Política

Derrotado também na depredação física das sedes dos três poderes, o energúmeno se dá conta de que a relação de força que o poder exprime não se esgota na estrutura física dos edifícios

Ao energúmeno restou mobilizar da Flórida a horda neofascista para a tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro. Foto: Marcelo Camargo/ABr

Sobram comparações entre o energúmeno que lamentavelmente assumiu o Presidência da República em 2019 e conduziu o Brasil à barbárie que testemunhamos ao longo de quatro anos, e as figuras que lideraram o nazifascismo na Europa, no século 20.

Passadas três semanas da fuga do palhaço sinistro para a Flórida – ao fim dessas farsas trágicas, mais ou menos prolongadas, na América Latina, há sempre um avião decolando rumo à Flórida – emergem os crimes hediondos cometidos pela camarilha contra o povo Yanomami, ao lado da bandalheira óbvia com os cartões corporativos.

As denúncias que já tramitam no Tribunal Penal Internacional da Haia adquirem nova dimensão, agravada pela bestialidade dos crimes cometidos pelos garimpeiros ilegais e pela cumplicidade do poder público. O caminho era extinguir a reserva homologada em 1992, durante o governo Collor, para perpetrar o extermínio da etnia Yanomami. O objetivo: liberar o território demarcado para a exploração primitiva e devastadora do ouro.

A visita do presidente Lula a Roraima, neste 21 de janeiro de 2023, abriu espaço para que a barbárie começasse a ser revelada aos olhos da sociedade brasileira e do mundo.

A cada dia que passa o verniz que o poder eventualmente empresta aos que o exercem, mesmo aqueles menos habilitados para exercê-lo, como é o caso desse farsante, se decompõe, se desfaz, perde o brilho e expõe a miséria que a aparência escondia. Vale lembrar a frase de Lincoln:“Podeis enganar toda a gente durante um certo tempo; podeis mesmo enganar algumas pessoas todo o tempo; mas não vos será possível enganar sempre toda a gente.”

Volto ao parágrafo inicial. Tem sido frequente encontrar nos ensaios empreendidos por diferentes intelectuais para decifrar o fenômeno autoritário que se impôs ao Brasil desde a ruptura constitucional de 2016 que resultou na deposição da presidenta eleita Dilma Rousseff, menções ao processo social e político vivido pela Itália a partir de 1922 e pela Alemanha de 1933.

Sem dúvida pertinentes, consideradas as características das sociedades de massa de um capitalismo em crise buscando, naquele momento histórico da Europa, desembaraçar-se das amarras institucionais do liberalismo. Modelo que, por um lado, ao absorver alguns direitos conquistados pelo movimento operário, limitava o processo de acumulação e, por outro, se mostrava ineficiente para enfrentar o vigoroso ascenso das lutas dos trabalhadores vitoriosos na revolução de outubro de 1917, na Rússia e suas repercussões no continente.

Busca-se aqui e ali elementos de identificação, como se vê, não tão difíceis de localizar, entre o energúmeno vencedor de um processo eleitoral no Brasil (2018) em que seu principal adversário foi encarcerado e impedido de concorrer, e as figuras dos líderes nazifascistas – Benito Mussolini e Adolf Hitler – para facilitar a compreensão do que veio a ocorrer aqui cem anos depois.

Com o propósito de contribuir com esse esforço, sugiro agregar uma experiência mais recente e – pese as particularidades sociais e culturais dos dois países – desenvolvidas em circunstâncias históricas semelhantes: refiro-me ao processo político que resultou na ascensão da senadora Jeanine Áñez Chávez à Presidência da Bolívia, em 2019, e os fatos que se seguiram.

Por oportuno, recorde-se que fracassou a tentativa de bloquear e interromper a experiência popular e democrática de construção do Estado Plurinacional da Bolívia, conduzida pelo Movimento ao Socialismo (MAS), que conferiu alguma estabilidade ao país politicamente mais instável do continente – 189 golpes de Estado – desde sua independência do império espanhol, em 1825.

Em quase duzentos anos de história independente Evo Morales, pasmem, foi o primeiro presidente indígena a governar a Bolívia, um país cuja população conta 62,2%... de indígenas. Governou por treze anos (2006 a 2019), eleito democraticamente numa república historicamente submetida a ferozes disputas oligárquicas em que as forças armadas eram convocadas ou por iniciativa própria decidiam fazer um “pronunciamiento”.Em outras palavras: impor um golpe de Estado. Não raro, os governos daí derivados, duravam alguns meses.

Quando inserimos a ruptura constitucional de 2019 que permitiu a ascensão de Jeanine Áñez à Presidência da República da Bolívia no quadro da vasta operação estratégica das “mudanças de regime” desenvolvida pelo Departamento de Estado, compreendemos melhor o significado anticolonial da resistência do povo boliviano e sua vitória nas urnas com a eleição de Luís Arce para a Presidência em 23 de outubro de 2020, um ano depois do golpe.

O objetivo da operação como é sabido, tratava de reposicionar os interesses dos Estados Unidos em diferentes países do mundo, na recuperação do controle das fontes fornecedoras de energia e insumos para componentes de artefatos de alta tecnologia – lítio, no caso boliviano – frente à ascensão dos seus concorrentes, nomeadamente a China.

Jeanine Áñez, hoje, cumpre pena. Foi condenada pela justiça boliviana a 10 anos de prisão por atentar contra a Constituição de seu país. Seus cúmplices, o ex-comandante das Forças Armadas Williams Kaliman e o ex-chefe de polícia Yuri Calderón, também condenados, se encontram foragidos.

Algo semelhante ocorrera com êxito no Brasil, três anos antes. Em 2016 a presidente Dilma Rousseff foi afastada do poder para que as petroleiras norte-americanas derrubassem o modelo de partilha que assegurava a aplicação da renda-petróleo no projeto de desenvolvimento nacional autônomo para o Brasil, e apropriassem das vastas jazidas descobertas pela Petrobrás e já em operação sob controle da estatal brasileira.

Seguiu-se uma ofensiva contra as conquistas dos trabalhadores consagradas pela Constituição de 1988. Uma Constituição liberal- democrática que incorporou importantes demandas da base da pirâmide social mobilizada pelos movimentos sindicais e populares que levaram ao fim da ditadura. A nova onda neoliberal revelou-se incompatível com a vigência dos direitos conquistados pelos assalariados e operou para solapar os avanços obtidos ainda que se desse às custas do colapso do sistema político gerado pelo pacto constitucional de 1988.

Na perspectiva neoliberal a Carta Magna passou a ser um estorvo ao processo de acumulação. Portanto, um obstáculo a ser removido. O desfecho se deu em 2016 com o afastamento da presidenta eleita Dilma Rousseff e sua substituição pelo vice, Michel Temer, um personagem das sombras, há anos se movendo entre as dobras do poder.

Na operação “mudança de regime” versão brasileira, desencadeou-se a perseguição judicial ao Partido dos Trabalhadores e a prisão de sua principal liderança – o ex-presidente Lula – para impedi-lo de concorrer mais uma vez à Presidência da República em 2018. Abriu-se assim o caminho para a extrema-direita liderada pelo energúmeno alcançar o poder pela via do voto e viabilizar a agenda neoliberal.

Seis anos passados a resistência do povo brasileiro alcançou por meio da campanha “Lula Livre”, mais do que a liberdade de Lula, derrubar as condenações arbitrárias que recaíram sobre ele, desmoralizar o instrumento principal de sua condenação – a operação lava-jato – recuperar seus direitos políticos. Viabilizou-se assim sua candidatura, compôs-se uma ampla frente eleitoral sob sua liderança, que se revelou capaz de atrair setores da centro-direita convencional e elegê-lo pela terceira vez presidente do Brasil. Derrotou-se assim o neofascismo, mas não a agenda neoliberal que o viabilizou. Será esse o desafio incontornável do governo liderado por Lula.

Ao energúmeno derrotado nas urnas, restou mobilizar desde seu refúgio na Flórida, a horda neofascista para a tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro. Derrotado também na depredação física das sedes dos três poderes da República, o energúmeno se dá conta de que a relação de força que o poder exprime não se esgota na estrutura física dos edifícios que o abrigam. Sob a mira da justiça, trilha o caminho de Jeanine Áñez, como ele mesmo previa.

Pedro Tierra (Hamilton Pereira) é poeta. Ex-presidente da Fundação Perseu Abramo