disciplinou a prestação de serviços de assistência à saúde pela iniciativa privada, deixando em aberto, e sem a necessária regulação, essa atividade.
Assim, a Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998, foi editada para disciplinar e regulamentar os planos de saúde privados de assistência à saúde, concretizando um modelo preexistente, híbrido, em que, apesar da universalidade do direito de acesso à saúde pública e gratuita, prestada pelo Sistema Único de Saúde, permite-se, nos limites da lei, que os particulares prestem, de forma opcional, mediante retribuição, serviços de assistência à saúde, constituindo-se os planos de saúde em modalidade de seguro destinado a cobertura desses serviços. É o que, por força de lei, valendo-se de conceito já adotado no mercado segurador privado, se considera assistência “suplementar”, embora, na verdade, ele não tenha como papel a “suplementação” do Sistema Único de Saúde (cobrindo o que ele não oferece). Todavia, esse caráter “suplementar” pode ser observado no fato de que, conforme o plano contratado, a prestadora pode oferecer níveis de qualidade de atendimento superiores (internação em apartamento, por exemplo, ou acesso a hospitais de alta complexidade) que o SUS não assegura a todos os seus beneficiários.
Essa prestação pode se dar por meio de empresas seguradoras privadas, cooperativas médicas ou odontológicas, medicina ou odontologia de grupo, entidades filantrópicas ou entidades de autogestão, que, mediante prestação pecuária do segurado ou dele e de seu empregador (patrocinador), garantem coberturas semelhantes às do SUS, além daqueles serviços tidos como “suplementares”.
Dada a assimetria de capacidade econômica entre prestadores e usuários, contudo, o Estado regula, limita e fiscaliza essas atividades, em defesa do interesse público e da relevância pública dos serviços de saúde, conforme prevê o art. 197 da Constituição.
Para suprir a necessidade de um órgão regulador específico, a Lei nº 9.961, de 28 de janeiro de 2000, criou a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), um instrumento executivo do Ministério da Saúde, como órgão de regulação, normatização, controle e fiscalização das atividades que garantam a assistência suplementar à saúde. A sua finalidade institucional expressa é “promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, regulando as operadoras setoriais, inclusive quanto às suas relações com prestadores e consumidores, contribuindo para o desenvolvimento das ações de saúde no país”. Essa norma, em seu art. 4º, prevê:
“Art. 4º Compete à ANS:
.........................
II - estabelecer as características gerais dos instrumentos contratuais utilizados na atividade das operadoras;
III - elaborar o rol de procedimentos e eventos em saúde, que constituirão referência básica para os fins do disposto na Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998, e suas excepcionalidades;
..........................
V - estabelecer parâmetros e indicadores de qualidade e de cobertura em assistência à saúde para os serviços próprios e de terceiros oferecidos pelas operadoras;
..........................
VII - estabelecer normas relativas à adoção e utilização, pelas operadoras de planos de assistência à saúde, de mecanismos de regulação do uso dos serviços de saúde;
........................
XI - estabelecer critérios, responsabilidades, obrigações e normas de procedimento para garantia dos direitos assegurados nos arts. 30 e 31 da Lei nº 9.656, de 1998;
.........................
XXIV - exercer o controle e a avaliação dos aspectos concernentes à garantia de acesso, manutenção e qualidade dos serviços prestados, direta ou indiretamente, pelas operadoras de planos privados de assistência à saúde;
.........................
XXVIII - avaliar os mecanismos de regulação utilizados pelas operadoras de planos privados de assistência à saúde;
XXIX - fiscalizar o cumprimento das disposições da Lei nº 9.656, de 1998, e de sua regulamentação;
XXX - aplicar as penalidades pelo descumprimento da Lei nº 9.656, de 1998, e de sua regulamentação;
............................”
A criação da ANS, assim, visou suprir uma lacuna institucional e legal, de forma a permitir que a regulação econômica dos planos de saúde pudesse ser implementada por uma entidade dotada de capacidade técnica e autonomia, capaz de estabelecer normas complementares que assegurassem a prestação eficiente dos serviços a um grande número de usuários que, na ausência da regulação, estariam em situação de clara desvantagem diante do poder econômico do mercado segurador e das operadoras de planos de saúde. De outro lado, visava reduzir os impactos que a assimetria informacional, com as suas consequências em termos de risco moral e seleção adversa, pudesse acarretar sobre as relações entre segurados e operadores, onerando excessivamente estes e gerando ineficiências e custos exagerados, a serem cobertos mediante subsídios cruzados ou por meio de mecanismos financeiros de regulação, como a coparticipação.
A extensão da necessidade dessa regulação pode ser vislumbrada a partir de um fato: há, atualmente, segundo a ANS, do total da população brasileira, de quase 210 milhões de habitantes, 47,25 milhões que são beneficiários de planos de saúde. Esses segurados são vinculados a 757 operadoras ativas, em 18.743 planos, segundo dados da ANS de junho de 2018. Trata-se de um conjunto de beneficiários com diferentes perfis de renda e situação, mas 38 milhões acham-se filiados a planos coletivos, ou seja, são empregados e trabalhadores que contam com cobertura assistencial vinculada a uma relação de trabalho, assalariados que não dispõem de recursos em abundância para cobrir custos que poderão chegar a 100% de acréscimo em suas mensalidades a título de coparticipação ou franquia. Outros 9 milhões estão vinculados a contratos individuais e familiares, ou seja, arcam individualmente, e muitas vezes sem patrocínio de seus empregadores, com o custeio dos respectivos planos de saúde
As operadoras de planos de saúde têm conseguido lucros extraordinários: em 2016, mesmo com a redução do número de segurados em cerca de 1,5 milhão5, atingidos pela crise econômica e impossibilitados de manter as mensalidades, a lucratividade subiu 70,6% em relação a 2015, segundo a ANS, e o faturamento experimentou crescimento de 12,8%, atingindo R$ 158,3 bilhões6.
As receitas de contribuições aos planos de saúde atingiram, no primeiro trimestre de 2018, R$ 44,9 bilhões, o que permite estimar, para o ano, que ela atingirá mais de R$ 180 bilhões, ou seja, bem mais do que a dotação total da União para o financiamento do Sistema Único de Saúde em 2018 (R$ 119 bilhões).
O gasto privado em saúde, no Brasil, revela uma distorção: apesar de contar com o maior sistema de saúde pública universal do mundo, a participação da despesa privada com saúde, incluindo seguros-saúde, é comparável à de países nos quais a assistência à saúde é um negócio essencialmente privado, como os EUA, onde inexiste um sistema público universal. Por outro lado, em países como Reino Unido e Canadá, onde há sistemas universais, a participação do gasto público na despesa total é bem superior, como mostra o gráfico a seguir:
Trata-se, portanto, de uma atividade econômica com grande participação no Produto Interno Bruto (cerca de, pelo menos, 2,8%, no Brasil), e que vem crescendo a cada ano, em termos de faturamento.