Nacional

A universidade com seu “éthos” singular de cultivo da razão, de pluralismo ideológico, imaginava-se protegida das garras do totalitarismo, agora, dá-se conta da sua condição de “inimiga” a ser abatida

"Ato de insubordinação contra superior hierárquico” é a a acusação contra cinco professores da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC)

Vivemos tempos de assalto à democracia no país, o autoritarismo avança, mais do que isso, apresenta-se como a semente totalitária de um projeto protofascista de destruição da vida, dos direitos fundamentais, das garantias institucionais, processuais e das organizações populares, incluindo aí os ataques ao saber, às universidades, à cultura. Para os professores e professoras que comungam com visões de mundo e de sociedades pluralistas, abertas ao salutar dissenso, terreno do desvelamento do escrutínio da razão e do convívio civilizado entre diferentes, assistimos preocupados, ao menos desde 2016, ao assomo do pior reacionarismo, compaginado pelas classes dominantes nativas e seus agentes políticos que intentam empreender um caminho para trás, de recolonização do país, de submissão completa aos desígnios do imperialismo. Afinal a imposição de um novo padrão acumulativo selvagem de capital trazida pela ordem neoliberal exige a mercantilização de todos os espaços – até o da educação – notadamente das universidades, dada a centralidade destas na produção do conhecimento como requisito indispensável para expansão da produtividade do capital, para qualificação da mão de obra, bem como para o incremento de novos usos mercantis do saber. Daí a ação orquestrada da extrema-direita, de seu bloco econômico, político e cultural, para desestruturação dos processos de financiamento público das universidades, combinada com a imposição de dirigentes, reitores, sintonizados com o “terra planismo” bolsonarista para intentar calar a esfera pública dialógica que marca, distingue, os ambientes escolares e universitários no âmbito de um Estado Democrático de Direito. Acrescente-se a isso, o bloqueio da dimensão emancipatória, da democratização do acesso ao ensino superior começada em tempos recentes, dos múltiplos vínculos contraídos com as comunidades populares nas atividades de pesquisa, de extensão, dos férteis elos com os movimentos sociais, com as demandas historicamente relegadas dos pobres, das maiorias marginalizadas, das redes confraternizantes de encontros epistêmicos propiciadas pelo cultivo da ecologia dos saberes que se busca construir no horizonte de uma universidade, de fato, consentânea com os valores, fundamentos da democracia. Subjaz a tais atos arbitrários, de exceção, uma vontade manifesta, explícita, de moldar um Estado de Exceção à sombra da arquitetônica constitucional vigente para produzir um poder decisionista calcado na perseguição aos “inimigos”, suspendo a validade das prerrogativas, direitos e aspirações desses setores, enquanto torna “os de cima” acima de quaisquer controles. Medra o medo entre o silêncio aterrador do funcionamento dos aparatos paralelos de força manietados pelo bolsonarismo e sua captura atroz da institucionalidade, o que reforça a necessidade de iniciativas conjuntas dos democratas para por cobro a tanta insânia e iniqüidade.

Percebemos o arbítrio avançar desde que denunciamos, em petições públicas e artigos, o ataque do projeto da Escola Sem Partido, no seu início. Já aqui, convidados a organizar e participar de debate com o seu coordenador nacional na Faculdade de Direito da UFC, os espaços foram negados, para que não tivéssemos a oportunidade de confrontar, sob os olhares atentos dos estudantes da casa, a inconstitucionalidade e os argumentos vulgares da proposta. Cerceada a Faculdade de Direito, à época já dirigida pelo atual Reitor da UFC, o Sindicato ADUFC, onde representamos, em diferentes instâncias, a unidade acadêmica em questão, deliberou em assembleia uma moção de repúdio à interdição da liberdade de pensamento e de opinião que o dirigente estava praticando ao negar os espaços por nós solicitados aos debates, nesta e em outras oportunidades, como em uma edição da Jornada Universitária pela Reforma Agrária.

Aqui começaria a saga persecutória contra um dos cinco professores do curso de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, que hoje sofremos: Cynara Monteiro Mariano, Beatriz Rego Xavier, Felipe Braga Albuquerque, Gustavo Cesar Machado Cabral e Newton de Menezes Albuquerque.

Os abusos do diretor da Faculdade de Direito e do Reitor da UFC contra nós agudizaram-se, sobretudo, desde que alguns de nós apoiamos e concorremos nas eleições à direção da Faculdade de Direito, em uma primeira vez (2016) contra o atual reitor da UFC, José Candido Lustosa Bittencourt de Albuquerque (a época candidato à reeleição de Diretor), e pela segunda vez (2019) contra o atual diretor, Mauricio Feijó Benevides de Magalhães Filho.

Saliente-se que Candido foi nomeado por Bolsonaro apesar de ter obtido menos de 5% dos votos da comunidade acadêmica. Figurou no segundo lugar na lista tríplice do Consuni apenas porque o segundo mais votado pelo conselho antes dele desistiu de permanecer na lista. Já Mauricio foi numericamente derrotado na consulta realizada para a direção da Faculdade de Direito, logrando êxito apenas em virtude da regra da desproporção do peso dos votos entre professores (70%), estudantes e técnico-administrativos (ambos 15%).

Neste abril de 2020, o Sindicato ADUFC e nós levamos ao conhecimento do Ministério Público Federal no Ceará, após tentativas infrutíferas com a direção para a correção da irregularidade, que um ato normativo interno do diretor da Faculdade de Direito (Portaria nº 10/Fadir/2020) extrapolou a Resolução nº 08/Consuni/UFC, que facultara aos professores da instituição o exercício das atividades remotas durante a pandemia. A portaria do diretor transformou uma adesão voluntária em obrigatoriedade no âmbito daquela unidade de ensino. Uma vez, portanto, toldadas as tentativas de diálogo prévio com a direção da faculdade, que insistiu em não reconhecer a hierarquia normativa da resolução de um órgão deliberativo superior da Universidade sobre o seu ato interno, só nos restou comunicar o fato ao MPF que, se não pacificado, poderia ensejar a prática de responsabilização do diretor da Faculdade de Direito pelo ilícito civil de improbidade administrativa (art. 11 da Lei federal nº 8.429/92). Afinal, ficou instalado na Faculdade de Direito um ambiente de dúvidas sobre a obrigatoriedade ou facultatividade da adesão de todos às atividades remotas, deixando de oferecer segurança jurídica especialmente aos colegas docentes que não aderissem às referidas atividades.

Vale lembrar que todo servidor público tem o dever funcional de “levar as irregularidades de que tiver ciência em razão do cargo ao conhecimento da autoridade superior ou, quando houver suspeita de envolvimento desta, ao conhecimento de outra autoridade competente para apuração”, bem como “representar contra ilegalidade, omissão ou abuso de poder”. Esses deveres estão expressamente estabelecidos nos incisos VI e XII, respectivamente, da Lei federal nº 8.112/90 (Estatuto do Servidor Público Civil da União). Mais do que isso, tal dever confunde-se com o acatamento devido ao princípio republicano e com os fundamentos do Estado de Direito que apregoam a observância da impessoalidade, da legalidade e do devido controle dos atos do poder instituído.

Dando instrução à representação movida por nós e pelo nosso sindicato, o MPF no Ceará, diante da controvérsia verificada, obteve do diretor da Faculdade de Direito o compromisso para pôr fim ao conflito normativo, o que ocorreu com a edição, por sua parte, da Portaria nº 13/Fadir/2020, que tornou facultativa a adesão às atividades remotas durante a pandemia no âmbito da unidade acadêmica, adequando-a à Resolução nº 08/Consuni/UFC. Uma vez instados a nos pronunciar sobre o arquivamento da representação, pela entrega ao MPF da Portaria nº 13/FADIR/2020, não nos opusemos, dado que o intento em representar ao órgão ministerial havia sido atingido de nossa parte.

O diretor não aceitou ter tido seu ato normativo questionado, muito menos de ter sido obrigado a corrigi-lo, por força do procedimento ministerial. Teria enviado mensagens de WhatsApp para vários professores da UFC e da Faculdade de Direito, contra-informando que a iniciativa de “um grupo” de denunciá-lo no MPF tinha sido arquivada sumariamente por inteira improcedência. Correndo as notícias entre nós, e temendo que a segurança jurídica alcançada por meio do procedimento ministerial estivesse ameaçada, publicamos Nota de Esclarecimento no grupo “Direito UFC” do Facebook, narrando sóbria e tecnicamente a verdade dos fatos. Foi isso o que desencadeou as represálias que estão em curso no momento contra nós.

Em nota reproduzida no site da universidade e em jornal de ampla circulação no estado do Ceará, a reitoria reproduz uma série de inverdades. Primeiro, que o grupo de professores mencionado entrou com representação criminal (o que não foi o caso – mas uma representação por improbidade). Segundo, por “informar” que o Ministério Público Federal a arquivou liminarmente a representação, alegando ser infundada – o que não ocorreu, mas o arquivamento por acatamento do diretor da Faculdade de Direito em corrigir seu ato ilegal. Por fim, a nota também aponta que a reitoria não tem qualquer participação nos procedimentos contra os professores, não configurando assunto institucional, mas, em redes sociais, o reitor reafirmou que a representação era improcedente e que iria apurar as responsabilidades.

Já o procedimento administrativo, que não depende de instalação de sindicância prévia, foi instaurado a requerimento da parte ofendida e por recomendação da Comissão de Processo Administrativo Disciplinar (CPPAD). O objeto em questão foi o artigo 132 da Lei nº 8.112 (Regime Jurídico Único), que poderia, em princípio, vir a configurar ilícito administrativo. As diretorias das unidades acadêmicas gozam de autonomia para interpelar diretamente a CPPAD, caso julguem necessário.

Saliente-se ainda que, segundo a Lei federal nº 8.112/90, “nenhum servidor poderá ser responsabilizado civil, penal ou administrativamente por dar ciência à autoridade superior ou, quando houver suspeita de envolvimento desta, a outra autoridade competente para apuração de informação concernente à prática de crimes ou improbidade de que tenha conhecimento, ainda que em decorrência do exercício de cargo, emprego ou função pública” (art. 126-A da Lei nº 8.112/90).

O abuso persecutório praticado ainda vê-se agravado pela violação da prerrogativa de dirigentes e representantes sindicais, pois por força do art. 8.º da Constituição Federal de 1988 estabelece-se a vedação expressa de tais atos, já que estes não podem ser demitidos desde o registro de suas candidaturas até um ano depois do término do mandato. Por força do entendimento dos tribunais brasileiros, reconhece-se equiparação entre a estabilidade sindical do art. 8.º da CF/88 para os empregados da iniciativa privada aos servidores públicos em cargos de representação nas suas entidades sindicais.

A perseguição se materializa pelas seguintes condutas:

  • ajuizamento por parte do Diretor da Faculdade de Direito de 5 (cinco) ações cíveis distintas de danos morais contra nós 5 (tendo já sido extintas por litispendência), em que o dirigente alega ter sofrido danos psicológicos e abalo ao seu bom nome em virtude da nota de Esclarecimento publicada no grupo “Direito UFC” do Facebook;
  • abertura, pelo Reitor da UFC, de processo administrativo disciplinar sem sindicância prévia, contra nós 5, com indicação de conclusão dentro do prazo de 60 (sessenta) dias e aplicação da pena de demissão, por “denunciação caluniosa” do Diretor da Fadir ao MPF, insubordinação grave e descumprimento dos deveres funcionais, entre eles o de guardar sigilo.

Sublinhe-se como elemento importante da conduta pouco condizente com o acatamento as formas do devido processo legal, o fato de, até o presente momento, não fomos, sequer, intimados de qualquer desses processos, só tomando conhecimento dos mesmos por fontes anônimas. No entanto, fontes formais nos dizem (as únicas 03 portarias de abertura de PADs constantes do sítio eletrônico da Universidade neste ano de 2020) que na comissão dos nossos PADs há dois professores da Faculdade de Direito. Um deles, inclusive, teria sido o candidato derrotado a vice-coordenador do Programa de Mestrado e Doutorado da Faculdade de Direito, professor William Paiva Marques Junior, em eleições vencidas neste 2020, por Gustavo Cabral (titular) e Cynara Mariano (vice-coordenadora).

Acrescente-se a isso, a maneira “desimpedida” com que agem os perseguidores, fazendo uso do peso da institucionalidade e de seus meios, para fustigar aqueles que consideram como seus “inimigos”, abrindo nova sindicância tendo por objeto atos corriqueiros de credenciamento de novos professores em seu ingresso na pós-graduação da Faculdade de Direito da UFC.  O motivo, segundo alegam, seria que os coordenadores não poderiam ter decidido pela revisão do ato da comissão designada para avaliar o credenciamento dos novos docentes do Programa, que havia decidido inicialmente por não credenciar qualquer candidato. Contudo, diante do recurso de um deles, professor William Paiva Marques Junior (à época ainda não integrante do colegiado), que demonstrou que o edital não foi claro o suficiente para exigir a aderência da produção científica do candidato às disciplinas e linhas de pesquisa do programa, a comissão, ao dar provimento ao recurso, decidiu por credenciar o citado recorrente. Em reunião seguinte, o colegiado (e não os professores Gustavo e Cynara individualmente) decidiu por aplicar o mesmo entendimento empregado ao recurso do recorrente a dois outros candidatos, como medida de obediência ao princípio da isonomia.

O motivo da abertura da sindicância é novamente a insubordinação grave, pois o fato que a caracterizaria seria, segundo alegam, a informação prestado por Gustavo Cabral, uma vez intimado pelo diretor da Faculdade de Direito para prestar esclarecimentos formais sobre o resultado desse edital de credenciamento de novos professores, de que a direção da unidade não possuiria competência legal para essa intervenção sobre a pós-graduação. Isso porque, diante da Resolução n.º 17 de 2015 do Conselho de Ensino de Pesquisa e Extensão da UFC (outro órgão deliberativo superior da universidade), os programas de pós-graduação são vinculados unicamente à Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação, como ocorre comumente nas demais universidades federais do país.

Ainda assim, designado relator para o caso, o professor Joaquim Matias Coelho concluiu pela sugestão de abertura de sindicância por insubordinação grave, e ainda exarou em seu voto a indisfarçável perversão do procedimento: afirmou que por se dizerem Gustavo Cabral e Cynara Mariano democratas e republicanos, os mesmos não se oporiam a responder a um processo de sindicância. Uma expressão clara e autodeclarada de conduta manifestadamente abusiva, de inegável tipificação como assédio moral, motivada por interesses de vingança, de particularismo, incompatíveis com a liturgia devida à conduta de qualquer agente público. Voto do relator que foi acompanhada por uma pequena maioria que se fez presente à votação e foi vencedora, mesmo com três votos divergentes, todos de integrantes do Colegiado do Programa de Pós-graduação confirmando a autoria da decisão do Colegiado e a plena lisura do resultado final do edital de credenciamento de novos docentes.

A investida do diretor da Faculdade de Direito sobre a coordenação do Programa da Pós-Graduação não tem precedentes no âmbito da Universidade Federal do Ceará, ao ponto de serem instaurados procedimentos de apuração duplificados, tanto junto ao Plenário Virtual do Conselho Departamental da Faculdade de Direito, quanto junto ao Conselho universitário da UFC, contra o coordenador e vice-coordenadora do PPGD respectivamente. Uma verdadeira “blitzkrieg” jurídico de evidente sentido político-ideológico de exceção com implicações severas e preocupantes sobre o próprio funcionamento da pós-graduação numa clara inversão da lógica que deve reger o administrador público em busca da consumação do bem comum.

O que fica claro, nítido é o uso dos procedimentos da administração, notadamente de seus instrumentos excepcionais como atos usuais, transformando a exceção em regra, com o fito de estabelecer um cerco aos dissidentes dos novos “Donos do Poder” no interior da UFC. Carl Schmitt, eminente jurista autocrático, ideólogo transiente do nazismo na Alemanha de Hitler, notabilizou-se pela justificação do Direito como arma política, legitimado no poder de decisão dos detentores do poder para eliminar os eventuais adversários da “nação”, esta vista como totalidade indivisa, coesa, infensa ao pluralismo e à liberdade. Infelizmente, o que percebemos, desde o golpe de 2016 e a assunção do protofascismo no poder do Estado, é a proliferação de um decisionismo de combate ao garantismo constitucional e suas salvaguardas de tutela da cidadania. A universidade com o seu “éthos” singular de cultivo da razão, do livre debate, do pluralismo ideológico imaginava-se protegida das garras do totalitarismo, das investidas da extrema direita, da “pulsão de morte” que tudo traga, agora, dá-se conta da sua condição de “inimiga” a ser abatida, “normalizada”, conformada a ordem de mera reprodução dos saberes disciplinares do sistema e da plutocracia.

Por isso, compreendemos que esse conjunto das três ofensivas movidas contra nossas pessoas, não só se revelam como sucessivos atos de improbidade administrativa, de abuso de autoridade por parte de todos os envolvidos, cujas condutas já estão sendo apuradas em novos procedimentos abertos no MPF Ceará, novamente por nós e o nosso Sindicato ADUFC, com pedido, desta vez, de instalação de um Observatório para Acompanhamento Permanente do Assédio Moral na UFC, mas são também condutas vinculadas a um projeto anticivilizatório de completa dominação dos “insatisfeitos”, dos “diferentes”, dos que ousem divergir do rumo castrense dado ao país e aos demais sócios do condomínio bolsonarista. Precisamos, mais do que nunca, resistir aos arreganhos da reação em seus diferentes lugares, sem o qual nunca retornaremos à democracia e ao Estado de Direito. A luta pela UFC é a luta pela universidade pública, por sua autonomia, pluralismo, democracia e dignidade, ora ultrajadas pelos sicários da “nova ordem”.

Cynara Monteiro Mariano, Newton de Menezes Albuquerque, Beatriz Xavier, Gustavo Cabral e Felipe Albuquerque são professores da Faculdade Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC)