Política

O desejo de mudança do sistema de governo é menos para evitar presidentes incapazes ou imprudentes, como o atual, e mais para reduzir, preventivamente, os poderes de eventual presidente de esquerda

Sempre que há perspectiva de eleição de um presidente à esquerda do espectro, como têm indicado as pesquisas para a eleição presidencial de 2022, vem à tona a ideia de mudança do sistema de governo, seja para adoção do parlamentarismo, seja para a implementação de um modelo misto, como semipresidencialismo. O argumento formal é sempre em defesa da governabilidade, mas os reais objetivos são claramente de redução ou esvaziamento dos poderes presidenciais, numa espécie de “golpe branco”, como já ocorreu em 1961, com a adoção do parlamentarismo que se seguiu à renúncia de Jânio Quadros, para reduzir os poderes do então vice-presidente João Goulart.

No sistema de governo presidencialista, o presidente da República exerce três funções fundamentais: chefe de governo, chefe de Estado e líder da Nação. Vamos apresentar cada uma dessas funções para na sequência dialogar com a real intenção de mudança do sistema de governo.

Na função de chefe de governo, o presidente dispõe de atribuições e poderes para exercer a chefia e a direção superior da administração federal: sancionar, promulgar e fazer publicar as leis; expedir os decretos e regulamentos; e enviar ao Congresso Nacional as peças orçamentárias e demais proposições legislativas sobre a organização e o funcionamento do governo, bem como sobre políticas públicas, entre outras.

Já na função de chefe de Estado, o presidente dispõe de atribuições e poderes para manter relações com outros estados estrangeiros e acreditar suas representações diplomáticas; declarar guerra, no caso de agressão estrangeira; exercer a função de comandante e chefe das Forças Armadas; permitir que forças estrangeiras transitem pelo território nacional, entre outras.

Na condição de líder da Nação, as funções do presidente da República são mais simbólicas e devem se pautar pela pedagogia do exemplo. Consistem na responsabilidade de obedecer e defender a Constituição Federal, manter a ordem interna e a paz social entre brasileiros; defender a soberania nacional; zelar pela defesa do Estado democrático de direito; cumprir a liturgia do cargo e dar exemplo de decência, ética e compostura. O papel de líder impõe a ele, ainda, o dever de transmitir tranquilidade e segurança à sociedade, ou seja, a sensação de que ele será capaz de tomar decisões tempestivas, sensatas e adequadas à natureza e complexidade dos problemas. E que estará presente e solidário com os cidadãos em situações de crise, pensando no bem comum, acima de tudo.

É verdade que o atual presidente da República não tem cumprido, de modo adequado, nenhuma das três funções. Seu desempenho é reprovável em todas elas, seja por incapacidade e despreparo, no exercício da função de chefe de Governo, seja por sua mentalidade tacanha e visão de mundo retrógada, no exercício da função de chefe de Estado, seja por sua postura omissa, debochada e desrespeitosa na função de líder da Nação, tanto em relação ao povo de um modo geral quanto em relação à liturgia do cargo.

Considerando a conjuntura, poderia parecer que o objetivo da mudança seria evitar, no futuro, o risco de se eleger de novo um presidente sem preparo nem postura para o exercício do cargo, concentrando tantos poderes, que pudesse criar toda ordem de constrangimento ao país, no plano externo, e à população, no plano interno, como tem acontecido atualmente. Pois se isso viesse a ocorrer novamente, bastaria aprovar um voto de censura ao primeiro-ministro ou então se dissolveria o Congresso Nacional, convocando novas eleições para a formação de um novo gabinete. Esse, entretanto, não é o real objetivo. A real intenção é se antecipar a uma possível e provável eleição do ex-presidente Lula, retirando-lhe antecipadamente poderes, já que não poderão impedi-lo, como fizeram na eleição passada, de participar do processo eleitoral. A retomada desse tema agora, com riscos de sua aplicação ao presidente a ser eleito já em 2022, tem cheiro de golpe. Aliás, é bom lembrar que a redução do mandado presidencial de cinco para quatro anos, aprovada em 1993 na revisão constitucional, foi pensada em vista do risco que então se colocava de que Lula ganhasse as eleições em 1994, e foi aplicada de imediato.

A opção da vez é pelo semipresidencialismo, um sistema de governo semelhante ao que é praticado na França e Portugal, países nos quais as funções de chefe de Estado caberiam ao presidente da República, e a de chefe de Governo caberia a um gabinete, liderado por um primeiro-ministro.1 O semipresidencialista, que é um sistema misto com aspectos presidencialista e parlamentarista, possui três características: a) o presidente é eleito por toda a população; b) o presidente possui grandes poderes, como o de dissolver o Parlamento; e c) o primeiro-ministro e seu gabinete possuem poderes executivos, mas a investidura e permanência no cargo dependem da confiança do Parlamento.

Uma eventual mudança no sistema de governo encontrará sérios vícios de inconstitucionalidade e não será fácil nem politicamente nem juridicamente. Politicamente, o Brasil tem uma grande tradição presidencialista. Tentativas semelhantes já ocorreram e foram rejeitadas em plebiscitos. Além disso, a adoção do semipresidencialismo implicaria rever a atual combinação de funções do presidencialismo e colocar em seu lugar um modelo que não concentre tantos poderes em uma única pessoa.

Registre-se, ainda, que a validade de mudança no sistema de governo por via de emenda à Constituição poderia ser tida como ofensiva às cláusulas pétreas, por ferir o princípio da separação dos poderes, que é protegido de emenda pelo art. 60, § 4º, III da Carta Magna. Chegou a ser proposto no Supremo Tribunal Federal o Mandado de Segurança nº 22.972 contra a tramitação de propostas para alterar o sistema de governo, mas foi definitivamente arquivado em junho de 2018, em face da desistência do único de seus autores que ainda estava no exercício do mandato parlamentar naquele ano, o deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP).

Atualmente existem várias PECs em curso no Congresso Nacional propondo o parlamentarismo, mas nenhuma tratando especificamente do semipresidencialismo. A única proposta nesse sentido, de autoria do deputado Samuel Moreira (PSDB-SP) ainda está em fase de coleta de assinaturas de apoio. Nada impede, entretanto, que a ideia seja incorporada em algumas das várias propostas tramitando sobre o parlamentarismo, tanto na Câmara, quanto no Senado. Entre as Propostas de Emenda à Constituição que pretendem adotar o parlamentarismo, podemos mencionar a PEC 32, de 2015, de autoria do senador Fernando Collor, a 217, de 2019, do senador José Serra e, na Câmara, as PECs 20, de 1995, do ex-deputado Eduardo Jorge, 245, de 2016, do deputado Beto Rosado, e 178, de 2019, do deputado Giovanni Cherini. Enquanto não houver nova impugnação por meio de autor legitimado, as Casas poderão debater essas propostas, que, com diferentes conteúdos, adotam como tese a necessidade de atribuir-se a um primeiro-ministro ou ministro-coordenador, papeis hoje atribuídos ao presidente da República.

A posição defendida pelo presidente da Câmara é de que, caso adotado o semipresidencialismo, a sua implementação se daria a partir das eleições de 2026. Contudo, nada garante que venha a ser esse o resultado da deliberação do Congresso, caso venha a se constituir uma maioria suficiente para a sua aprovação em prazo hábil.

A ideia de adoção do semipresidencialismo conta com o apoio de ministros do Supremo Tribunal Federal, como Gilmar Mendes e Roberto Barroso, e do presidente da Câmara, Deputado Arthur Lira (PP-AL), mas é ilusório imaginar que uma mudança no sistema de governo vai resolver a crise de representatividade de nosso sistema político. Enquanto não for resolvido o problema da pulverização partidária, não há sistema de governo que evite crise de governabilidade. Além disso, como já mencionado, o desejo de mudança do sistema de governo é menos para evitar presidentes incapazes ou imprudentes, como o atual, e mais para reduzir, preventivamente, os poderes de eventual presidente de esquerda, como indicam as atuais pesquisas de intenção de voto para 2022.

 

Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, consultor e analista político, mestrando em Políticas Públicas e Governo na FGV-DF, diretor de Documentação licenciado do Diap e sócio-diretor das empresas Queiroz Assessoria em Relações Institucionais e Governamentais e Dialógico Institucional Assessoria e Análise de Políticas Púbicas