Política

Como explicar que a organização do Quilombo dos Palmares no início do século 17 e de todos os quilombos não seja estudada como referência de organização socialista?

Conferência de Povo de Terreiro. Foto: Arquivo Pessoal

Quero começar minha fala nesta jornada trazendo um parágrafo do Pensador Achille Mbembe em Crítica da Razão Negra1 refere: “o pensamento  europeu sempre tentou bordar a identidade não em termos de pertencimento mútuo (copertencimento) a um mesmo mundo, mas antes da relação do mesmo com ele, do surgimento do ser e da sua manifestação em seu ser primeiro ou, ainda, em seu próprio espelho. Em contrapartida, interessa compreender que, como consequência direta dessa lógica de auto ficção, de autocontemplação e até mesmo de enclausuramento, o negro e a raça têm sido sinônimos, no imaginário das sociedades europeias” .

Neste sentido quero aportar para trazer minha contribuição de tal sorte que os convide a adentrar numa outra lógica para debater o significado do binômio do socialismo e das religiões de tradição de matriz africana e sua amálgama em território das Américas do Sul e Central e, mais especificamente, no Brasil cuja dimensão territorial contribuiu para o surgimento de uma pluralidade nas manifestações e expressões na liturgia de matriz africana e afrodiaspórica que se espraiou, enquanto um Povo, o Povo de Terreiro, como define o parágrafo único do artigo primeiro do Decreto 51.587, de 18 de junho de 2014 que cria o Conselho do Povo de Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul, a saber:

Conjunto de mulheres e de homens foram submetidos, compulsoriamente, aoprocesso de desterritorialização, bem como de desenraizamento material e simbólico, civilizatoriamente falando, de várias partes do continente africano, cuja visão de mundo não maquineísta e/ou dicotomizada e por conta do rigor teórico da oralidade, ressignificaram, na dispersão pelas Américas, sua cosmovisão de forma amalgamada devido aos elementos culturais invariantes, onde operaram, portanto, um "ativo interculturalismo" que se (re)territorializou geotopograficamente, sob os fundamentos da xenofilia em que se consubstanciou toda uma dinâmica intercultural e transcultural e que assim o é em todo o Brasil.2

Do lugar por onde me referencio enquanto “autoridade civilizatória da tradição de matrizafricana3, uma das dirigentes da Sociedade Afro brasileira “Ìlé Àiyé Orishá Yemanjá”, na cidade de Pelotas, onde compartilho a circularidade hierárquica, quero afirmar que na tradição de matriz africana e afrodiaspórica percebe-se o mundo e seus fenômenos sociais , políticos, históricos e biodiversos, de forma conectiva, inclusiva, xenofílica e, portanto, o Eu e o Outro só existem se o espelho do Eu é o reflexo do Outro e vice-versa, ou seja, o meu melhor repercute no teu melhor, da mesma forma que o teu pior vai ao encontro do meu pior. Além disso o corpo e o ser vivo não podem ser reduzidos a uma questão de estética normativa de gênero, cor da pele e classe, onde o sagrado toma um status aprisionado nas coisas do bem e o profano assume aparência de coisas do mal, justificando a lógica dicotômica do bem e do mal, do certo e do errado, do pecado e da culpa em contraposição a ética do respeito incondicional humanidade do outro.

Isto posto quero dizer que a gênese da teogonia de matriz africana na diáspora nunca se contrapôs às demais teogonias, independente, de que matriz estejam vinculadas , no entanto o mesmo não se deu no caminho de lá para cá, onde a sociedade ocidental colocou seres humanos como objetos, mercadoria e moeda e aIgreja os classificou como seres sem alma e desprovidos de sentimentos e consciência, pois “a escravidão não era condenada pela igreja desde que moderada justa, racional, rentável e equilibrada entendida como uma cruzada da fé para levar o cristianismo pelo mundo”. Mesmo assim jamais nos furtamos ao diálogo inter-religioso e eu, particularmente, autodeclaro-me ecumênica, porque minha tradição é ecumênica na sua gênese na diáspora onde se ressignificou de forma amalgamada não apenas entre as várias expressões de matriz africanas aqui aportados oriundos do continente africano, mas também entre outras manifestações, sobretudo dos povos originários.

A luta pela liberdade e as estratégias de resistência do povo negro parte da cosmosensopercepção das manifestações religiosas oriundas do continente africano amalgamadas com as outras manifestações do sagrado direito de viver, de existir, por exemplo, dos povos originários. E mesmo quando se trata do sincretismo não são as religiões de tradição de matriz africanas que criam a dicotomia, embora as interpretações históricas tenham dificuldade de perceber que a primeira organização de trabalhadores e trabalhadoras se deu nos quilombos e nos terreiros. Mas que foi historicamente negado e invisibilizada como vício que vem desde a falácia do trabalho como direito para quem nunca foi contemplado sob a consigna da emancipação, sem que isso estivesse vinculado ao sindicalismo de origem eurocentrado. Pois como explicar que a organização do Quilombo dos Palmares no início do século 17 e de todos os quilombos não seja estudada como referência de organização socialista? Como não estudar de forma analógica as características fundantes do socialismo e os princípios civilizatórios da tradição de matriz africana e afrodiaspórica, princípios estes preservados nos terreiros e nas comunidades tradicionais. E para isso só há uma justificativa: o racismo .

Os princípios civilizatórios da tradição de matriz africana nos levam a nos perceber, enquanto pessoa no coletivo e, portanto, os desafios nunca são do indivíduo e os ataques a um sempre serão entendidos como ataque a toda coletividade, para nós, direito não é um conceito que individualiza, não é algo subjetivo. Isso é um conceito milenar que dialoga com a principal característica do socialismo, ou seja, todos trabalham em conjunto e com o mesmo propósito: melhorar a sociedade. Conforme explicita Emilio Gennari (2008), dos fragmentos da história em busca da liberdade que tratam da organização do quilombo, há uma evidência de que o trabalho coletivo desenvolve um economia comunitária de auto subsistência na qual - fora os objetos de uso pessoal - as terras, os instrumentos de trabalho as casas e as oficinas pertencem o mocambo, isto é, com base na propriedade coletiva de todos esses recursos as famílias cultivam a terra no só para o próprio sustento mas também para que o excedente seja utilizado por toda coletividade inclusive na sua defesa. Isso no início do século 17.(grifo meu). Mais uma vez me reporto pra uma característica do socialismo que dialoga com princípio civilizatório preservado nos terreiros e quilombos que é: "os meios de produção são socializados que pertencem a sociedade e são gerenciados pelo Estado. Toda riqueza gerada pelos processos produtivos é igualmente dividida entre todos.”

Como refere Wanda Araújo4. “no terreiro não existe Zé”, pois todos são responsáveis uns pelos outros e o poder circula na medida da necessidade da comunidade e do tempo enquanto disponibilidade e compromisso com a Força Vital da Comunidade, o Àṣe que conecta uns aos outros, independente do lugar que ocupa no instituído da sociedade ocidental; outra característica do socialismo que evidencia essa analogia diz respeito à Inexistência de sociedade dividida em classes: como os meios de produção pertencem à sociedade.

Se sob outra característica do socialismo que é a economia planificada e controlada pelo Estado, ou seja como regulador de todos os segmentos da economia, encontramos uma configuração análoga na filosofia do ethos africano e diaspórico, onde a dinâmica da economia se configura no equilíbrio da conexão entre a lei e a justiça para efetivação e preservação das relações políticas, sociais e econômicas como parte integrante da filosofia do “Nós”, tendo como premissa ontológica a preservação da vida humana e a troca entre as pessoas de bens e dádivas para o bem viver de toda comunidade. Há um necessidade de conhecimento e compreensão do passado para entender porque o país ainda é tratado como uma grande capitania hereditária em que a elite perversa mantém sua formação histórica política econômica e social baseado na exploração, na violência e na barbárie que leva a fome e a morte milhares de brasileiros sobretudo a população negra, cuja expressão da religiosidade quando percebida enquanto folclore é permitida e, muitas vezes, equivocadamente, ou pejorativamente imitada, mas quando se anuncia como visão de mundo, como concepção que permeia a existência, aí o racismo se expressa na sua forma mais violenta e cruel, utilizando-se de mecanismos que tornam invisíveis as motivações criminosas daqueles que se colocam na categoria de intolerantes religiosos. No Brasil, não é intolerância religiosa. É racismo e, sendo assim, é crime.

Assim, eu finalizo essa exposição mas evidente que não é o fim das considerações a respeito da luta do socialismo e muito menos das religiões de matriz africana e afrodiaspórica, além de reforçar o aspecto da conectividade versus o da adversidade, ou seja, é preciso buscar os elos que trazem à tona osonho de todos os oprimidos que é a liberdade e trazer todas as lutas travadas pelo povo negro e povos originários, pois se queremos construir uma sociedade socialista é preciso aprofundar-se na verdadeira história desse país, pois só assim teremos condições de continuar sonhando com justiça e justeza paratoda população brasileira.

Axé.

Texto que embasou participação na mesa “Socialismo e Religiões” , 5/6/21, nas 13 Jornadas de Debate Sobre O Socialismo no Século 21, realizadas pelo Partido dos Trabalhadores e a Fundação Perseu Abramo https://yiutu.be/16rfC1UELE4.

Ìyá Sandrali de Ọ̀ṣun é o nome de identidade religiosa, social e política de Sandrali de Campos Bueno,Ìyálòrìṣà da Comunidade de Terreiro Sociedade Afro brasileira “Ìlé Àiyé Orishá Yemanjá, Pelotas. Psicóloga, Especialista em Criminologia. Servidora pública. Secretária Executiva do Conselho do Povo de Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul. Coordenadora Estadual do GT Mulheres de Axé da Rede Nacional de Religiões Afro-brasileiras e Saúde (Renafro), Núcleo RS. Secretária-Geral do Conselho Municipal do Povo de Terreiro de Pelotas. Integrante do Núcleo Operativo do Fórum Interreligioso e Ecumênico pela Democracia do Rio Grande do Sul (Firers). Coordenadora de Formação do Movimento Negro Unificado do Rio Grande do Sul. Integrante do Akanni - Instituto de Pesquisa e Assessoramento,Porto Alegre. Idealizadora do Coletivo Antirracista O Melhor de Cada Uma.

Faz parte da Coordenação da Organização Política NegrAtividade, vinculado ao Gabinete da Deputada Federal Maria do Rosário. Integra a Executiva Municipal do Partido dos Trabalhadores de Pelotas. Membro do Núcleo de Assessoramento em Políticas Públicas de Igualdade Racial/Fundação PerseuAbramo-NAPP-FPAE

E-mail: [email protected] .

 

Referência bibliográfica

 

CONSELHO DO POVO DE TERREIRO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO

SUL. Boletim Informativo: Da Marcha pela Vida e Liberdade Religiosa -2011 ao Conselho do Povo de Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul - 2014. CPTERGS/Secretaria Executiva/Gabinete doGovernador. Porto Alegre, dezembro 2014.

Disponível no site: http://www.rs.gov.br/conteudo/208964/povo-de-terreiro- entrega-relatorio-de-atividades-ao-governador-tarso-genro