Política

Juarez Guimarães fala sobre a vitória de Lula e das forças progressistas contra o bolsonarismo, o futuro governo e as lições tiradas do período de contrarrevolução neoliberal

Nossa visão de futuro estava bloqueada pela coalizão neoliberal e pelo governo Bolsonaro. Derrubada essa barreira, é preciso analisar novos horizontes. Foto: Sul 21

Após a vitória histórica do campo progressista nas eleições de 2022, levando Luiz Inácio Lula da Silva a ocupar pela terceira vez a Presidência da República, Teoria e Debate entrevista Juarez Guimarães, professor de Ciência Política e coordenador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros, Cerbras, na Universidade Federal de Minas Gerais. Integra o Conselho Editorial da Jacobin.

Da conversa de avaliação desse processo eleitoral e sobre as perspectivas do governo Lula e a ampla coalizão que o apoiou participaram Adriana Novais, Luiza Dulci, Carlos Henrique Árabe e Rose Spina.

Adriana Novais é dirigente estadual do MST de São Paulo, atuando em relações políticas. Psicanalista, atua também na rede de saúde mental do movimento. É doutora em Ciências Sociais.

Luiza Dulci é economista (UFMG), mestre em Sociologia (UFRJ) e doutora em Ciências Sociais, Desenvolvimento e Agricultura (UFRRJ). Integra o coletivo da Secretaria Agrária Nacional do PT e o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo.

Carlos Henrique Árabe é diretor da Fundação Perseu Abramo, responsável pela área de publicações.

Rose Spina é editora de Teoria e Debate.

Rose Spina: Qual sua avaliação do processo eleitoral pelo qual passou o país? Quem foram os ganhadores e os derrotados?

Juarez Guimarães: As eleições presidenciais, para a renovação do Congresso Nacional e dos governos e assembleias estaduais de 2022 devem ser entendidas como um histórico acontecimento político da luta de classes internacional. Isso porque essa disputa reflete e tem impacto sobre os caminhos de reiteração ou superação do impasse de uma crise internacional, dos direitos humanos e da democracia, que resultou de cinco décadas de domínio neoliberal. Essa disputa política se inseriu nesse contexto internacional, de forma direta, com suas mediações nacionais. Foi derrotado o governo mais importante da extrema direita fascista internacional, com todas as suas implicações para a América Latina e para o mundo. O presidente Lula confirma o seu protagonismo como a grande liderança internacional das esquerdas e das forças progressistas.

É um acontecimento histórico porque altera uma certa etapa da luta de classes no Brasil que vinha se dando nos últimos nove anos. Desde 2013, mais claramente desde 2014 e 2015, veio se formando o que chamamos de uma contrarrevolução neoliberal, com seis anos de uma guerra contra os direitos humanos no Brasil, desde o governo Temer, e quatro anos de um governo que afirmava sua característica fascista de modo muito evidente.

Chamamos de um acontecimento político da luta de classes porque, muito mais do que uma disputa eleitoral, estava em jogo os rumos do país. Havia uma consciência de que uma eventual vitória de Bolsonaro levaria a uma possível extinção da democracia no Brasil, a um avanço na construção de um regime fascista no país. A história registrará o papel fundamental do PT e das esquerdas em evitar essa tragédia.

Essa expressão da luta de classes é muito clara e se refletia nas pesquisas eleitorais, já que os trabalhadores mais pauperizados, os negros, as mulheres, os nordestinos, os povos originários, os movimentos LGBTQIA+ votaram maciçamente na candidatura Lula versus representantes do agronegócio e dos financistas, empresários da indústria e do comércio em geral, as classes médias mais altas, poderíamos dizer brancos racistas, homens patriarcais e predadores da natureza votaram maciçamente em Bolsonaro.

Quem venceu esta disputa foram fundamentalmente as forças democráticas populares. A base eleitoral amplamente majoritária, a campanha, o programa, a própria figura histórica de Lula expressam a vitória democrático-popular. É claro que no segundo turno houve um apoio de neoliberais não bolsonaristas, que pela reduzida diferença obtida na vitória, foi muito importante e decisiva. Também tem sido muito importante a posição pública do atual governo dos Estados Unidos contra um golpe no Brasil.

Derrotada, em síntese, foi a coalizão neoliberal, que com o apoio direto do Estado norte-americano à época, organizou essa contrarrevolução no Brasil. Houve claramente uma primeira fase dessa contrarrevolução, coordenada e dirigida pela coalizão liderada pelo PSDB, que levou ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff, sucedida pelo governo Temer com um programa muito semelhante àquele apresentado por Aécio Neves nas eleições de 2014. E uma segunda fase em que, devido ao desgaste dessa coalizão política liderada pelo PSDB e a condenação e prisão de Lula, houve a vitória de Bolsonaro. Um governo com programa neoliberal e uma face autocrática mais visível, que nós procuramos caracterizar desde o início como de orientação fascista, um governo que entende seus adversários como inimigos a serem progressivamente eliminados, constituindo toda uma base social mobilizada em torno de uma política de ódio.

Seria importante entender os resultados de 2022 como uma dupla derrota do bolsonarismo, imediatamente, e do programa neoliberal. Essa dupla derrota deveria ser qualificada no sentido de que o bolsonarismo mostrou uma força política importante, resiliente, conquistando governos importantes, elegendo grandes bancadas no Congresso Nacional. Também no sentido de que houve uma construção institucional do neoliberalismo, avançou-se nesse período em reformas políticas, programas, privatizações e um conjunto de ações que aprofundaram essa dinâmica neoliberal no Estado brasileiro. Essa dupla derrota do bolsonarismo e do programa neoliberal não significa que eles estão finalmente vencidos ou superados, mas apenas que sofreram uma derrota política estratégica.

Adriana Novais: Vimos a consolidação de uma extrema direita no país, que tem o seu núcleo duro “bolsonarista raiz”, que podemos chamar de fascistas. Bolsonaro recebeu 58 milhões de votos no segundo turno. Contudo, há um grupo em torno de 40 milhões de brasileiros que votaram em Bolsonaro, que precisamos disputar para outra visão de mundo. Quais os caminhos para empreendermos esta disputa?

Juarez Guimarães: Há uma pesquisa interessante divulgada pelo Instituto Quaest sobre o perfil dos eleitores do Bolsonaro no segundo turno. Essa pesquisa identificou que dos 49% dos votos obtidos por ele, 18% são de extrema direita – constituiriam o núcleo do bolsonarismo –, 7% votaram nele por conservadorismo religioso, 21% por uma consciência antipetista – esses conhecemos de larga data, mais acentuada desde 2013 – e 3% foi denominado na pesquisa como direita democrática.

Então, podemos pensar o bolsonarismo como uma série de círculos concêntricos nucleados por essa extrema direita, que chamamos de fascista, um fascismo do século 21, como tem sido teorizado por muitos autores. Gosto muito da teorização de Roger Griffin, historiador inglês que estuda este fenômeno há décadas, que entende o fascismo não como um evento histórico do passado, mas como uma tradição da modernidade que nunca se extinguiu de fato, e que se organiza internacionalmente de maneira cada vez mais visível neste século.

Penso que esses 49% obtidos por Bolsonaro revelam um momento de sua máxima força organizada a partir do controle do governo central. Sabemos que não se trata apenas de um fenômeno eleitoral. Expressava um certo posicionamento das Forças Armadas, de polícias militares, de setores que conformam o núcleo coercitivo do Estado brasileiro, com suas dimensões federativas também. Teve apoio muito forte do agronegócio, de grandes bancos e apoios orgânicos de várias federações de indústria, comércio. Além de uma base popular organizada em torno do neopentecostalismo com sua força de raiz, que deveria ser avaliado como um dos grandes fenômenos de mudança cultural das classes trabalhadoras nas últimas décadas. É um evento muito importante porque essa consciência neopentecostal se organiza com valores antissocialistas e patriarcais, contra todos os valores progressistas e tem uma certa concepção individualista de mundo, egoísta, acumuladora, como tem se estudado.

Houve uma coalizão formada em torno de Bolsonaro e o entendimento de sua diversidade é muito importante para nós trabalharmos o isolamento desse núcleo que estamos identificando como politicamente de tendências fascistas. Ainda estamos muito próximos desse grande acontecimento histórico para avaliar o grau de perda de capacidade de centralização do bolsonarismo. O que é o bolsonarismo fora do governo e com a sua base, uma parte dela fisiológica, desorganizada e com um processo de normalização das Forças Armadas e de repactuação e institucionalização dos conflitos políticos? O processo político ainda não fez uma primeira sedimentação após a derrota para se constituir uma avaliação. Mas hoje nós compreendemos muito mais o que é o bolsonarismo do que em 2018, quando a inteligência política brasileira foi pega de surpresa diante da ascensão daquele movimento.

Discordo da ideia de que o bolsonarista típico é apenas uma expressão das elites brasileiras e seus valores anticivilizatórios. Não só porque ele tem bases populares também, mas porque é fundamentalmente um americanismo que atualiza as culturas de dominação brutalmente classistas, racialistas, patriarcais, predatórias, que nunca foram superadas no Brasil. Trata-se de um movimento que tem sua raiz em um movimento internacional organizado, sua referência de identidade política, modo de se organizar, sua linguagem são a desse circuito internacional.

Considero também um erro de analogia dizer que Bolsonaro é igual a Trump. Talvez o fenômeno de Trump nos Estados Unidos seja mais profundo, mais enraizado e mais forte institucionalmente do que o bolsonarismo devido a sua forte presença no Partido Republicano. Portanto, o bolsonarismo é mais frágil politicamente do que o fenômeno do trumpismo. De outro lado, nós temos que ter consciência de que subestimamos, em geral, o bolsonarismo em 2018 e voltamos a subestimar a sua força em 2022.

Portanto, nós estamos diante de um processo político que durará algum tempo até se isolar esse núcleo de tendências fascistas e neutralizá-lo.

Há duas questões fundamentais. A primeira é o processo de institucionalização do conflito, o desafio de trazer o conflito para as instituições. O que houve desde 2013, e que teve um momento decisivo quando o PSDB questionou o resultado das eleições de 2014, é uma fuga da frágil institucionalidade democrática constituída, e uma dinâmica para padrões de conflito não mais possíveis de serem traduzidos e pactuados no interior da Constituição. A radicalização do conflito se manifesta hoje inclusive nessa violência desatada na sociedade brasileira por parte do bolsonarismo.

A segunda questão, também muito importante, é a defesa da paz como um valor das esquerdas em um sentido muito profundo. Pensar uma sociedade tão desigual como a brasileira é pensar que a violência é estrutural e histórica e a paz é um valor para quem quer uma política de emancipação. Há aí muitas questões a serem pensadas.

O STF, num primeiro momento, legitimou o discurso do ódio no Brasil. Bolsonaro dedicou o seu voto na sessão de impeachment de Dilma a torturadores, editoriais dos jornais Folha de S. Paulo e O Globo, simultaneamente, disseram que discordavam de Bolsonaro, mas que ele tinha o direito de se manifestar porque isso era um direito garantido pela liberdade de expressão. Em outra ocasião, a presidente do STF, Carmem Lúcia, decidiu pelo provimento a um recurso contra a reprovação de uma redação inteira contra os direitos humanos de um aluno do Enem, em nome da liberdade de expressão. De novo, não se trata de uma jurisprudência nova no Brasil, mas muito corrente nos Estados Unidos, onde, desde a década de 1970 e 1980, houve uma mudança da jurisprudência na interpretação da liberdade de expressão e nazistas e racistas podem falar publicamente. Nos estudos da ONU, os EUA são um lugar de exceção e de certa legitimação do discurso do ódio. Penso que o discurso do ódio preparou o lugar da violência no Brasil e os vetores da violência no sentido de legitimá-la.

Lembro que no balanço das eleições de 2010, em que Dilma derrotou Serra, escrevemos que o candidato do PSDB no segundo turno tinha levado o conflito a um padrão de virulência que relembrava 1964. E isso foi sendo aprofundado ao longo da campanha para derrubar Dilma, o antipetismo. O verde amarelo dos bolsonaristas já foi usado antes. O horror ao vermelho também já existia. Assim como a acusação de que todo mundo era comunista já existia antes de Bolsonaro. Isso faz parte de uma certa cultura neoliberal, cujos grandes intelectuais sempre interpretaram até a social-democracia, os liberais sociais como traidores do liberalismo, como pró-comunistas, pró-socialistas.

É muito importante firmar uma jurisprudência contra o discurso do ódio. Isso é fundamental para recuperarmos o espaço público da democracia, a cultura da democracia. Hoje há no Brasil uma consciência antirracista histórica muito elevada e há também uma expansão da consciência feminista. Essas são plataformas muito importantes para a superação e o isolamento desse núcleo político fascista que nós identificamos porque a sociedade da apartação construída pelo neoliberalismo reproduz a cultura da violência. Essa cultura de violência política é uma reprodução da desigualdade estrutural aprofundada. Então, é muito importante que o governo ataque as raízes da desigualdade social no Brasil.

Isso faz parte da construção de uma paz entre os brasileiros no processo de institucionalização do conflito, lembrando que a própria Igreja chamou uma das suas principais instituições progressistas de Justiça e Paz. É um pensamento muito antigo, que sem justiça, a paz é ilegítima. Há pensadores, como Rousseau, que dizem inclusive que a paz na injustiça serve mais a quem exerce a dominação do que aos escravizados e, portanto, a paz precisa caminhar com a justiça social. A democracia precisa caminhar junto com a superação do neoliberalismo.

Carlos Henrique: Podemos falar que a amplíssima maioria que elegeu Lula foi de trabalhadores e trabalhadoras pobres, com até dois salários-mínimos de renda familiar. O que esperar em termos de participação além do voto? Penso que seria obrigatório para a democracia se fortalecer que tenha participação efetiva dessa ampla maioria. É possível uma mudança na democracia brasileira com a presença ativa do povo?

Juarez Guimarães: Sim. Eu penso inclusive que esta é uma das diferenças da sociedade brasileira em relação, por exemplo, à norte-americana atual. Tocqueville, em A Democracia na América, falava do associativismo norte-americano no início do século 19 como um diferencial importante da experiência democrática que ele via nos Estados Unidos em relação aos padrões europeus que ele conhecia. Eu penso que nós temos no Brasil uma forte cultura de participação democrática.

Vivemos talvez a experiência mais importante nos últimos séculos do cristianismo de participação popular com as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e as pastorais. Essa experiência resistiu aos papados conservadores e ainda tem uma força importante na tradição política brasileira. Também o núcleo da tradição classista de organização dos trabalhadores brasileiros resistiu a esse período duríssimo de ataque e de desorganização da própria classe trabalhadora. Resistiram a CUT e, principalmente, a liderança do Lula, que historicamente foi construída expressando a unidade das classes trabalhadoras no sentido amplo. Gosto de utilizar a expressão classes trabalhadoras no sentido amplo, para afirmar que aqueles que estão desempregados e no trabalho informal, os negros que sempre fizeram parte dos setores marginalizados no mercado de trabalho, são parte da classe trabalhadora.

Penso que há também uma tradição nacional popular que se formou em torno das culturas do desenvolvimentismo e nacional desenvolvimentismo. Isso é muito importante para trazer uma ideia de soberania nacional e de manutenção da unidade do Brasil, principalmente nesse momento em que a própria identidade do brasileiro esteve sob ameaça de cisão.

Também são muito importantes as tradições do movimento negro no Brasil, que, em geral, não estão catalogadas politicamente. Gosto como aqueles que fundaram o Movimento Negro Unificado o identificam desde as casas onde se praticam as religiões afro, passando pelos milhares de quilombos que existem no Brasil, percorrendo os clubes recreativos das favelas, as escolas de samba, os grupos de capoeira... E hoje há uma intelectualidade negra, atuante e muito visível na cena política brasileira, resultante do processo de democratização das universidades.

É importante também identificar que o Brasil é o principal país onde existem movimentos agrários no mundo de luta pela terra e por direitos no campo. A cultura das artes brasileiras, principalmente na música, que se organiza historicamente em um sentido democrático e popular, tem sido uma fonte inesgotável de inspiração das resistências. Uma pesquisa comparativa internacional revelaria que nós temos uma espécie de cultura participativa que, em última instância, é a responsável pela vitória nessas eleições, que conseguiu resistir e se repor em sua trama organizativa.

O modo como essa cultura de participação se expressou nas experiências dos governos Lula e Dilma revelou uma inédita e importante experiência institucional de democracia participativa. Embora entendamos que essas experiências e inovações não conseguiram democratizar os fundamentos do poder. As amplas políticas sociais de inclusão não geraram uma trama organizativa na base, não organizaram o seu público. Não fomos capazes de transformá-los em atores coletivos na democracia brasileira.

Foi muito importante, nas eleições, as repetidas declarações do Lula sobre a necessidade, como fruto de uma reflexão da experiência passada, de aumentar a extensão e o grau do processo de democratização do governo e de auto-organização popular do Brasil. Além da ideia do Orçamento Participativo Nacional, que foi repetidas vezes formulada, a proposta de se trabalhar mais territorialmente essas experiências participativas, não apenas de retomar as conferências nacionais setoriais e os conselhos. Se nós observarmos bem as áreas que nós menos avançamos em políticas públicas de governo, foram as que menos realizaram conferências nacionais: segurança pública e comunicação realizaram apenas uma conferência. Isto é, as conferências, mesmo com seus limites, segundo estudos de pesquisadores de Ciência Política, legitimaram e criaram agendas públicas importantes.

O governo Lula de 2023 será muito diverso de 2003 porque a crise internacional é muito maior. Hoje a crise é vivenciada no próprio coração do país hegemon, os Estados Unidos, e há uma crise sistêmica. Portanto, a conjuntura é muito adversa do ponto de vista da formação de um governo progressista e o grau de destruição do Estado brasileiro e das políticas públicas que resultou dos governos Temer e Bolsonaro é muito maior do que aquele que resultou dos governos Fernando Henrique. A crise social é muito mais aguda. Há uma direita fascista organizada, diverso de 2002, e uma correlação de forças no Congresso Nacional que não é favorável a um governo democrático-popular. Então, o que pode fazer a diferença senão um novo patamar de auto-organização do povo brasileiro? Penso que deveríamos identificar esse novo patamar histórico de auto-organização do povo brasileiro e de suas redes como um fator decisivo para que a experiência deste governo Lula seja venturosa, isto é, sua capacidade de criar uma dialética virtuosa entre a superação econômica do neoliberalismo e o aprofundamento da democratização do poder. São essas dinâmicas combinadas que podem organizar estrategicamente uma experiência venturosa de governo em um quadro tão difícil.

Luiza Dulci: Você já falou um pouco sobre as dificuldades em vários planos políticos que o governo deve enfrentar e acho que isso contrasta com a grande expectativa social. A votação de Lula veio em grande parte das mulheres, dos negros, enfim, dos vários movimentos. Isso traz expectativas de novas agendas, que talvez nem existiam na época dos governos Lula, mas foram ganhando corpo nos últimos anos. Mesmo no governo Dilma, algumas áreas evidenciavam uma certa exaustão das políticas. Então, é necessário pensar uma nova geração de políticas públicas, talvez mais integradas. Enfim, o que esperar do terceiro governo Lula? É possível certa estabilidade nessa coalizão tão diversa que se formou?

Juarez Guimarães: Podemos começar esse diálogo sobre a estabilidade da coalizão. Há duas questões postas. Uma é a experiência de unidade das esquerdas e centro-esquerda brasileiras, que foi um dos grandes fatos políticos, talvez decisivo, dessas eleições. Conseguimos reconstruir esta unidade que havia sido gravemente questionada a partir da crise de 2005, 2006, no primeiro governo Lula e, depois, com a política de priorização das alianças com o PMDB em 2010, o que levou a que o PSB e o PDT tivessem posturas já nas eleições de 2014 não alinhadas com as alianças democrático-populares. A consciência da necessidade da unidade e o sentimento da unidade, uma condição mais fraterna entre aqueles que lutam contra as opressões, e o método de unidade, isto é, de construir consensos progressivos e ir diminuindo o grau de diferenças, foi fundamental para construir esta unidade. Isso ocorreu na formação das federações, depois na aliança das duas federações principais, que compuseram as forças democráticas e populares. Esta aliança já vinha ocorrendo por parte dos movimentos sociais na luta pelo Fora Bolsonaro, a Frente Brasil Popular e da Frente Povo sem Medo, além de alguma recuperação da unidade das centrais sindicais.

Houve uma certa superação muito importante de uma falsa alternativa entre classismo e identitarismo, como se pudéssemos separar a luta contra o racismo e a luta pelos direitos das mulheres, das lutas classistas. Como se as classes trabalhadoras não fossem, em sua maioria, hoje no Brasil, compostas por mulheres e negros.

Houve uma construção importante de unidade e penso que ela pode e deve ser aprofundada no próximo período entre as esquerdas e centro-esquerdas. Foi a partir delas que nós conseguimos atrair inclusive novas forças democráticas e algumas dissidências neoliberais.

Mas em que medida seremos capazes de manter esta unidade ampla que se manifestou no segundo turno e se mantém agora na formação do governo Lula?

Isso está em aberto ainda. Não sabemos qual a força do bolsonarismo para liderar uma coalizão de oposição ao governo Lula. Não temos ainda elementos para fazer uma avaliação definitiva sobre isso. E quanto à ideia de que o PSDB finalmente foi derrotado enquanto força política, é bom lembrar que o partido ganhou um governo importante, o Rio Grande do Sul, com uma nova liderança e ganhou o governo de Pernambuco. Portanto, pode ser que daí saia alguma rearticulação de uma frente neoliberal não bolsonarista no Brasil.

A consciência de que o neoliberalismo vive uma crise de sua expressão política no Brasil, que é a crise do PSDB, é muito importante para avaliar a nossa capacidade de manter esse duplo processo que está colocado para nós: de um lado, atuar sobre a

base fisiológica do bolsonarismo, dissolvendo-a e pactuando com parte dela e, de outro, fazer alianças com neoliberais não bolsonaristas contra as ameaças ainda existentes à democracia brasileira. Isso é um processo de alianças cruzadas que só pode ganhar expressão mais duradoura se o governo se orientar numa direção democrático-popular, na medida em que ele for afirmando e confirmando a sua popularidade. O principal fator de perda de capacidade política de aglutinação do governo Dilma foi a queda de popularidade abrupta, no início do segundo mandato, o que fragilizou completamente a base institucional do governo. Então, será sempre a relação do governo Lula com suas bases populares, no sentido amplo, o principal fator de aglutinação e estabilização dessa coalizão.

Muito interessante, você ter levantado questão sobre as novas agendas e um certo impasse ou limite de algumas políticas. Assim como a experiência de luta contra o nazifascismo gerou uma Carta dos Direitos Humanos e, portanto, um processo de construção pública internacional de direitos no pós-guerra, as experiências de resistência ao neoliberalismo também criam agendas programáticas que resultam, poderíamos dizer, dessa dialética negativa de resistência. A compreensão da dimensão ecológica desse governo Lula é maior do que a que tínhamos nos outros governos e, portanto, também a nossa atenção às ameaças aos povos originários. Essa é uma agenda de mudanças importante.

Há também uma questão sobre o programa Bolsa Família e seus desdobramentos. Vamos caminhar para uma renda básica de cidadania ou não, entendendo-a como um direito das classes trabalhadoras? Sabemos que o seguro-desemprego é uma conquista da classe trabalhadora frente a situações de grande desemprego, mas a formação social brasileira historicamente gera massivamente marginalização social, aprofundada no regime de financeirização nas últimas décadas. Como lidar com isso? Com políticas de assistência social ou entendendo isso como parte das classes trabalhadoras que devem ser reconstituídas em seus direitos fundamentais?

A aproximação entre a nossa tradição sindical e as nossas políticas assistenciais de governo pode dar um tratamento mais amplo a questão do Bolsa Família, que se faz necessário. Hoje há uma consciência mais elevada de como o racismo é um impasse fundamental para a constituição da democracia brasileira. Essa consciência está gravada na própria formação desse governo e é uma agenda muito importante e decisiva a ser trabalhada.

Luiza Dulci: Você disse que o neoliberalismo foi derrotado, mas a mídia tem dado muito espaço a figuras como ex-ministros do Fernando Henrique e ideias que considerávamos superadas. E essas pessoas fazem parte da transição de governo. Você mencionou os governos do Rio Grande do Sul e de Pernambuco. Nos estados de Minas Gerais e São Paulo os eleitos não são do PSDB, mas são alinhados com Bolsonaro. Tarcísio de Freitas foi seu ministro da Infraestrutura e Zema, do Partido Novo, tem um programa neoliberal muito forte e conseguiu se reeleger com uma grande maioria. Então pergunto se, de fato, o neoliberalismo foi derrotado. E como podemos dentro dessa frente impor nossa agenda social? Talvez essa ideia de uma carta afirmando o nosso compromisso ecológico, antirracista, feminista, que demarque de onde nós viemos e para quem nos governamos seja um caminho.

Juarez Guimarães: A preocupação é muito procedente. O neoliberalismo foi derrotado nas eleições de 2022, porque houve uma vitória democrático-popular, como nós afirmamos e a participação de lideranças neoliberais, não bolsonaristas, no segundo turno agregou votos, talvez decisivos, para uma vitória muito apertada. Mas há, depois da eleição, uma cobrança que o governo eleito assuma fundamentos neoliberais, o que não é compatível com a contribuição que deram à vitória de Lula.

Penso que nós ainda não constituímos na esquerda internacional e no Brasil os modos de superação do neoliberalismo. Identificamos que o neoliberalismo é uma força internacional organizada principalmente a partir do Estado norte-americano, é uma dimensão de época, de dominância no centro da tradição liberal e se encontra numa crise. Chamamos atenção, inclusive em alguns debates realizados nos últimos dois anos, que foi frente a uma crise do hegemon, na época da Inglaterra, que Getúlio Vargas a partir de 1930, constituiu nas brechas da crise internacional alguns fundamentos do Estado Nacional, embora de modo autocrático, não democrático. Talvez esta crise de hegemonia norte-americana, uma crise do neoliberalismo, de sua legitimidade, crie uma oportunidade histórica para nós avançarmos na América Latina para experiências de superação mais profunda, mais estruturais do neoliberalismo, que não conseguimos fazer nos governos Lula e Dilma.

Fizemos mudanças muito importantes e historicamente inéditas, mas não conseguimos fazer mudanças estruturais no Estado brasileiro. Além de ser uma força internacional, o neoliberalismo está presente na própria Constituição brasileira. Desde o período de Fernando Henrique, vieram se operando mudanças constitucionais. Nós defendemos a Constituição de 1988, que é muito importante na sua expressão democrática, na sua expressão de direitos, mas hoje ela está marcada por grandes reformas neoliberais. Há uma institucionalidade principalmente macroeconômica e de como se organizam as estruturas de coerção do Estado brasileiro que são puramente neoliberais. Esse padrão de organizar a política de segurança, separada da política de direitos sociais, é um padrão norte-americano neoliberal de segurança pública.

A política neoliberal é uma força internacional que está em algumas dimensões da Constituição, na própria estrutura do Estado brasileiro, é expressiva das forças econômicas dominantes, do agro, dos grandes bancos e da mídia, que expressam esses princípios. Então, essas forças vão disputar o governo Lula, em suas orientações fundamentais, vão procurar limitar o grau de ruptura desse governo com o neoliberalismo. Podemos afirmar que os compromissos assumidos por Lula em campanha levam a uma dinâmica de choque com essas ideias neoliberais fundamentais e isso nos favorece. Então, isso mais um trabalho de maior diálogo público e organização dos movimentos sociais, levando suas pautas ao governo Lula, pode nos permitir um ciclo de acumulação de forças que pode se expressar nas eleições de 2024 e 2026, criando uma outra configuração no Congresso Nacional. Isso pode nos permitir padrões históricos mais fortes de ruptura democrática com o neoliberalismo.

Acho errada a caracterização que este é um governo de união nacional, que sua orientação resulta do consenso entre todas as forças políticas que participam dele. Ele deve ter uma hegemonia, uma direção como fruto do processo político que o formou e dos compromissos que assumiu. Neste sentido, ele dever ser um governo democrático-popular, que vai fazer algumas pactuações para obter ganhos fundamentais de governabilidade. Mas não é um governo de orientação incerta, que está sendo disputado em seu centro pelo neoliberalismo.

É um governo de reconstrução da economia do público no Brasil e que vai procurar criar as condições para ir superando o neoliberalismo, inclusive em suas projeções internacionais da unidade latino-americana. Então, eu penso que a derrota do neoliberalismo deveria ser assim qualificada: ele é uma força internacional, que se expressa na institucionalidade do Estado brasileiro, domina os meios de comunicação de massa e as forças que conduzem a economia do país. Mas é importante identificar esta crise política histórica do neoliberalismo que talvez permita o processo virtuoso de sua superação democrática.

Adriana Novais: Existem algumas leituras que entendem a ascensão de Bolsonaro como um projeto das Forças Armadas. Especialmente porque o Brasil, diferente de outros países latino-americanos, como por exemplo a Argentina, não responsabilizou os militares pelos crimes cometidos durante a ditadura civil-militar (1964-1985), apesar da Comissão Nacional da Verdade. Há muitos militares ocupando cargos estratégicos no governo. Hoje temos manifestações de bolsonaristas na frente dos quartéis pedindo intervenção militar. Como lidar com essa questão num contexto que tem de se manter uma coalizão, cujas fragilidades conhecemos?

Juarez Guimarães: Penso que se trata de um problema histórico que vem desde a fundação da República. Como observava o nosso republicano democrata Manuel Bomfim, o movimento republicano foi interrompido pela quartelada militar, resultando o florianismo no primeiro momento, e historicamente um processo nunca estabilizado de relação da construção republicana democrática no Brasil com a ordem militar, que se revelou nas suas descontinuidades históricas. A justiça de transição nos coloca cinco desafios que é importante lembrar: o desafio da memória, o da verdade, o da reparação daqueles que foram atingidos, o da punição dos crimes contra os direitos humanos, considerados internacionalmente e que não devem ser anistiados devendo passar pelo devido processo legal, e o quinto que é a reorganização democrática das estruturas de segurança pública.

Penso que podemos avançar nesse quinto ponto. As polícias militares ainda são institucionalmente militarizadas. Seria fundamental, além de continuar o processo de recuperação da memória e da educação cívica em torno dos valores democráticos, conseguirmos resolver esse nó da política pública.

O que mais nos causa dor quando avaliamos as experiências dos governos Lula e Dilma é que durante esses governos aumentou o número de pessoas mortas nas periferias brasileiras por polícias militares. Inclusive na Bahia, onde o PT é governo.

Eu estava relendo recentemente sobre a origem do Movimento Negro Unificado. Ele resultou de uma mobilização em resposta ao assassinato e à violência policial em São Paulo. Depois de alguns casos no Rio, que houve também muito protesto e a própria formação do moderno Movimento Negro Unificado. Isso no final dos anos setenta. O livro O Genocídio do Negro Brasileiro, do Abdias Nascimento, é de 1976. Nós não conseguimos responder a esse desafio de desmilitarizar as polícias e de enquadrá-las no estatuto da democracia e dos direitos humanos, sabendo que as maiores vítimas são sempre pessoas negras. O caminho é aprofundar o controle democrático sobre as forças de coerção do Estado brasileiro. E aí o dever de casa ainda não foi feito. Isto é, as políticas de segurança pública ainda não são de fato organizadas pela democracia brasileira.

Luiza Dulci: Em 2003, o exercício do governo Lula absorveu as principais lideranças do PT. Embora este governo tenha de acomodar diversas outras forças, que papel deve ter o PT no terceiro governo Lula?

Juarez Guimarães: Penso que a dificuldade histórica da nossa relação entre partido, PT, com os governos, no fundo, é uma dificuldade programática. Enquanto o PT não tiver um programa de um outro Estado no Brasil, alternativo a este que resultou da transição conservadora, nós não conseguiremos compreender que numa visão integral de Estado é preciso constituir as classes trabalhadoras no sentido amplo como uma base social ativa e auto-organizada, com capacidade dirigente. Continuamos a separar governo e sociedade civil, como fazem os liberais. É o liberalismo que separa o Estado de sociedade civil. Não é preciso reclamar apenas a autonomia do PT ou das organizações dos movimentos sociais em relação ao Estado. É pensar numa nova dinâmica de formação das bases sociais de um novo Estado programatizado que nos permita sair desse labirinto.

É evidente que o governo Lula na sua complexidade reclamará um investimento político de quadros muito grande. De outro lado, há toda uma nova geração de lideranças se formando nos movimentos sociais e no próprio partido. Então será fundamental nesse momento nós reconstruirmos e avançarmos na democracia histórica no interior do PT, para que essa passagem entre gerações de militantes possa ocorrer sem traumas e para que haja uma relação virtuosa de movimentos sociais com o governo, mediada por essa frente plural de partidos e correntes de esquerda. É hora de abrir o partido à formação de uma nova geração de quadros dirigentes do PT.

Nesse período de resistência, colocamos o nosso corpo individual e coletivo, cada um de nós e os corpos coletivos dos movimentos sociais, dos partidos e movimentos de esquerda para vencer este dramático desafio histórico. Vivemos um período histórico da luta de classes. Agora, com essa vitória, inauguramos um novo momento, que traz cinco mudanças nesse corpo individual e coletivo que resistimos e que eu sintetizaria anatomicamente.

Primeiro, uma mudança do coração. Passamos nove anos com o coração carregado de angústia, de dor pelo sofrimento do povo brasileiro. Agora, trata-se de dispor esse coração doído, talvez com alguma cicatriz, para passar por um período venturoso, de reconquista de direitos, de novas experiências, de paixões alegres. É uma mudança muito importante, subjetiva em nós.

Segundo, é a mudança dos nossos pulmões. Isto é, pararmos de respirar afoitos, agônicos, a cada dia frente a uma nova ameaça e passamos a ter uma respiração talvez um pouco mais ampla, mais regular. Novos ares.

A terceira é uma mudança na cabeça. É preciso classicizar o nosso pensamento político de novo. Estivemos muito circunstanciados pelos desafios imediatos, mas é necessário pensar largo na temporalidade e na totalidade da experiência. Então, constituir um programa e uma estratégia para este novo ciclo.

A quarta é uma mudança nos próprios olhos. A nossa visão de futuro estava bloqueada pela coalizão neoliberal e pelo governo Bolsonaro. Derrubada essa barreira, é preciso perscrutar novos horizontes, alongar a vista, eu diria.

E, por fim, uma mudança nas próprias mãos desse corpo coletivo individual. Talvez a palavra de ordem mais bonita desse período de resistência tenha sido “ninguém solta a mão de ninguém”. E talvez a palavra de ordem desse novo período seja que nós não soltemos nunca mais as mãos da esperança, como fizemos naquele período difícil, no segundo governo Dilma, em que houve uma cisão entre a nossa inteligência de governo e as esperanças de mudança do povo brasileiro. Foi nessa cisão que se organizou o que chamamos uma contrarrevolução neoliberal. Então, não largar mais a mão da esperança do povo brasileiro é a grande lição.

Luiza Dulci: Acho que precisamos mudar a nossa fala em algumas ocasiões também.

Juarez Guimarães: Concordo inteiramente. Nesse período de resistência, até por resposta às culturas do ódio, começamos a falar numa linguagem que não era a nossa.  Por exemplo, “detonamos” Bolsonaro. Essa não é uma linguagem democrática. A nossa mídia de esquerda está muito marcada por isso.

Penso também que é preciso constituir um dicionário crítico do neoliberalismo. Até escrevi um ensaio sobre isso. Por exemplo, nós falamos com orgulho: “somos os grandes praticantes do ajuste fiscal. Cumprimos o superávit primário”.

O que é um ajuste fiscal para um neoliberal? Desde o final de 2014 até agora, a dívida pública pulou de 30% do PIB para 60%.  Então, a linguagem neoliberal está organizando a linguagem da mídia e, às vezes, nós a usamos. Somos contra a “reforma trabalhista”, que não foi uma reforma. Não foi uma melhoria. Tem de ter outro nome. A “independência” do Banco Central não é independência coisa nenhuma. É a submissão inteira do Banco Central aos financistas... e assim por diante. Então, é preciso adotar essa sexta mudança no nosso corpo coletivo, como você propôs, que é falar a linguagem plena da emancipação, a nossa linguagem da tradição socialista democrática.