Internacional

Os chilenos, a partir da atual onda de protestos, provavelmente terão de rever o pacto político que deu sustentação ao país depois da transição e reinventar suas instituições econômicas e sociais

As manifestações em Santiago e em outras regiões foram reprimidas pelas forças policiais e militares, mas estão longe de acabar. Foto: Ivan Alvarado/Reuters

O que está em curso no Chile é o resultado do colapso do modelo político e econômico herdado da ditadura e mantido até hoje pelos governos de centro-esquerda e centro-direita que lhe sucederam a partir de 1990.

Pelas notícias que chegam a cada instante, os protestos parecem que estão longe de terminar. No momento em que escrevo, a Plaza Itália, tradicional local de manifestações políticas, está tomada por milhares de manifestantes. O que começou como um protesto pacífico de estudantes contra a alta dos preços das passagens de metrô transformou-se rapidamente numa explosão social de dimensões inimagináveis, unindo moradores dos bairros populares à população de classe média e média alta da parte alta de Santiago.

Diante da magnitude dos protestos, o governo Piñera tem oscilado entre a negociação e a repressão mais violenta. De um lado, ele anunciou a suspensão do aumento das passagens, sinalizando um recuo político; de outro, decretou o toque de recolher e pôs o Exército nas ruas, alegando que o país está em guerra contra um inimigo invisível. Nem o comandante das tropas militares parece que lhe deu ouvidos, e declarou que não estava em guerra contra ninguém.

Desde a ditadura, as Forças Armadas são repelidas por amplos setores da sociedade chilena, principalmente por parte dos familiares daqueles que foram vítimas dos crimes praticados contra os direitos humanos durante o governo Pinochet. Nesse momento, colocar o Exército na rua é apagar o incêndio com gasolina.

Onze manifestantes morreram até agora e a espiral de violência ainda não deu sinais de diminuir. Desde sexta-feira (18/10), quando se iniciaram os protestos, estão ocorrendo saques nos supermercados e incêndios nas estações de metrô, em ônibus, trens e automóveis. Pelo menos dois manifestantes foram mortos por disparos de armas de fogo em circunstâncias ainda não esclarecidas.

A situação é caótica, segundo informam os principais meios de comunicação. A perplexidade é geral e parece que todos foram pegos de surpresa, a começar pelo governo, os partidos tradicionais e os movimentos sociais.

Os protestos que começaram em Santiago se estenderam a Valparaíso, sede do Parlamento chileno, e à cidade de Concepción, ao sul do país. Na verdade, os protestos contra o modelo chileno vinham acontecendo de tempos em tempos. Há muito tempo os estudantes lutam pelo ensino gratuito; os aposentados denunciam as iniquidades do sistema de capitalização; os trabalhadores reivindicam o direito de organização sindical e o respeito à negociação coletiva. Entra e sai governo, seja de direita ou de esquerda, e as mudanças estruturais nunca são feitas. E com isso o Chile se tornou um dos países mais injustos e desiguais da América do Sul, perdendo apenas para o Brasil.

A Constituição em vigor é a de 1980, imposta em uma das fases mais repressivas do regime militar. Durante vinte anos os partidos da Concertación se revezaram no poder. A DC e o PS foram os grandes beneficiários políticos da transição e da consolidação democrática chilenas. Mas a condição imposta por Pinochet para a volta aos quartéis foi a perpetuação do modelo neoliberal. É contra esse modelo que se insurgem os manifestantes. E dessa vez, ao que tudo indica pela intensidade dos protestos, de forma definitiva. A partir de agora, as inadiáveis mudanças na agenda econômica, orientadas para a superação do neoliberalismo, terão que ser acompanhadas por transformações do pacto político e dos partidos políticos tradicionais.

Antes dos protestos, o aumento do poder de compra dos assalariados, o incremento das aposentadorias e a gratuidade do sistema público de saúde e educação tenderiam, possivelmente, a mitigar a situação. Agora, em face da contundência das manifestações, parece que essas medidas já não são suficientes. Os chilenos, a partir da atual onda de protestos, provavelmente terão de rever o pacto político que deu sustentação ao país depois da transição e reinventar as suas instituições econômicas e sociais. Oxalá façam isso em democracia, neutralizando os setores autoritários, civis e militares, que nunca se conformaram com a redemocratização do país.

Renato Martins é professor de Sociologia e Ciência Política da Unila