Especial

Sempre irônico e brincalhão, mas diplomático mesmo em situações menos formais, Marco Aurélio não deixava de responder com brincadeiras, mesmo que aparentando seriedade

Jorge Mattoso, Alvaro Díaz, Emir Sader, Marco Aurélio e Ominami. Foto: Arquivo Pessoal.

O Marco Aurélio foi um amigo e companheiro para valer, talvez o único com o qual tive a oportunidade de compartilhar partes tão importantes de minha vida e por tantas décadas.

Nada a ver com os “amigos” do Facebook, que ele nem chegava perto. Nem com os muitos e bons amigos ou companheiros que tive e tenho, mas que foram mais temporários, ainda que essa temporariedade tenha sido involuntária e determinada pela vida e/ou pela história.

A diferença de idade que tínhamos não era pequena – de cerca de oito anos – mas parecia bem maior quando éramos mais jovens, pois nos últimos anos estava como que desaparecendo. Em nenhum momento esta diferença de idade impediu ou dificultou que Marco Aurélio e eu estivéssemos juntos por mais de 50 anos.

Com cerca de dezesseis anos, quando eu ainda estudava no Colégio de Aplicação da UFRGS, conheci o MAG com sua companheira Beth Lobo e um grupo de militantes e intelectuais que faziam “escola” em Porto Alegre e se tornavam referência política, intelectual e existencial de muitos jovens que, como eu, queriam se opor à ditadura militar, que há cerca de dois anos se impunha ao país. Me refiro ao Flávio Koutzii, Pilla Vares, Paulo Bicca, Maria Regina Pilla, Raul Pont e tantos outros.

Marco Aurélio já tinha uma “longa” experiência, pois havia sido vereador em Porto Alegre (constava que até então seria o mais jovem vereador brasileiro) e membro da direção nacional da UNE. A partir de 1965/66 passamos a nos conhecer e frequentar, primeiro, reuniões (muitas realizadas em sua casa na rua Barros Cassal, curiosamente em frente ao Armazém Mattoso, que havia sido de meu avô), depois crescentemente como amigos e companheiros, iniciamos no PC, depois na Dissidência e no Partido Operário Comunista.

As vicissitudes da clandestinidade, prisão e exílio nos fez ficar distanciados algum tempo no início dos anos 1970. Foi em 1972, depois que saí da cadeia e fui para o Chile de Allende que retomamos o contato, ele e Beth agora com 30 anos, com o filho Leon e militantes do MIR chileno, eu com cerca de 22 anos, com a experiência da clandestinidade, da tortura e da prisão na Operação Bandeirante (Oban), Presídio Tiradentes em São Paulo, DOPS e Presídio da Ilha das Pedras Brancas em Porto Alegre. Discutindo a experiência de Marco Aurélio naqueles anos no Chile, vendo os desafios que a história colocava àquele país e percebendo como ainda era bem distante a possibilidade de retorno ao Brasil também passei a militar no MIR.

Para mim tudo foi muito rápido no Chile. Da minha chegada em meados de 1972 até o golpe militar de Pinochet em setembro de 1973 passou apenas pouco mais de um ano.

Não foram poucas as ricas experiências daquele tempo com Marco Aurélio, família e amigos brasileiros e chilenos e não consigo me esquecer de uma situação vivida por nós ao final de nossa estadia chilena. Logo após o início do golpe, na manhã do dia 11 de setembro, com um grupo de professores, funcionários e alunos, ficamos no Centro de Estudos Econômicos e Sociais da Faculdade de Economia da Universidade do Chile (Ceso), onde o Marco Aurélio trabalhava, aguardando o que se passaria, se os golpistas cairiam ou iríamos para o combate com eles. Depois do bombardeio de “La Moneda”, pouco a pouco os golpistas se consolidavam e as rádios passavam a só transmitir informações dos militares.  Saímos do Ceso sem “toque de queda” apenas no dia 13 em seu Citroen “deuxchevaux” para irmos para casa e buscar saber o que de fato se passava.

No meio do caminho, ao passarmos em frente do Hospital da Força Aérea, um grupo de militares parou o carro e nos deteve, primeiro nos colocando contra uma parede, fazendo uma espécie de fuzilamento simulado e pouco depois nos enviando para uma delegacia de “Carabineros”. Nesta delegacia o desespero e a incerteza não eram só dos vários presos que lá estavam, mas também dos policiais, que pareciam quase tão inseguros e assustados quanto nós. Após nos colocarem em uma das celas, quase todas ocupadas por estrangeiros, nos disseram que iríamos para o Estádio Nacional, mas depois de algum tempo nos chamaram para dizer que não tinham veículos para nos levar e que... podíamos ir embora. No início não acreditamos, mas depois fomos correndo até minha casa (que era a mais próxima), pulando cercas pois novo “toque de queda” estava começando. Só algum tempo depois nos demos conta do que escapamos, pois muitos dos estrangeiros que foram parar no Estádio Nacional no dia 13 foram torturados e mortos.

Com a consolidação do golpe e a intensa perseguição aos estrangeiros, Marco Aurélio, Beth Lobo e Leon foram para a Embaixada do Panamá e Beth Vargas, então minha companheira, para a da Argentina. Como eu estava com documentos “frios” fiquei ainda algumas semanas em Santiago ajudando alguns companheiros a entrarem em embaixadas, outros a “limparem” suas casas ou trocarem de moradia. Depois de pouco mais de um mês saí do Chile, indo primeiro para a Argentina e em dezembro para a Europa. Inicialmente fiquei em Genebra onde reencontrei a Beth Vargas, ficamos morando por cerca de ano e meio, legalizei minha situação e terminei minha graduação em Economia.

Na Europa, Marco Aurélio e eu continuamos a militar no Movimiento de Isquierda Revolucionaria (MIR) chileno, eu na Suíça e ele participando da coordenação do exterior desde Paris. Além de fortalecer ainda mais nossa amizade, fizemos muitas visitas mútuas e desenvolvemos várias atividades de apoio, solidariedade e de formação militante. Uma delas foi a organização em 1974 de uma escola de formação de quadros em Lisboa, em conjunto com setores que haviam participado da Revolução dos Cravos e da derrubada da ditadura portuguesa em abril daquele ano.

Em 1975 fui para Paris e moramos no mesmo prédio do Marco Aurélio, Beth Lobo e Leon, em Vincennes. Os anos que se seguiram foram muito intensos tanto no relacionamento pessoal e familiar, quanto profissional, para o Marco Aurélio dando aulas na Universidade de Paris XIII e para mim fazendo o mestrado no IEDES (Paris I).

Mas também na militância. Além das atividades “normais” e que implicavam viagens pela Europa, em 1976-77 tivemos uma experiência única, pois ambos, com documentos “frios” e clandestinamente, estivemos no Chile, em momentos distintos – o Marco Aurélio foi primeiro, eu fui uns seis meses depois – com o objetivo de levar recursos financeiros indispensáveis à luta contra a ditadura pinochetista e trazer informações e orientações da direção do MIR.

Também começávamos (junto com o Eder Sader e um pequeno grupo de brasileiros) a pensar e discutir o Brasil, ajudando desde Paris a consolidação de iniciativas importantes como o jornal Em Tempo. Este processo, em meio ao início da lenta redemocratização brasileira se consolida nos anos seguintes. Em dezembro de 1978, apesar de Beth Vargas e eu termos tido um filho (Chico) em agosto, resolvemos voltar ao Brasil mesmo antes da Anistia. Marco Aurélio, Beth e Leon retornam em 1979.

Com o retorno ao Brasil os anos 1980 foram muito ricos em atividades profissionais, intelectuais e crescentemente da militância política. Recém- chegados, MAG, Eder e “os autonomistas” criam a revista Desvios, discutem com movimentos sociais e participam da criação do PT em 1980. Em paralelo, Marco Aurélio também valoriza a atividade profissional e intelectual e se consolida como professor de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, participa ativamente da constituição do Arquivo Edgar Leuenroth (AEL), ambicioso projeto de coleta e preservação de documentos sobre a história social do trabalho e passa depois a coordená-lo.

No entanto, são os anos 1990 que seguramente marcarão intensamente a vida de Marco Aurélio após seu retorno ao Brasil. O fato mais importante e que o marcou para sempre foi a morte de sua esposa, companheira de vida, militância e mãe do Leon, a Beth Souza Lobo, ocorrida em um acidente de automóvel em março de 1991 perto de João Pessoa. Na Paraíba, Beth foi dar palestras no Mestrado de Ciências Sociais da UFPB e em Campina Grande entrevistou mulheres militantes sindi­cais rurais.

Nestes anos a militância torna-se novamente dominante para o Marco Aurélio, primeiro assumindo a Secretaria da Cultura de Campinas em 1989 e depois a coordenação da Secretaria de Relações Internacionais do PT em 1990.

Foram muitas as histórias que passamos juntos nesse processo. Algumas até divertidas. Em uma viagem que fizemos a Londres, em uma reunião na embaixada brasileira com investidores ingleses durante uma das primeiras campanhas eleitorais de Lula, onde um deles – de um banco de investimento – não parava de nos provocar e falar tantas abobrinhas que outro (vinculado ao setor produtivo) se sentiu constrangido e pediu a palavra. Então contou a história de uma senhora que foi a um banco pedir um empréstimo para enterrar o marido recém-falecido e recebia repetidas negativas do gerente. Aos prantos ela observou ao gerente que ele tinha o olho esquerdo de vidro e ele surpreso perguntou como ela sabia. E ela então disse que foi o olho de vidro que demonstrou alguma empatia com ela e com seu problema. Todos riram muito e o representante do banco não falou mais...

Foi a atividade do Marco Aurélio na Secretaria de Relações Internacionais (SRI) do PT que iniciou sua extraordinária contribuição ao desenvolvimento de relações internacionais ativas, altivas, independentes e articuladas com outras forças e países. Esse processo se estendeu por muitos anos, inicialmente no PT e depois nos governos Lula e Dilma, quando assume a assessoria especial da Presidência da República para assuntos internacionais. Na SRI ele favoreceu a constituição de um grupo de jovens que deu força às suas iniciativas inovadoras com Nani Stuart, Marco Piva, Luis Favre e eu, entre outros. Na assessoria da Presidência cercou-se de pessoal qualificado (Bruno Gaspar, Audo Faleiro e Ricardo de Azevedo, entre outros) e em perfeita sintonia com o Ministério de Relações Exteriores contribuiu decididamente para ajudar o país na consolidação da integração latino-americana, na constituição dos Brics –grupo de países de economia emergente formado por Brasil, Rússia, Índia e China – e no fortalecimento das relações Sul-Sul, que priorizava as parcerias com países em desenvolvimento, sem menosprezar, no entanto, a relação com os demais países e assegurando o protagonismo brasileiro no cenário internacional.

Seja pela idade, inexperiência profissional ou fatores existenciais, após o retorno ao Brasil eu decidi dar especial atenção ao desenvolvimento de minha atividade profissional (até então praticamente inexistente) e refazer minha família com Chico, Suely e seus filhos – sem deixar de lado a militância – mas a exercendo apenas em paralelo. Marco Aurélio, que havia feito a opção pela prioridade da militância política e intelectual, sempre me entendeu e deu força a isso. Assim, fiz meu doutorado e pós-doutorado em Economia e me dediquei ao Instituto de Economia da Unicamp.

Mas continuamos a manter – e cada vez mais intensamente – nossa amizade e companheirismo, tendo participado ativamente do grupo da Secretaria de Relações Internacionais e viajado muitas vezes juntos ao exterior (na América Latina, Europa, Ásia ou África), assim como da elaboração dos programas de governo para as campanhas presidenciais de Lula.

Sempre irônico e brincalhão, mas diplomático mesmo em situações menos formais, Marco Aurélio não deixava de responder com brincadeiras, mesmo que aparentando seriedade. Em uma das viagens internacionais, aí pelos anos 1990, numa das primeiras vezes que estivemos com Cuhautémoc Cárdenas e Lula, em um jantar após um seminário nos EUA, dois companheiros mexicano sempre se referiam a ele muito formalmente como “El Señor Ingeniero Cardenas”. Marco Aurélio depois de um tempo, sorriu para mim e se referiu ao Lula como “El Señor Metalúrgico Lula”, o que repetimos eu e ele até que os amigos mexicanos se deram conta, riram e passaram a relaxar em seu formalismo.

Depois, estivemos juntos no governo municipal de São Paulo em 2001 e 2002, ele na Secretaria da Cultura e eu, curiosamente, na de Relações Internacionais.

Com a eleição de Lula fomos ambos para Brasília no início de 2003, ele para coordenar e alavancar as Relações Internacionais do país, eu para dirigir a Caixa Econômica Federal. Apesar das atividades intensas que ambos desenvolvíamos tivemos a oportunidade de juntos viajarmos algumas vezes e não deixamos de nos falar, almoçar ou jantar sempre que possível, falando sobre nossas experiências pessoais e profissionais e trocando ideias sobre o desenrolar daqueles primeiros anos do governo Lula.

Com minha saída da Caixa em março de 2006, tive do Marco Aurélio a maior solidariedade e durante muitos anos ele insistiu que eu fosse para o exterior, tendo várias oportunidades. Não sei se acertadamente ou não, preferi ficar no Brasil e retomar minha atividade na Universidade e com a família.

A sua intensa atividade em Brasília durante o segundo governo de Lula não impediu que nos víssemos algumas vezes por ano, quase todos os finais de anos, muitos deles passados em nossa casa em Campinas, algumas vezes com sua mãe Dona Sonia, quase sempre com o Leon.

Com a redução de sua atividade veio mais vezes a São Paulo e depois de 2016 com o golpe ao governo Dilma voltou para seu apartamento da Praça da República. Passamos a nos ver seguidamente e aproveitando de suas habilidades ou desejos gastronômicos e/ou vinícolas passamos a almoçar ou jantar em ambas as casas curtindo amigos comuns, sempre que possível. A última vez foi em sua casa, quando comemoramos seu aniversário como sempre com boa comida e bons vinhos, mas também com bons amigos como o Paulo, Vera, Suely, o filho Leon e o neto Benjamim.

Marco Aurélio recomeçou a organizar em seu apartamento os livros e um conjunto amplo de materiais dos mais diversos tipos (anotações, cartas e escritos variados) acumulados e guardados em muitas caixas ao longo de muitos anos. Esse processo – que já gerava palestras e deveria resultar em textos e livros que favorecessem o mais amplo conhecimento desta sua atividade única, militante e intelectual nas relações internacionais – foi lamentavelmente interrompido por sua morte repentina.

Sentimos muito e muito saudosos ficamos!

Jorge Mattoso é professor do Instituto de Economia da Unicamp (aposentado), foi secretário de Relações Internacionais na Prefeitura de São Paulo (2001-2002) e presidente da Caixa Econômica Federal (2003-2006)