Política

As revelações dos crimes e da corrupção de Moro e Dallagnol pelo The Intercept Brasil exibem os contornos de uma operação farsesca em que se transgridem os fundamentos básicos da ordem constitucional

A queda da máscara de Moro não derrota a direita, para isso precisamos mobilizar as ruas e recuperar a utopia socialista. Foto: Pedro França/Agência Senado

As revelações do jornalista Glenn Greenwald do The Intercept Brasil acerca da existência de conluio entre o ex-juiz Sérgio Moro da 13º Vara da Justiça Federal de Curitiba e Deltan Dallagnol e outros integrantes do Ministério Público (MP) para condenar Lula chocaram o mundo. Tais fatos não constituem nenhuma novidade para nós brasileiros, especialmente para os defensores da democracia e do Estado de direito, que detectaram, desde os primeiros passos da operação Lava Jato, o sentido evidentemente faccioso, partidário e seletivo das ações em curso, voltadas nitidamente para a criminalização da esquerda, do PT e de Lula em favor do campo liberal-conservador.

A operação Lava Jato, que foi, e é peça central da estratégia política ideológica da direita, sob disfarce de “combate à corrupção”, permitindo assim a substituição da política pela polícia, ao evocar a prisão, sub-repticiamente, como recurso propício ao tratamento da esquerda e das demandas por liberdade e igualdade. Velho mote da retórica da direita que se ancora num discurso despolitizador sobre a ética e o direito, exatamente, para violá-los, na medida em que os aplica, de forma decisional, particularista, visando somente o “inimigo”.

Desde muito cedo, a operação Lava Jato e o juiz Moro mostraram-se manifestadamente parciais, agindo à margem da legalidade, coagindo testemunhas da defesa, fazendo inquirições exaustivas, nitidamente ofensivas aos interrogandos, constrangendo os princípios basilares do Estado de direito, como a presunção de inocência, a ampla defesa, o contraditório, o tratamento isonômico das partes etc., o que motivou denúncia ampla dos advogados de Lula, do PT, de outros partidos, associações, movimentos, da intelectualidade crítica e mesmo de muitos órgãos internacionais de imprensa.

Operação Lava Jato e a hegemonia da direita

Na verdade, a operação Lava Jato surge no bojo do enfrentamento da direita com o governo Dilma e das dificuldades do campo liberal-conservador em coesionar-se, como também de conseguir uma hegemonia clara no interior do Legislativo e do Executivo, dado as sucessivas derrotas sofridas nas eleições presidenciais de 2002 a 2016, decorrentes da impopularidade do projeto americanista dos tucanos e de seu retumbante fracasso no país. Direita brasileira que tem imensas dificuldades em estabelecer uma hegemonia ideológica no país, dada a carência de projeto, de ideias e ideais, preferindo, quase sempre, agir coercitivamente por meio do apelo à cúpula das Forças Armadas, da manipulação midiática recorrente, ou do apelo à toga em sua via de exceção.

O desgaste do governo Dilma foi a senha para os ataques tornarem-se mais cerrados, agravado pela crise econômica internacional, e pela erosão dos institutos representativos de nossa democracia historicamente limitada, estes capturados que foram pelo peso do dinheiro nas eleições, notadamente em razão da interferência degradante das empreiteiras, bancos e dos capitalistas no processo de financiamento eleitoral. Acresça-se, por fim, o fator negativo das influências deletérias dimanadas da sociabilidade informacional pós-moderna dominada pelo regime da “pós-verdade”, suscetíveis a difusão industrial de mentiras, de infâmias e de simplificações cognitivas adversas às mediações complexas – entre os diferentes e plurais interesses – requeridas pela democracia contemporânea.

A ascensão da Lava Jato, sua assimilação à estrutura “novelesca” da “narrativa” midiática, foi caracterizando-se, cada vez mais, como parte de um conjunto de iniciativas – institucionais e não institucionais – coordenadas pela direita para desestabilizar o governo Dilma e impor a pauta privatista do capital financeiro imperialista. Afinal, a direita encontrava-se sem lideranças, pulverizada e sem um projeto comum que reunisse suas frações e interesses. Foi com a Lava Jato que a direita adquiriu musculatura, partiu para a ofensiva, organizou e centralizou suas forças, dispondo-as para um ataque frontal, para um cerco à esquerda.

Para tanto foi importante a função partidária, ideológica da mídia do capital, mas também o braço operacional de união entre forças do dinheiro e indústria da fé em torno de Eduardo Cunha, no intuito de eleger uma forte bancada reacionária em 2016, combinada ao deslocamento do poder do âmbito do Executivo/Legislativo para a esfera judiciária, “normalizada” pelos aparatos comunicacionais. Aqui se sobressaiu, a primeiro momento, a figura de Gilmar Mendes, depois de Barroso, acompanhado servilmente por uma maioria genuflexa do STF, adepta do bordão de Jucá (“Com Supremo, com tudo!”), o que foi funcional como instância legitimatória da ação da direita e de sua lógica antipolítica. O ativismo judiciário crescente, invadindo as competências do Executivo, buscou não somente restringir a discricionariedade política do governo, paralisar políticas públicas em andamento, mas ainda evitar nomeações de ministros, atuando como polo de uma espécie de governo paralelo.

Enfim, como bem flagrou Lênio Streck, “a moral canibalizou o direito”, o subjetivismo interpretativo do juiz expandiu-se desmedidamente, conflagrando o equilíbrio entre os poderes, conspurcando um dos pilares do chamado Estado de direito. Tal iniciativa permitiu o cerco ao governo Dilma, à esquerda petista, e o consequente assalto posterior ao poder pelas forças neoliberais.

Sem o poder Judiciário, sem o fortalecimento da produção discursiva do protagonismo do poder togado empreendido por Gilmar Mendes, braço tucano no STF, a estratégia de desestabilização do governo legítimo de Dilma, desencadeada mais intensamente por Aécio Neves, logo depois de sua derrota em 2014, possivelmente não teria os efeitos esperados. As reuniões constantes entre Gilmar Mendes, tucanos, demistas, donos da mídia e empresários em mansão do Lago Sul em Brasília, retratada abertamente nos jornais à época, foram o ponto de aglutinação que permitiu centralizar a direita “jurídica”, burocrático-estamental, social e política, em torno de uma plataforma comum, ao tempo que sintonizava com as demandas de uma classe média crescentemente insatisfeita com os rumos do governo, prestes, mais uma vez, a embarcar em uma aventura autoritária.

A fabricação de um mito no Judiciário

Entretanto, é a figura emblemática de Sérgio Moro que melhor traduz as aspirações da direita em sua rota de enfrentamento com a esquerda na presente conjuntura, não somente pelo seu relativo desconhecimento até então, o que facilitaria a veiculação da ideia de que se tratava de alguém infenso a “política”, mas em razão do discurso presumidamente legal, moralista que envergava reforçado pelo caráter elitista do recrutamento dos quadros da magistratura, o que o tornava uma figura “confiável” às classes dominantes.

Contudo, para que Moro fosse trazido ao centro vital dos acontecimentos precisava-se forjar um processo que galvanizasse valores, referências, atribuindo-lhe uma condição de “líder” em contraponto a Lula, este ungido pelo vigor de décadas de lutas e auto-organização da classe trabalhadora no país, firmado e confirmado pela sua ação partidária na criação do PT, na participação de diversos pleitos eleitorais, resultando em duas vitórias consagradoras e na projeção mundial que o galgou à condição de figura emblemática internacional do campo popular-democrático.

A “fabricação” de Moro como “mito”, como “super-herói” demandava uma sinergia única, a construção de uma “narrativa” dramática, febricitante, em que os papéis da mídia oligopólica, das igrejas evangélicas e da direita social e política precisariam fundir-se num só corpo. Precisava ainda da “intervenção” ilegal sob as vestes da legalidade para que o processo Lula caísse nas mãos de Moro, afinal Lula, ao ser indiciado, por possuir domicílio em São Paulo deveria ser processado em São Paulo, mas Moro era juiz em Curitiba.

Para deslocar a jurisdição, inventou-se a tese da conexão entre um pretenso apartamento no Guarujá – que Lula teria recebido de uma construtora – e a corrupção da Petrobras, objeto de uma ação específica em curso na vara de Curitiba. Tese que foi refutada, depois, na própria sentença condenatória de Moro, ao reconhecer a inexistência de nexo entre os processos, mesmo porque não havia nenhuma prova da propriedade do tríplex por parte de Lula, nem muito menos de que ele foi beneficiário de um “favor” em troca de vantagem dada à aludida empresa envolta no escândalo.

As revelações dos crimes e da corrupção de Moro e Dallagnol pelo The Intercept Brasil exibem, exaustivamente, os contornos de uma operação farsesca em que se transgridem os fundamentos básicos da ordem constitucional nacional. A “atitude colaborativa” entre juiz e parte acusatória, malferindo as exigências do estatuto da magistratura, em que este deve ser presumidamente isento, neutro, discreto como exige o Código de Processo e a própria Lei Orgânica da Magistratura, infringe não só os deveres funcionais do referido agente público, como, principalmente, as garantias institucionais do cidadão brasileiro a uma prestação jurisdicional adequada. No Estado democrático de direito a triangularidade da relação processual entre juízo, partes acusatória e réu, que, por sua vez, é parte indispensável do funcionamento do princípio de juiz natural, daquilo que se entende como direito a um processamento justo de todo indivíduo, precisa ser imperativamente obedecido. Poder ter um juízo que funcione com moderação, equilíbrio, equidistância, com empatia devida ao réu, são condições essenciais para a prestação da justiça, sem o qual o que teremos é a “vingança”, o ardil do Estado contra o indivíduo “inimigo” a ser perseguido e destruído.

Ademais, um juiz que age com desenvoltura, com agressividade, assumindo iniciativa processual no desencadeamento de uma ação, ao orientar desde o início a condução da propositura dos procedimentos investigativos, passando pela avaliação, “criação” das provas, além de definir os métodos de inquirição das testemunhas, o ritmo das fases da operação, a instauração das delações premiadas, a estratégia comunicacional ostensiva a ser adotada com a imprensa, culminando com a decisão em forma de sentença etc., é pavoroso.

Tal postura do ex-juiz da autoproclamada “República de Curitiba” afronta os postulados básicos do processo acusatório, uma das conquistas civilizatórias do direito penal moderno, de cunho liberal, que se contrapôs aos métodos inquisitórios do Estado absolutista. Nem no período da ditadura militar-empresarial de 1964 tais pressupostos eram assumidos publicamente, pois se sabia da ilegitimidade de uma ação desse tipo. Acresça-se a naturalidade com que tais agentes públicos aludiam às suas preferências políticas, ao blindar tucanos como FHC em detrimento de petistas, ou ao combinar táticas para influenciar no período eleitoral, prejudicando a candidatura de Fernando Haddad. Daí a vedação das entrevistas de Lula, cerceando liberdades fundamentais de expressão e de imprensa em nome de uma “razão” inconfessável.

A enumeração até aqui feita das conversações mantidas entre Moro, Dallagnol, procuradores federais, mais do que um deslize eventual, um excesso ocasional de agentes públicos determinados, denota uma ação orquestrada, claramente política de poderes conformados por membros não eleitos, e que por isso mesmo deveria estar adscritos ao desempenho rigoroso de suas tarefas institucionais, de maneira a evitar a invasão do terreno da política. Mesmo porque num Estado democrático de direito, só agentes eleitos, com mandato político conferido pelo povo, podem agir num espaço de discricionariedade política.

Quando burocratas não eleitos, mais precisamente juízes, agem como membros de partidos, conjugados a estratégias políticas, tais indivíduos o fazem subvertendo a Constituição e o próprio fundamento normativo que lhes autoriza o exercício de suas competências funcionais.

Nada mais lamentável, mais corrupto do que um político oculto sob uma toga, privilegiando certos atores em prejuízo de outros, deixando-se levar por suas predileções partidárias. Mais grave ainda, a operação Lava Jato funcionou como instrumento de destruição ativa da economia nacional, acabando com empresas nacionais, com milhares de empregos e entabulando negociações escabrosas com interesses norte-americanos aviltantes à Petrobras e aos seus interesses estratégicos. The Intercept, inclusive, exibiu-nos a atuação ilegal de agentes norte-americanos junto à Lava Jato, obedecendo determinações do Departamento de Estado dos EUA.

A direita que não vacila e a retomada das lutas populares

A explicitação do “mecanismo” em que se dava o conluio do juiz Moro com MP e mídia para perseguir e condenar Lula é parte indissociável do golpe deflagrado em 2016, e que culminou na “eleição” do neofascista Bolsonaro, na assunção ao ministério da Justiça do ex-juiz inquisitorial e na “revogação” da Constituição de 1988 e de seus comandos axiológicos, normativos. A tentativa vexaminosa de Moro de coibir a liberdade de expressão e de imprensa, ocultando as informações dos crimes cometidas por ele e Dallagnol, entre outros, ao buscar intimidar Glenn Greenwald, revela o grau de audácia e confiança que o ex-juiz possui no esquema golpista instalado nas instituições, e apoiado na mídia e pelas classes dominantes.

A queda da máscara de Moro, de Dallagnol, do facciosismo partidário da Lava Jato, contudo, por si só, não é suficiente para derrotar o golpe e o governo da extrema-direita que dele nasceu, pois precisamos mobilizar as ruas, reencontrar-se com os movimentos sociais, ativar a utopia de nossos valores socialistas. A direita não vacila, nem amacia, defende com garra seus interesses, precisamos ser radicais no sentido da gênese da palavra, indo à raiz das coisas, combatendo o horror fascista e o medo que instila na sociedade. Mais que nunca, precisamos que o PT retome o veio de suas energias, a têmpera de suas lutas populares, a memória de seus afetos e identidades, sob pena de sermos tragados pela orquestração delirante do ódio e da destruição nacional-popular levado a termo pela reação.

Newton de Menezes Albuquerque é professor de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC) e da Universidade de Fortaleza