Especial

Gostava de conversar horas sobre os filmes que o marcaram e entendia o cinema como documento de um tempo, mas também como um caminho para se chegar na essência do humano

Alipio em cena de "Um Filme de Cinema" (ficção infantil de 2017), de Thiago B. Mendonça. Reprodução

Há muito o que falar de Alipio. Sua generosidade, inteligência e bom humor, seu compromisso inquebrantável com as lutas populares, seu empenho para que a nova geração conhecesse a história da resistência à ditadura e que essa memória não fosse conspurcada por revisionismos, sua criatividade e habilidade para explorar veredas diversas da arte e da escrita, sua angústia com os caminhos do país após o golpe de 2016 e sua tristeza diante das escolhas da esquerda e do Partido dos Trabalhadores, que ajudou a criar, e do qual, mesmo com discordâncias talvez incontornáveis em relação aos rumos que seguiu, ele jamais se desligou.

Alípio deixou uma infinidade de documentos, escritos, desenhos, esboços e poesias a serem um dia publicados e depoimentos ainda inéditos para filmes sobre sua visão dos processos históricos ocorridos da ditadura até o presente. Homem de muitos caminhos, escolheu a liberdade como horizonte e a construção de uma outra humanidade como destino. Cada palavra escrita, cada imagem criada, carregava esses fundamentos.

As contradições eram parte de seu ser: pensava-se como parte das transformações de 1968, mas fruto da revolução modernista, enfrentando um presente que apresentava novos desafios. A melhor definição sobre Alípio foi dada em um de seus versos: “Com a memória em 64 / os pés em 22 / a cabeça em 68/ e o coração sem tempo / o velho anota seu poema / Datado.” Independente em suas escolhas, levava a sério seus compromissos e era leal aos camaradas. Palavra dada, palavra empenhada, mesmo que com sacrifícios. Críticas severas, risadas obrigatórias. Nada era tão sério para ser levado completamente a sério, e era desconcertante a sua facilidade de rir de suas próprias desventuras. Muitas histórias surgiram de seu comportamento terno e afável com qualquer pessoa que encontrasse pelas ruas e sua singeleza diante da dor dos outros. Firme e delicado, humano e revolucionário, converteu em sinônimos essas palavras que se tornaram muitas vezes antagônicas no trágico século 20.

Alípio era o homem novo buscado pela revolução: de dia jornalista, de tarde poeta, de noite artista plástico, ou quem sabe, cineasta. Tudo era parte de uma mesma potência, em que se confundiam arte e vida, amor e luta, teoria e práxis. A arte de Alípio era a arte de viver, de rir do mundo e de transformá-lo.

Entre os filmes que dirigi, Alípio marcou presença em Dia da Mentira (documentário de 2015 sobre o Cordão da Mentira realizado com Marco Escrivão) e Um Filme de Cinema (ficção infantil de 2017). Em Dia da Mentira desempenhou o seu melhor personagem: no papel de si mesmo, representou, junto a Débora Silva (do Movimento Mães de Maio), a alma do Cordão da Mentira, ato de intervenção estética carnavalizada, que lembra as heranças da ditadura no presente. Em Um Filme de Cinema, longa-metragem de ficção infantil que tinha como protagonistas minhas filhas, ele aparecia no papel de Émile Cohl, o grande inventor dos filmes de animação. Uma cena rápida,onde ele fazia mágicas e desenhava seres imaginários no ar, uma espécie de metáfora da alma jovial do próprio Alípio.

Nossa amizade deixou por fazer outros dois filmes em que atuaria, dois roteiros em parceria por escrever e dois filmes com sua presença ainda não finalizados. Aguardávamos o fim da pandemia para iniciar “O Sol”, ficção que dirigiria com Renata Jardim, minha parceira de cinema e de vida, no qual Alípio seria o protagonista. Na cena final ele cantaria para suas netas do filme (na vida real minhas filhas, consideradas por ele netas de coração) uma velha música de Nelson Cavaquinho, que seria a imagem derradeira do trabalho. A canção ganhou para mim um novo sentido, e gosto de imaginá-lo interpretando-a enquanto caem os créditos: “O sol há de brilhar mais uma vez / A luz há de chegar aos corações / Do mal será queimada a semente/ O amor será eterno novamente”.

Alípio era apaixonado por cinema e gostava de conversar longas horas sobre os filmes que o marcaram. Entendia o cinema como documento de um tempo, mas também como um caminho para se chegar na essência do humano, mergulhado em uma formação onde o existencialismo deixara uma marca profunda. A ética de Alipio era povoada de uma estética revolucionária, como mostra um depoimento que deu a seu amigo Renato Tapajós no filme Nada Será Como Antes, Nada?: “Em 68, nós sonhamos juntos pela primeira vez. Muita gente ficou pelo caminho, muita gente ficou arrebentada. Muita gente morreu, muita gente foi torturada, existe uma série de cicatrizes que não tem inventário possível de ser feito (...) É construir uma ponte para a utopia, em uma sociedade em que, em primeiro lugar, vão ser expropriados todos os meios de produção. Estaremos todos os trabalhadores proprietários desses meios de produção. Mas isso é necessário, mas não é suficiente. É necessário mais uma coisa: é necessário desde já que a gente recoloque a questão da felicidade e do prazer. Uma revolução, uma mudança radical na sociedade, que não fale da felicidade e do prazer, que não fale da possibilidade de todos nós, reconhecendo todas as diferenças, podermos conviver enquanto trabalhadores, isso aí não terá cumprido seu papel.”

Dirigiu apenas um longa-metragem, 1964, um Golpe Contra o Brasil, documentário de fôlego voltado para as novas gerações, que visava esclarecer o que fora o golpe, quem foram seus articuladores e suas consequências. Há neste documentário depoimentos históricos (pessoas que participaram ativamente da resistência, políticos, estudantes, intelectuais e militares), que dão ao conjunto um valor memorialístico da maior importância. E Alípio aborda assuntos geralmente pouco refletidos sobre este momento, como, por exemplo, a questão indígena. Seu filme é um documento sobre esta época, um testemunho de quem viveu no corpo o golpe e suas consequências e um protesto contra revisionismos históricos mal intencionados. Junto com Jango (1984), de Silvio Tendler, e O Dia Que Durou 21 Anos (2012), de Camilo Tavares, forma uma tríade de filmes essenciais para a reflexão sobre o golpe civil-militar de 1964.

Um novo filme e uma história de amor derivaram da produção de “1964”: Alípio envolveu jovens realizadores em início de carreira na feitura do documentário e os recebia em casa. Apresentava a eles filmes e histórias e os incentivou a continuar pelo caminho do audiovisual. Grazie Pacheco e Frederico Moreira se conheceram na casa de Alípio, no longo processo de edição do filme, e depois disso começaram a viver juntos. Com incentivo de Alípio e de sua companheira Rita, Grazie foi estudar cinema em Cuba e voltou com um projeto sobre seu mestre nos braços.

Lembrança de Um Futuro é um documentário que acompanha Alípio no seu cotidiano de militância: debatendo seu filme com jovens realizadores, participando de discussões sobre a arte e as lutas, desempenhando o papel de memória viva da esquerda. Entre essas andanças incansáveis, o filme faz um percurso entre o presente e o passado de Alípio.

Um dos momentos mais bonitos do filme se dá em uma bela homenagem a Jacob Gorender, pensador e militante de uma geração anterior à de Alípio, com quem ele conviveu na prisão e por quem nutria enorme respeito e carinho. Em seu jeito único de contar histórias, Alípio celebra a honestidade intelectual do amigo, seu compromisso com a verdade, e lembra que gostava de brincar com ele na cela dizendo: “Seu Jacob, sabe qual é o problema? Você é muito pequenininho para ser três vezes a raça eleita! Você é judeu, é baiano e foi do comitê central! É demais!É carga demais para um só!” E depois completa: “o mais bonito de fazer homenagem ao Jacob é que não é uma homenagem a uma biografia, é homenagem a uma obra”.

Há muitos filmes em que Alípio colaborou por trás das câmeras e é importante que se faça no futuro uma pesquisa cuidadosa sobre este material. Trabalhos produzidos na militância, junto à TVT ou com amigos queridos, como Renato Tapajós e Olga Futema. E muitos outros nos quais esteve diante da câmera, que vão de filmes de universitários a obras de diretores conhecidos, como Silvio Tendler e Leopoldo Nunes. Alípio, com sua leveza de velho baiano, recebia a todos com o mesmo respeito e o mesmo compromisso com a história. Como bom militante, considerava esta postura uma espécie de obrigação com os que se foram e com as lutas do passado e do presente. E cumpria obstinadamente esta missão, tal qual um mensageiro, trazendo consigo um passado de lutas e uma promessa de futuro.

O papel mais bonito que Alípio exerceu nas telas é de profeta do porvir. Em Nada Será Como Antes, Nada? (1984), filme que considero o mais tocante entre todos os trabalhos de Renato Tapajós, seu companheiro de lutas desde a Ala Vermelha e também das dores da tortura e da privação de liberdade, vemos Alípio em meio a uma festa do Partido dos Trabalhadores no início dos anos 1980, com Cida Moreira cantando ao piano e Jacob Gorender entre os convidados. Alípio declara para Tapajós:"Nós somos uma crítica viva e real hoje ao socialismo existente. E a retomada de toda a raiz libertária do socialismo, que foi esquecida durante muitos anos, por vários movimentos. Esquecida inclusive porque em determinado momento a classe operária tomou o poder de um Estado e o Estado virou uma razão pra classe operária. É preciso que o Estado seja destruído. E que a gente esqueça a razão de Estado. A nossa referência não pode ser a instituição. A nossa referência deve ser a massa em movimento. E esse movimento não são somente os movimentos reivindicativos. São as festas. E é importante fazer festas. Existe aqui um grande discurso (...) que é o discurso do grupo, que é o discurso do conjunto, que é o discurso do coletivo, e que é o discurso da utopia, que é a felicidade. E nós temos que nos comprometer a construir desde agora, desde já, a ponte para nós chegarmos a esta felicidade. Não dá pra deixar esses temas pra depois. Não dá pra tratar só da economia. É preciso tratar do que vai por dentro de cada um de nós. É preciso tratar de toda a ansiedade, de todos os desejos, de toda a perspectiva e de todo sonho que temos dentro da gente e que a classe trabalhadora toda em conjunto tem dentro de si. Isso é fundamental para a gente chegar lá. Do contrário, nós viraremos uns burocratas, uns velhos. Teremos um Estado na mão, um aparelho, uma máquina. Teremos um Estado forte, faremos guerras. E não faremos nada além disso. Daremos mais um sapato para João, mais um vestido para Maria. Mas a felicidade não é só isso, embora isso seja indispensável para a felicidade. Nós queremos o sonho. Como diria Calígula, nós queremos a lua, algo que seja aparentemente impossível, e nós teremos a lua”.

Thiago B. Mendonça é diretor, roteirista e crítico de cinema