Sociedade

Considerando a necessidade de rebeldia contra as atitudes discriminatórias, 21 de março, Dia Internacional de Luta contra a Discriminação Racial deve ser mais e mais comemorado

Em 21 de março de 1960, aconteceu o massacre em Joanesburgo, na África do Sul. Foto: African History Archives

No mês de março são comemoradas duas datas que positivam situações extremamente emblemáticas para a humanidade, embora ela insista em não se importar. As situações são as discriminações históricas das mulheres, dos negros, dos indígenas e tantos outros grupos. As datas: 8 de março (Dia Internacional da Mulher) e 21 de março (Dia Internacional Contra Todas as Formas de Discriminação Racial), ambas instituídas pela Organização das Nações Unidas (ONU)! Além da lembrança desses marcos, é importante olhar e agir sobre as vivências nos lugares e no território nacional, validando as revisões históricas.

Ao tratar da intersecção entre raça/etnia, gênero e classe social, é importante avançarmos nas análises teóricas e políticas, mas também não deixar de fora os sentimentos e subjetividades. Nesse caso, apresento a poesia que escrevi em 1993 – Cabeça feita: “Fio a fio teço a cabeça, viajo pela ancestralidade e busco marcas do passado. Ontem e hoje trançam-se, traçando um novo destino. Faço a cabeça, embelezo e remoço a vida e teço nova imagem de alteridade”.

Pois é, “o ontem e o hoje trançam-se” e fazem a nossa cabeça, por isso é importante perceber que a humanidade produz práticas nefastas de convívio entre os seres humanos, e antídotos às mesmas. Um dos antídotos para a ONU é a compreensão sobre discriminação racial, presente no Artigo I da Declaração das Nações Unidas sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial: “quaisquer distinção exclusão, restrição ou preferência baseada na raça, cor, ascendência, origem étnica ou nacional com a finalidade ou o efeito de impedir ou dificultar o reconhecimento e exercício, em bases de igualdade, aos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou qualquer outra área da vida pública”.

A revelia de formulações anunciadoras de igualdade e justiça, a sociedade repete suas facetas discriminatórias, por isso é importante reforçar referências para impulsos democráticos no Brasil e no mundo. Nesse sentido, destaca-se em 21 de março de 1960, o massacre em Joanesburgo, na África do Sul. Nessa ocasião, 20 mil pessoas faziam um protesto contra a “Lei do Passe”, no período do apartheid1. Mesmo tratando-se de uma manifestação pacífica, a polícia abriu fogo sobre a multidão desarmada resultando em 69 mortos e 186 feridos. Em resposta, como atitude contraditória e denúncia a este massacre a ONU instituiu 21 de março o Dia Internacional de Luta contra a Discriminação Racial.

Considerando a necessidade de rebeldia contra as atitudes discriminatórias, 21 de março Dia Internacional de Luta contra a Discriminação Racial deve ser mais e mais comemorado. Mas não basta apenas comemorar, é necessário dar impulsos concretos visando à igualdade e justiça social e racial.

Importância das políticas de igualdade desde as localidades brasileiras

A comemoração do Dia 21 de Março inspira a revisões da história brasileira e das localidades, do ponto de vista racial. Hoje como moradora de Fortaleza (CE), vou aos poucos me envolvendo com a história do estado. E, buscando aproximação, deparo-me com a existência de personagens pouco reconhecidos na história: Preta Tia Simoa, que foi personagem fundamental para a abolição da escravização de negros, e, Francisco José do Nascimento, o “Dragão do Mar”, um prático da barra que virou líder dos jangadeiros fortalezenses e também nacional.

É importante observar que as histórias de lutas e conquistas ocorrem há séculos. No entanto, nosso país é praticante do epistemicídio (não reconhecimento de pessoas e fatos) que é motivado pela inferiorização proveniente do racismo e do machismo, que tornam as pessoas negras, subordinadas às brancas, motivadas pela visão de triunfo dos europeus.

Retomemos as histórias das abolições – em Redenção, Ceará (em 1884, como a primeira província a oficializar o fim da escravidão) e a Lei Áurea (em 1888). Passados mais de 130 anos depois das abolições, a população negra ainda encontra-se distante da conquista de direitos cidadãos e da vivência com equidade. Mesmo que denúncias tenham sido feitas desde sempre. Roger Bastide e Florestan Fernandes, já em 1955, apontaram que: “o crime de que mais amargamente se queixam os pretos é o que se poderia chamar de pecado de omissão”, em relação à falta de política governamental voltada à população negra.

Os dois renomados teóricos, assim como intelectuais e ativistas negros, alimentaram ao longo da história denuncias similares, mas só tiveram suas vozes ecoadas tardiamente, apenas a partir do final dos anos 1980, quando são iniciadas algumas experiências de criação de órgãos de igualdade racial.

A primeira experiência estadual foi no Rio de Janeiro, em 1991, com a Secretaria Extraordinária de Defesa e Promoção das Populações Negras (Sedepron), no governo Leonel Brizola, tendo como secretário o líder Abdias do Nascimento.

Mesmo com a vivência de contradições políticas quanto ao não reconhecimento e valorização da existência de negros por parte da sociedade, o governo do estado do Ceará desenvolveu experiências de ações voltadas à igualdade racial, como a “Campanha Ceará sem Racismo, Respeite Minha História, Respeite Minha Diversidade”, a partir de 2021 pela Coordenação Especial Políticas Públicas para a Promoção da Igualdade Racial. E, inicia a gestão em 2023, criando a Delegacia de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa (Decrin) ou Orientação Sexual da Polícia Civil do Ceará (PC-CE) e a Secretaria da Igualdade Racial do Ceará (Seir).

O federal impulsiona as localidades

Nas últimas décadas, as respostas mais efetivas foram criação da Fundação Cultural Palmares (FCP), em 1988, e da Secretaria Especial de Política de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), em 2003. Em 2023, a experiência da Seppir foi transformada no Ministério da Igualdade Racial (na terceira gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva). É importante, no entanto, a compreensão de que a criação da Política de Igualdade Racial deve levar em conta a luta histórica desenvolvida pelo Movimento Negro e organização de mulheres negras, visando à inclusão social, política e econômica da população negra.

A criação desses órgãos possibilita a realização de muitas ações propositivas, fazendo girar o vetor, no sentido favorável, ao combate às discriminações e ao racismo, mesmo que os períodos das gestões governamentais sejam insuficientes para garantir respostas mais abrangentes, diante das mazelas históricas do machismo, racismo, LGBTfobia entre outras tantas formas de discriminações e exclusões. As bases estruturais para a existência desses órgãos foram a Convenção Internacional sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação, o Programa Brasil sem Racismo, a Declaração e Plano de Ação de Durban, e mais recentemente a Declaração Interamericana Contra Todas as Formas de Discriminação.

Assim, há 20 anos, iniciou-se um novo ciclo na administração pública brasileira no que diz respeito às políticas de promoção da igualdade racial e a relação com os ministérios, visando a garantia da transversalidade na construção das políticas públicas. Ocorreu a promulgação de leis como a da obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira no ensino público e privado (10.639/03); o Programa Universidade para Todos - Prouni  (concessão de bolsas a alunos pobres, indígenas e negros (Lei 11.096/05); as Cotas nas Universidades Públicas (acesso a alunos pobres, indígenas e negros - 12.711/12); a PEC das Domésticas (66/2012) e Lei Complementar 150 referindo-se a conquista de jornada de trabalho de 8 horas, licença e salário maternidade, auxílio doença, aposentadoria por invalidez, idade e tempo de contribuição, auxílio acidente de trabalho, pensão por morte entre outras. Destacam-se, ainda, as iniciativas com relação ao continente africano, sendo impulsionada em várias áreas da política pública.

Passamos por um árduo período de desmonte das políticas, com os governos dos presidentes Michel Temer e Jair Bolsonaro, entre 2016 e 2022. Porém, a compreensão de que a política faz parte de uma realidade dinâmica, fez com que a sociedade brasileira, motivada pelos movimentos sociais com caráter progressista e democrático, buscasse energias para lutas e enfrentamentos com os setores conservadores e de direita! Com isso, foi reforçado o esperançar, e a crença na importância do reforço às lutas cotidianas para garantia de direitos democráticos e justiça social, fortalecendo a utopia de ampliação das conquistas e acima de tudo investimento em mudanças estruturais.

Vida que segue

Esses exemplos nos fazem compreender a importância de que os governos locais e o federal sejam proativos e responsáveis em relação à inclusão sociorracial, porém é extremamente necessário o reconhecimento de que o Movimento Negro e as organizações de Mulheres Negras protagonizam historicamente a luta antirracista e feminista. E, ainda, a expectativa é de que seja mantido e ampliado o investimento nas metodologias e práticas de participação social e de monitoramento e controle das políticas públicas, ressaltando que não há execução, sem orçamento público.

Embora seja árduo o caminho de construção de políticas públicas de igualdade racial, com suas morosidades e tortuosidades, é possível verificar coerência e persistência histórica do movimento negro e organização de mulheres negras, impulsionando setores antirracismo e ações governamentais.

A busca tem sido para a manutenção e ampliação, energia cotidiana para a luta e resistência para a reivindicação e monitoramento do desenvolvimento das políticas públicas em todas as áreas, e em especial as políticas de igualdade racial. E devemos também realizar as ações contestatórias como as comemorações do dia 21 de março – Dia Internacional contra a Discriminação Racial.

Não há dúvida que o caminho da luta e negociação para garantia de justiça e direitos raciais é o que alimenta as mudanças e conquista de cidadania. Atuando nesse sentido, faremos valer os ensinamentos de Steve Biko (ativista sul-africano, morto na luta contra o apartheid): “ou você luta, ou está morto”!

Matilde Ribeiro é ex-ministra da Igualdade Racial do governo Lula, professora na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab)