Cultura

A necessária transversalidade cultural, pela qual lutamos, já começou com as mobilizações da classe que vive de cultura, falta chegar novamente no âmbito do aparelho estatal

Artistas vão ao Congresso para aprovação da Lei Paulo Gustavo. Foto: Elaine Menke/Câmara

Após uma conjuntura na qual o campo cultural e as políticas públicas de cultura foram afetados pelos desmontes promovidos pelo governo Bolsonaro, um novo momento de retomada para a área se impôs com a vitória nas eleições do presidente Lula. Imediatamente, em seu primeiro discurso como vencedor, Lula evidenciou a importância que dará à dimensão cultural em seu vindouro governo. Junto disso, na esteira da Lei Aldir Blanc, construída através das mobilizações de classe que vive de cultura em contraponto ao esvaziamento de recursos à área, outras duas leis (Lei Aldir Blanc 2 e Lei Paulo Gustavo) estão para ser executadas nos próximos anos.

Nesse sentido, procura-se abordar no texto a necessária adoção de uma transversalidade cultural, a noção de cultura atrelada aos vários âmbitos da vida, e o modo como esta noção pode contribuir para uma política pública de cultura que objetive somar na luta dos trabalhadores do campo, promovendo uma democratização dos meios de produção culturais, mas também que dispute os valores e significados que serão preponderantes nos próximos anos no país. Para isso, apresenta-se de forma breve a importante relação entre cultura e educação.

Em sua perspectiva ampla, além de designar as artes e práticas que emergem do esforço criativo da atividade humana, podemos nos referir a cultura enquanto um conjunto de significados e valores que conforma um modo de vida particular. Desse modo, a visão aponta para uma interligação entre os diferentes setores e a cultura, visto que os significados e valores impostos na sociedade permeiam e são intrínsecos às diferentes esferas da vida, como a esfera econômica ou a esfera política.

Assim como as demais esferas, a cultura também é marcada pela disputa, tanto que Williams (2011), teorizando sobre a cultura, evidencia a existência de uma cultura dominante que incorpora significados e práticas da classe trabalhadora, tirando suas potências, reinterpretando-os, adequando-os ao mercado ou procurando a extinção destas culturas emergentes em prol da manutenção da ordem. No Brasil, nos últimos anos, vimos essa disputa em torno da cultura se tornar mais agressiva devido à guerra cultural promovida pela extrema-direita no poder, destilando ódio, almejando a aniquilação do “inimigo” e, portanto, adotando valores e signos autoritários e os alastrando na cultura brasileira.

Ao tratarmos a cultura como algo que atravessa a sociedade devemos pensar em políticas públicas de cultura que levem em conta os outros setores, especialmente o da educação. É a partir de políticas educacionais e culturais que a disputa em torno de significados e valores pode ser realizada, buscando o enraizamento de práticas, experiências, que acolham e incentivem a diversidade e a pluralidade.

A educação também é indispensável no campo da produção cultural. A apropriação não se restringe aos significados e práticas, mas se estende à produção, assim como a disputa em torno de quem controla essa produção. Então, devemos refletir sobre uma política pública de cultura com base no objetivo de expandir os canais e facilitar o acesso aos meios de produção cultural, o que é, em parte, feito através do treinamento e formação dos usos desses meios para os produtores, mas também a partir do treinamento para os próprios receptores dessas práticas culturais, que precisam aprender como usar os meios de comunicação para usufruírem e ter acesso a determinadas práticas. Ou seja, o papel do Estado é o de atuar para democratizar os meios de produção da cultura tanto para os produtores quanto para os receptores (CALABRE, 2019).

Ressalta-se que esse debate em torno da transversalidade cultural não é uma novidade no Brasil, apenas sofreu um retrocesso devido aos últimos governos (Temer e Bolsonaro). Durante os governos petistas, de 2003 até o golpe de 2016, tivemos um período de estruturação do campo cultural no país. Nas gestões Lula ocorreu uma mudança no modo de pensar o fazer cultural ao ampliar o conceito de cultura, abrindo a possibilidade de abarcar diferentes modalidades culturais, indo além de uma visão elitista e excludente, ao mesmo tempo que se cedeu espaço para a construção de estratégias debatendo com a sociedade em prol de uma política cultural democrática. É a partir disso que ocorrem uma profusão de projetos e programas inovativos na área como o Programa Cultura Viva e o Programa Brasil Plural, que fomentaram manifestações culturais exercidas por agentes que não possuíam acesso ao mercado cultural ou possuíam de maneira precária, promovendo uma cultura diversificada que levou em consideração o fato de que nem todos os bens culturais são passíveis de acomodação no mercado. Ainda que passível de críticas, o período foi inovador para o campo cultural brasileiro.

Esse processo inovativo de políticas públicas de cultura no país aprofundou a transversalidade cultural. Na gestão Dilma, apesar de descontinuidades e rupturas, há um avanço no sentido de englobar a educação nas políticas culturais. Foi o período no qual ocorreram iniciativas conjuntas do Ministério da Educação com o Ministério da Cultura, por exemplo, o Programa Mais Cultura Nas Escolas, que procurava fomentar ações nas escolas públicas e as experiências culturais nas comunidades locais, e o programa Mais Cultura Nas Universidades, que buscava fomentar a diversidade cultural das comunidades através de seus pilares: Ensino, Pesquisa e Extensão.

Além disso, atravessa todo esse período o trabalho da TV Cultura que desde os fins do século 20 investiu em projetos que uniam o entretenimento audiovisual aliado a projetos educativos. Mantida pela Fundação Padre Anchieta, uma fundação sem fins lucrativos que recebe recursos públicos e privados, a emissora educativa já produziu teleaulas, documentários, programais infantis educativos, entre outros, com o intuito de fomentar a educação e a pluralidade cultural no país.

No entanto, esse processo de inclusão cultural e diversificação cessou após o golpe de 2016 e com os avanços das políticas neoliberais de corte de gastos o setor cultural foi visto como um dos setores alvo. Indo desde ameaças de extinção do ministério durante o governo Temer, até o desmonte efetivo em nível federal durante a gestão Bolsonaro, que extinguiu o Ministério da Cultura já no início de seu mandato.

O governo de extrema-direita trouxe de volta as tradições do autoritarismo, da ausência e da instabilidade para o campo cultural, tradições já reconhecidas em outros períodos por Rubim (2015). Em síntese, a atuação governamental passa pela a adoção de descontinuidades administrativas, esvaziamento de políticas públicas, censura às práticas culturais que não se adequam à configuração cultural que o governo almeja; e ataques aos fazedores de cultura (ROCHA, 2022). É em meio a esses retrocessos para o setor que a pandemia aprofundou a crise da cultura no país, acarretando profundas alterações para o fazer cultural, ampliando a precarização estrutural.

A partir da Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc os trabalhadores do campo e a própria cultura voltaram a respirar no país. Aqui cabe destacar o papel de treze anos de ação ativa dos governos petistas no campo da cultura, que ao permitir a participação efetiva desses agentes nas estratégias anteriores para o setor, contribuiu para o conhecimento operacional do setor e o entendimento dos deveres do Estado para com o setor, dando bases que possibilitaram uma organização inédita em pleno um governo com características neofascistas.

A necessária transversalidade cultural, pela qual lutamos, já começou através das mobilizações da classe que vive de cultura, falta agora chegar novamente no âmbito do aparelho estatal. Um primeiro passo foi dado com a Lei Aldir Blanc, possibilitando recursos, de forma desterritorializada, para os agentes culturais darem continuidade a suas atividades. A vitória do presidente Lula nos permite vislumbrar um futuro favorável justamente pelo fato de que durantes suas gestões anteriores a cultura foi palco de inovações em relação às políticas públicas. E, também, por haver uma perspectiva de continuidade nas políticas culturais através da Lei Paulo Gustavo e a Lei Aldir Blanc 2.

Enfim, a disputa por investimentos para o setor se afirma favorável na próxima conjuntura, resta-nos tratar a cultura e a própria política pública de cultura enfatizando seu caráter de não neutralidade, assumindo que essas políticas vão expressar e produzir significados e práticas que levem em conta uma diversidade das matrizes culturais, contra aqueles valores que visam apenas a destruição e o ódio como política que, mesmo com o fim do atual governo, permaneceram inseridas na sociedade e gerando suas narrativas distorcidas.

Bruno Souza Duarte Lima é pesquisador do Observatório Baixada Cultural (OBaC) e mestrando em Economia Política (PUC-SP)

REFERÊNCIAS

CALABRE, Lia. Escritos sobre políticas culturais. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2019.

ROCHA, Renata. Políticas culturais, disputas políticas e o desenvolvimento do campo cultural no Brasil. Estudos Ibero-Americanos, v. 48, n. 1, p. 415-30, 16 maio 2022.

RUBIM, Antonio Albino Canelas. Políticas culturais no Brasil: desafios contemporâneos. In: CALABRE, Lia (Org.). Políticas culturais: olhares e contextos. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa; São Paulo: Itaú Cultural, 2015.

WILLIAMS, Raymond. Cultura e Materialismo. São Paulo: Ed. Unesp, 2011.