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Aumento dos casos de feminicídio no país é uma face cruel do aprofundamento da desigualdade e a legitimação institucional do machismo com discursos do governo e redução de investimentos

Os casos de feminicídio subiram 62,7% desde 2015  e 66% das mulheres assassinadas no Brasil são negras. Foto: Sayonara Moreno/Agência Brasil

Duas pesquisas de âmbito nacional revelam o aumento do número de feminicídios após a quebra da legalidade democrática em 2016.

O Atlas da Violência do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) indica que houve um crescimento dos homicídios femininos no Brasil em 2017, com cerca de 13 assassinatos por dia. Ao todo, 4.936 mulheres foram mortas, o maior número registrado desde 2007.

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública confirma este aumento do número de mortes. Foram 1.151 casos em 2017 e 1.206 em 2018, um crescimento de 4% nos números absolutos. Desde que a lei entrou em vigor, em 2015, os casos de feminicídio subiram 62,7%. Ambas as pesquisas também mostram uma correlação entre violência de gênero e racismo.

O Atlas da Violência do Ipea aponta a persistência de uma desigualdade racial entre as mulheres negras e não negras vítimas de homicídio. Enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras teve crescimento de 4,5% entre 2007 e 2017, a taxa de homicídios de mulheres negras cresceu 29,9%. Em números absolutos a diferença é ainda mais relevante, umas vez que entre não negras o crescimento é de 1,7% e entre mulheres negras de 60,5%.

É simplesmente assustador deparar-se com o fato de que 66% de todas as mulheres assassinadas no Brasil em 2017 eram negras.
Do mesmo modo, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública traz análises do perfil raça/cor e também revela maior vulnerabilidade das mulheres negras: elas são 61% das vítimas, contra 38,5% das mulheres brancas.

Outro dado que chama a atenção é a relação entre vulnerabilidade social e violência, quando observado o critério de escolaridade: 70,7% das vítimas cursaram até o ensino fundamental, enquanto 7,3% tem ensino superior.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o ápice da mortalidade por feminicídio no Brasil se dá aos 30 anos.  O feminicídio é observado em todas as faixas etárias, mas significativamente maior entre mulheres em idade reprodutiva: 28,2% das vítimas tinham entre 20 e 29 anos, 29,8% tinham entre 30 e 39 anos e 18,5% tinham entre 40 e 49 anos quando foram mortas.

Os registros permitem identificar qual é a relação do autor do feminicídio com a vítima em 51% dos casos. Neste universo, observa-se que 88,8% das vítimas foram assassinadas pelos próprios companheiros ou ex-companheiros.

Importante assinalar que a relação próxima com o algoz é apontada por diversos estudos de vitimização como característica marcante das violências de gênero.

Outro dado que chama a atenção é o crescimento mais acentuado nos últimos dez anos da taxa de homicídios dentro das residências, com o uso da arma de fogo, o qual cresceu 29,8%.

Para entender o fenômeno da violência contra as mulheres não basta contrastar-se com os dados estatísticos. Precisamos mergulhar um pouco mais a fundo, em aspectos sociais, históricos e culturais, de uma sociedade machista, patriarcal e que tem suas raízes fincadas em quase 400 anos de escravidão.

As marcas do colonialismo escravista e do patrimonialismo coronelista ainda se fazem muito presentes em nosso cotidiano, uma vez que os homens consideram-se proprietários e com poder absoluto sobre os corpos, a fala, a liberdade e o desejo de nós mulheres. Ao levar em conta esse contexto, buscamos compreender como a violência de gênero é algo estruturante em nossa sociedade e nos perguntamos por qual motivo ela persiste e recrudesce.

Por que apesar de ter uma das legislações mais importantes do mundo no combate à violência de gênero, a Lei Maria da Penha, e de ter avançado do ponto de vista do arcabouço legal na tipificação, reconhecimento e qualificação do crime de ódio às mulheres a partir da Lei do Feminicídio, o Brasil segue como um dos países mais violentos do mundo contra as mulheres?

Em primeiro lugar é preciso reconhecer que a violência contra as mulheres nunca deixou de ser um desafio para o Estado e a sociedade brasileira.

Mesmo no período dos governos democráticos e populares de Lula e Dilma, nos quais nós obtivemos grandes avanços nas políticas públicas e no aperfeiçoamento dos marcos legais, a violência contra as mulheres sempre foi um problema difícil e complexo de ser enfrentado.
No início desta década, o Brasil vivenciava uma série de transformações, com destaque, para a geração de trabalho e renda, a criação de mais oportunidades de estudo e a redução das desigualdades a partir da melhoria das condições objetivas de vida dos brasileiros e brasileiras.

Todas essas mudanças impactaram também na vida das mulheres, alterando de forma muito expressiva os arranjos familiares, a exemplo, do aumento do número de mulheres chefes de família.

Havia, por parte do executivo federal, o compromisso de implementar políticas públicas transversais, capitaneadas pela extinta Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), que tinha o objetivo de garantir a igualdade de gênero e fazer o enfrentamento da violência contra a mulher. Mesmo com todas essas transformações, nós não fomos capazes de alterar a face mais cruel de um Brasil ainda muito desigual e violento.

Tal qual apontado nos levantamentos mencionados anteriormente, a vulnerabilidade social das mulheres é um dos indicadores relevantes para a análise da violência de gênero, a qual deve ser entendida como uma grave violação aos direitos humanos das mulheres.

E foi exatamente para garantir o reconhecimento de seus direitos humanos, que as mulheres travaram inúmeras lutas nas últimas décadas com o objetivo de assegurar políticas públicas e superar a invisibilidade de uma violência naturalizada em nossa sociedade, além de resultar em conquistas importantes como a Lei Maria da Penha, principal instrumento legal para coibir a violência e a vitimização de mulheres em nosso país.

Destaca-se, ainda, que a violência de gênero, sendo o feminicídio a sua expressão mais agravada, é resultado de uma violência que é tolerada pela sociedade e pelo Estado brasileiro.

Ao analisar as políticas públicas de enfrentamento à violência contra a mulher, identificamos a omissão do Estado no cumprimento da Lei Maria da Penha e na implementação de mecanismos que previnam e coíbam esta modalidade de violência, bem como constata-se que os poderes públicos investem muito pouco no enfrentamento à violência, não destinam recursos adequados, além de não atuarem de modo articulado nas ações que desenvolvem.

A insuficiência nos serviços e a baixa qualificação dos profissionais que atuam na rede de atendimento às mulheres, acabam sendo fatores decisivos para a revitimização. A desqualificação associada à violência institucional acabam sendo fatores determinantes para a morte de mulheres.

O Brasil estava avançando muito na estruturação institucional e também na implementação de um instrumento jurídico eficaz que contenha as disposições legais e mecanismos para coibir e prevenir a violência contra a mulher.

Governo Bolsonaro: cenário de retrocessos

No entanto, o que vivenciamos agora é um cenário completamente desolador de retrocessos, em que os desafios para que o país possa enfrentar de maneira mais eficaz e efetiva essa chaga social tornaram-se ainda mais complexos e difíceis. O Brasil de 2019 não é somente omisso em relação ao grave quadro de violência contra a mulher, mas um país que é agente perpetrador de violações de gênero.

Não é exagero associar o Brasil que emergiu da ruptura democrática de 2016 - em que uma mulher foi injustamente arrancada do poder por homens, brancos e ricos - com a República de Gilead, um regime autoritário e teocrático descrito de forma magistral em o Conto da Aia, de Margaret Atwood. O livro conta a história de uma distopia em que um golpe de Estado solapa todos os direitos das mulheres, as quais passam a ser brutalmente subjugadas pelos homens, num universo de violências assustadoras e terríveis.

É exatamente isso que temos presenciado no Brasil pós-2016 com o aprofundamento de uma realidade completamente distópica para nós mulheres. Simone de Beauvoir diz que basta um crise política, econômica e religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados e ameaçados.

Com a ruptura democrática, veio a ameaça a todas as nossas conquistas históricas. O que temos sentido na pele e na alma é a ascensão de um discurso machista, sexista e misógino. Foi essa narrativa que venceu as eleições de 2018. Foi essa narrativa que colocou a faixa presidencial no peito do fascismo.

Elegeram presidente da República alguém que já cometeu as mais variadas barbaridades contra as mulheres brasileiras, um ser ignóbil que afirmou com todas as letras que não estuprava a deputada Maria do Rosário, porque ela “era muito feia e não merecia”. Defendeu que mulheres têm que ganhar menos por engravidar. Manifestou posição contrária à licença-maternidade e disse que teve quatro filhos homens e uma mulher, esta última fruto de uma “fraquejada”.

O mesmo Brasil que colocou no posto mais alto da República alguém que proferia e ainda profere discursos de ódio contra nós mulheres, é o 5º país que mais mata mulheres no mundo, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS).

Ao invés de ser repudiada, a masculinidade tóxica foi premiada nas eleições de 2018. Essa naturalização de discursos de ódio contra as mulheres é o que mais preocupa, pois leva a uma aceitação social e cultural da violência de gênero e da sua expressão mais grave: o feminicídio.

Temos, portanto, a emergência de um discurso em si violento contra as mulheres, uma vez que a violência contra a mulher não está associada apenas a violência física, moral, psicológica sofrida por agressões dos companheiros, cônjuges, namorados.

A violência perpassa toda a sociedade e todos os âmbitos da vida das mulheres, desde o acesso desigual ao emprego, os menores salários, o maior tempo de dedicação ao trabalho doméstico, tudo isso agravado quando falamos de mulheres pobres e negras, do machismo institucional reproduzido no âmbito do Estado brasileiro.

Se a Lei Maria da Penha já não vinha sendo integralmente implementada no Brasil, ficou pior agora, em que há uma deliberada política de desmonte do Estado e das estratégias de enfrentamento à violência contra as mulheres, cujo traço cultural mais cruel do machismo, do sexismo e da misoginia está não só arraigado nas instituições, mas ocupa de modo muito obscuro o posto de chefe maior da Nação.
O desprezo pela vida das mulheres tem se dado em vários âmbitos.

Estamos diante de um governo anti-intelectualista, que ignora dados e evidências científicas. O Anuário da Violência traz de forma muito objetiva o aumento do número de mortes de mulheres por armas de fogo, mas, mesmo assim, o governo Bolsonaro insiste em medidas de flexibilização da posse e do porte de armas de fogo no Brasil, as quais visam agradar seu eleitorado mais radical e fiel.

Outro indicador relevante do desprezo pelas mulheres é sem dúvida nenhuma os cortes drásticos no orçamento. Os valores reservados, por exemplo, no orçamento de 2019 para a promoção da autonomia e do enfrentamento da violência contra as mulheres são os menores da série histórica, iniciada em 2012. Os R$ 48,2 milhões reservados para as ações neste ano são menores que os valores do ano passado e, seis vezes menores ao orçamento de 2015, auge da iniciativa, quando o orçamento foi de R$ 290,6 milhões.

Ao reduzir orçamento e ignorar que a violência contra as mulheres é uma grave violação aos direitos humanos, o Brasil rasga compromissos assumidos em Convenções, acordos e tratados internacionais para a eliminação de todas as formas de preconceito, discriminação e opressão de gênero.

Aliás, para dialogar com setores mais atrasados do fundamentalismo religioso e flertar com um Estado teocrático em que o autoritarismo, as armas, a família tradicional e os valores medievais são cultuados, o governo de Jair Bolsonaro tem criado uma verdadeira cruzada contra a palavra gênero e o que eles chamam de “ideologia de gênero”, algo que sequer existe, não é reconhecido pelo mundo ocidental e pela comunidade acadêmica.

Nessa cruzada insana e distópica, que chegou ao absurdo de decretar sigilo sobre o tema em relações internacionais ou em documentos compartilhados com a Organização das Nações Unidas (ONU), o governo Bolsonaro desconsidera de forma muito trágica que o aspecto cultural, a questão do conceito de gênero, é fundamentalmente importante na discussão da violência contra as mulheres, pois é aí que está fundamentada a origem da desigualdade.

O símbolo maior da perpetuação da desigualdade de gênero na estrutura de governo é exatamente a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves. A ministra, que não consegue conviver com a ideia de um Estado laico, reforça um imaginário do senso comum sobre o que é ser homem e mulher em nossa sociedade, ao dizer que meninas vestem “rosa” e meninos vestem “azul”.

Também é absolutamente temerária a censura ao debate sobre educação sexual, diversidade e gênero nas escolas. Aqui está revelado o aspecto mais perigoso da ditadura fundamentalista religiosa e autoritária que o governo Bolsonaro quer implementar no Brasil. Não é à toa que a educação crítica e para a liberdade foi eleita como inimiga número um do medievalismo terraplanista.

Os papéis impostos às mulheres e aos homens são estruturantes das relações de gênero, sedimentados social e culturalmente ao longo da história e reforçados pelo ideário machista e patriarcal, pela dominação masculina e pela ideologia, referenciais para a constituição de relações assimétricas de poder e subjugação que induzem a violência entre os sexos, indicando que a prática desse tipo de violência não é algo natural, senão fruto de um processo simbólico de constituição subjetiva dos seres humanos na história, num processo mais amplo de socialização das pessoas.

Quadro de violência epidêmica

Igualmente importante é o aprofundamento da noção de feminicídio, ou seja, aquele tipo de homicídio cometido contra a mulher apenas pelo fato de ser mulher, uma violência originada puramente na questão de gênero, para um conceito mais amplo, como o defendido por Jane Caputi e Diana Russel (1992), primeiras autoras a conceituar feminicídio. “Representa o extremo de um contínuo de terror antifeminino e inclui uma ampla variedade de abusos verbais e físicos.”

Para Marcela Lagarde, feminicídio deve ser entendido como uma categoria política que denota a inexistência do Estado de Direito, no qual se reproduzem a violência e os assassinatos que muitas vezes ficam impunes. Para a autora, feminicídio é: “o conjunto de delitos de lesa-humanidade que contêm os crimes, os sequestros e as desaparições de meninas, jovens, mulheres em um quadro de colapso institucional. Trata-se de uma “fratura” do Estado de Direito que favorece a impunidade. O feminicídio é um crime de Estado”.

Portanto, diante de um quadro de violência epidêmica contra as mulheres no Brasil, pode-se afirmar que o Estado tem sido conveniente com o extermínio das mulheres, uma vez que ele não tem se empenhado de maneira satisfatória para garantir a proteção e a segurança dessas mulheres, ou mesmo quando as autoridades, os operadores do Direito são negligentes em relação ao cumprimento da lei.

Não consolidaremos plenamente nossa democracia enquanto mais da metade de nossa população estiver submetida à violência, aos maus tratos e ao feminicídio. Enfrentar a violência contra a mulher deve ser parte de um esforço conjunto da sociedade e do Estado, responsável por regulamentar as leis e garantir políticas públicas eficazes que permitam às mulheres o direito de viver sem violência.

Portanto, enfrentar a violência contra a mulher requer o compromisso do Estado com os direitos humanos, com a adoção da perspectiva de gênero nas políticas públicas que propiciem às mulheres condições de oportunidades para exercer seu protagonismo e autonomia, no efetivo cumprimento da legislação, na capacitação dos profissionais, na desconstrução dos preconceitos e estereótipos de gênero, além de implementar políticas públicas que visem a construção de novas formas de sociabilidade de gênero, de desconstrução do machismo, que atue de maneira mais incisiva numa mudança cultural de valores e comportamentos, onde a cidadania, a igualdade de gênero e o reconhecimento do direito das mulheres de ter uma vida livre da violência sejam todos princípios e garantias do Estado Democrático de Direito.

Erika Kokay é deputada federal PT/DF