Política

A esquerda brasileira precisa vislumbrar um futuro diferente do barbarismo neoliberal, que passe pela solidariedade humanista e ecologicamente sustentável do socialismo democrático

Povo na posse de Lula, 1º de janeiro de 2023. Foto: Ricardo Stuckert

O golpe de 1º de abril de 1964 coroou a flagrante derrota das forças progressistas e, consequentemente, iniciou o “expurgo” nas Forças Armadas – mais de 8 mil militares foram cassados, expulsos ou presos. Dezenas de milhares de funcionários públicos de todos os entes da República foram afastados de suas funções.

Pegas de surpresa e sem capacidade de reação, as esquerdas: a Frente Parlamentar Nacionalista, o Comando Geral dos Trabalhadores (recém fundada, Contag), setores do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e do Partido Comunista Brasileiro (PCB), amparados no pseudo esquema militar janguista, caíram todos no amargor e na decepção do fracasso.

O PCB, liderado por Luís Carlos Prestes, foi a primeira força a lamber suas feridas, abrindo, com o golpe de Estado, uma série de questionamentos, à esquerda e à direita de suas fileiras, perplexas com a facilidade com que os golpistas assumiram o poder. Na esquerda do partido, personagens que vieram a abraçar a luta armada, como Carlos Marighella, Joaquim Câmara Ferreira, fundando a Aliança Libertadora Nacional (ALN); Mário Alves, Jacob Gorender e Apolônio de Carvalho, compondo o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) – que incluiu o acrônimo de revolucionário na sigla do velho PCB –; e dissidências estudantis, como a do extinto estado da Guanabara, que assumiu a sigla do MR8, o Movimento Revolucionário Oito de Outubro, acusavam a direção capitaneada por Prestes, Giocondo Dias, Marco Antônio Tavares Coelho, Hércules Corrêa de “reboquismo” frente às vacilações do presidente deposto, João Goulart.

O cume da divergência se deu na realização do 6º Congresso pecebista, em 1966. Marcado para o segundo semestre de 1964, pós-golpe, o Congresso não pode se realizar por motivos óbvios. Afastados da direção partidária, que começava a esboçar a tese de que era preciso organizar uma ampla frente política para derrotar o regime – que a maioria do partido acreditava de longo prazo – discordando frontalmente dessa linha política, os setores à esquerda acusavam a maioria do Comitê Central de passividade frente ao novo regime e advogavam a tese de que era preciso organizar o enfrentamento armado contra a ditadura militar.

O desenlace entre as duas posições começou a se tornar público com as passeatas e os atos públicos organizados pelo movimento estudantil e por parte da intelectualidade. Nos movimentos, pontificaram duas palavras de ordem: “Só o povo organizado derrota a ditadura”, propagada pelos PCB e seus simpatizantes, e “Só o povo armado derruba a ditadura”, proferidas pelos adeptos do enfrentamento armado contra o regime.

A visão um tanto míope, entretanto, de aparência heroica, emanada desses setores, negavam um princípio básico no teatro da guerra. Não observavam a máxima escrita por Sun Tzu em A Arte da Guerra: “Não se enfrenta o inimigo no terreno onde este é mais forte”.

A presença de massas nas ruas, cujo epicentro foi a Passeata dos 100 mil no Rio de Janeiro, as greves em Osasco (SP) e Contagem (MG), e o Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) em Ibiúna, no interior de São Paulo, que terminou com a prisão de 800 ativistas, todos os atos em 1968, foram os pretextos para que houvesse a decretação do Ato Institucional Nº 5, conhecido como AI-5, interpretado pelas forças democráticas como um “golpe dentro do golpe” e que endureceu o poder militar com violência, perseguição e censura.

A fascistização do regime impôs a censura à imprensa, ao teatro, à música e a todas as manifestações ou reuniões de grupos ou coletivos de organizações, políticas ou não. O número de prisões aumentou significativamente, e levou também à exclusão de estudantes e professores pelo famigerado Decreto-lei Nº 477, que ficou conhecido como o “AI-5 dos estudantes” – a lei, baixada por Costa e Silva, punia estudantes, professores e funcionários de Universidades acusados de “subversão ao regime” com expulsão sumária.

O sufocamento do ambiente foi o estopim para a resistência armada que explodiu pelo país em seguida. A lógica do enfrentamento não encontrou respaldo nos setores populares e terminou interpretada como um movimento de caráter pequeno-burguês, cuja radicalidade obstruía uma visão da correlação de forças que era francamente desfavorável aos insurgentes.

A derrota anunciada dos segmentos optantes pela luta armada – que, mais adiante, contou com participação intensa do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) na guerrilha do Araguaia – resultou na morte, longas prisões com sessões de tortura e banimento de milhares de militantes. Mesmo o PCB, que sempre repudiou a participação na aventura armada, teve dizimado, praticamente, todo o seu núcleo dirigente pelos agentes da ditadura, o que obrigou a outra parte da sua direção a partir para o exílio.

A linha política adotada pelo PCB, apesar de combatida dentro e fora do país por certo “revolucionarismo” da geração 1968, começou a frutificar com a fragorosa derrota da Aliança Renovadora Nacional (Arena), o partido do regime pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB), nas eleições de 1974. Foi em reação a essa grande votação do MDB que o regime, que já tinha derrotado a guerrilha no campo e na cidade, partiu para desarticular o que restava das forças de esquerdas: os dez membros do Comando Central do PCB sequestrados e assassinados; as mortes de Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho em São Paulo, culminando com a chacina da Lapa, em dezembro de 1976, quando foram assassinados os dirigentes do PCdoB Pedro Pomar, João Batista Drummond e Ângelo Arroio em uma reunião do Comitê Central que discutiria o “voluntarismo” da Guerrilha do Araguaia.

A intensa perseguição às esquerdas, no entanto, não diminuiu o ímpeto de luta pela reconquista da democracia e pela derrota do regime. Nasceram aí os movimentos pela anistia ampla geral e irrestrita, que deram seguimento às denúncias no campo internacional e iniciaram uma pressão interna sem precedentes desde o golpe em 1964.

Atuando no interior do MDB, as esquerdas e outros segmentos democráticos conseguiram, nas eleições parlamentares de 1978, eleger uma bancada progressista denominada “autênticos do MDB”, que, com a adesão de alguns arenistas, como o senador Teotônio Vilela, e com as greves dos metalúrgicos do ABC paulista, lideradas por Luiz Inácio Lula da Silva, começaram a abrir uma brecha no regime.

A volta dos anistiados e a abertura dos cárceres trouxeram de volta ao Brasil os protagonistas do pré-64 e os artífices da resistência armada do pós-68. A reforma partidária protagonizada pela “abertura política” extinguiu os partidos vigentes e abriu perspectivas para criação de novos partidos. Os comunistas do PCB, PCdoB e do MR8 se abrigaram no Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), que seria, na visão desses segmentos, o sucedâneo do antigo MDB (hoje de volta à sigla original), que, com seu caráter de frente democrática, seria o caminho que levaria à consolidação da democracia e, mais facilmente, poderia levar à derrota da ditadura.

Leonel Brizola e os herdeiros do varguismo/janguismo quiseram refundar o antigo PTB. O intento, porém, foi barrado pelo general Golbery do Couto e Silva que, em uma manobra com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), entregou a legenda para a ex-deputada federal e sobrinha do ex-presidente, Ivete Vargas. Brizola e seus seguidores rejeitaram a entrada no PMDB e fundaram o Partido Democrático Trabalhista, o PDT, em 1979.

Interessante no período foi a movimentação de vastos setores populares capitaneados por Lula e que contou com a adesão de milhares de militantes do movimento sindical, das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs),da Igreja Católica, e de egressos da resistência que se somaram para fundar o Partido dos Trabalhadores, o PT, em 1980.

Visto no início com desconfiança por parte dos setores democráticos e pelos comunistas, que os acusavam de divisionistas e até de “linha auxiliar” da ditadura, o PT inicialmente optou por uma linha exclusivista – em parte favorecida pelo voto vinculado nas eleições de 1982, mas que se manteve infensa a alianças até 1988. Esse caminho excludente levou o PT, que foi um dos iniciadores do movimento Diretas Já, o maior movimento de massas da história brasileira, a optar por rejeitar a participação no Colégio Eleitoral que elegeu a chapa formada por Tancredo Neves e José Sarney. A rejeição ao Colégio Eleitoral levou o partido a expulsar de suas fileiras três deputados federais que, descumprindo decisão partidária, sufragaram a chapa eleita.

Paralelo a isso, no PT se debateu, até seu 5º Encontro Nacional, se se consolidaria como um partido de “quadros” ou de “massas”. Rejeitando a perspectiva do socialismo real “soviético-chinês-albanês” e negando, na mesma proporção, a social-democracia europeia, venceu a posição encaminhada por Lula, a de seguir na construção de um partido de massas.

A legalidade dos partidos comunistas no governo Sarney (1985-1990), longe de levar com que numerosos quadros políticos, artistas e intelectuais se somassem a eles, ocasionou, ao contrário, um enfraquecimento dessas legendas, já que parte de seus militantes preferiram continuar no PMDB. Descolando-se, os comunistas optaram por ficar sob a sombra do PMDB e da “Nova República”. Essa opção custou caro tanto para o PCB, quanto para o PCdoB, abrindo uma janela para que o PT construísse uma hegemonia no campo da esquerda. Já o trabalhismo brizolista consolidou-se no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul, terra já governada pelo próprio Brizola e berço de Getúlio Vargas e João Goulart.

De passagem, lembremos que houve um princípio de unidade das forças derrotadas de 1964 e/ou seus herdeiros: a Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988. Ponto de inflexão da luta democrática no Brasil pós-1964, a constituinte uniu comunistas, trabalhistas, democratas e petistas em busca de avanços no arcabouço de leis brasileiras.

Ao perceber esse avanço e união, os setores conservadores, em aliança com os militares, organizaram o chamado Centrão, para deter os avanços do campo popular e obstruir as pautas progressistas. Daí nasceu o malfadado artigo 142 da Constituição Federal, que, mal formulado, erige para as Forças Armadas um papel que elas interpretam como “moderador”, mas que, de fato, mantém a tutela militar sob o poder civil indevidamente.

As eleições de 1989

Paradoxalmente, é nas eleições presidenciais de 1989 que, no primeiro turno, as forças populares se desunem completamente com os lançamentos das candidaturas de Lula, pelo PT em coligação com o PCdoB e o PSB; Brizola, pelo PDT, com o apoio de Prestes; o Partido da Social Democracia Brasileira, o PSDB (fundado um ano antes, em 1988), com Mário Covas; o PMDB, com Ulisses Guimarães; e o PCB, com Roberto Freire.

A brutal divisão do campo progressista no primeiro turno foi recomposta pela maior unidade já construída em torno da candidatura de Lula, que passara ao segundo turno por uma pequena diferença frente ao ex-governador Brizola. Nesse arco de alianças, faltou o veterano Ulisses Guimarães, que, disposto a somar esforços com Lula, foi solenemente ignorado pelo comando da campanha do metalúrgico – fato que hoje é motivo de arrependimento do próprio Lula.

As alianças de 1989 não eliminaram o ímpeto excludente de setores do PT, que escorados na quase vitória de Lula, resolveram ignorar os aliados. Prova maior foi a negativa de apoio a Leonel Brizola nas eleições para governador 1990. Fato esse que gerou uma ferida que só foi cicatrizada com a construção da chapa Lula-Brizola em 1998, derrotada pela aliança FHC-Maciel. Derrotada, esta que tinha se iniciado em 1994, quando Lula começou a pré-campanha na liderança, e após o advento do Plano Real e a construção da aliança PSDB-Partido da Frente Liberal (PFL), sob os auspícios de Itamar Franco, vencera as eleições.

Um parêntese: substituindo o trágico governo de Fernando Collor (PRN, 1990-92), Itamar Franco convidou o PT, de Lula, que à época liderava as pesquisas, para compor o chamado governo de “união nacional”. O PT negou-se a participar, o que ocasionou no rompimento da ex-prefeita de São Paulo Luíza Erundina com o partido para assumir um ministério.

O aggiornamento petista se deu, efetivamente, no 2º Congresso do partido, em 1999, quando foi rechaçado por Lula, e pela maioria do partido, o chamamento de “Fora FHC”. Optou-se por uma oposição congressual e nas ruas, dentro dos marcos da legalidade democrática. Foi o aprofundamento dessa concepção que levou o PT a buscar construir alianças com setores do centro democrático e produziu a chapa Lula e José Alencar, vencedora, finalmente, das eleições de 2002.

Ressalta-se que esse breve ensaio sobre a questão democrática no Brasil não tem a pretensão de analisar detidamente os governos petistas de Lula e Dilma. Sem dúvida, demandaria um estudo mais aprofundado para tanto. As breves passagens sobre os dois governos é o fio condutor que nos leva a chegar ao ponto que entendemos ser o início do período rupturista: as marchas golpistas de 2013, a operação Lava Jato e seus sucedâneos.

A primeira Presidência de Lula

Parafraseando o presidente eleito, “nunca antes na história do Brasil” o campo popular chegou tão longe.

A despeito das grandes realizações do governo, o PT, já consolidado como a principal força do campo progressista, sofreu um esvaziamento sistemático das suas instâncias dirigentes que optaram pelo governo, em detrimento do partido. O mesmo fenômeno deletério se deu nos movimentos sociais. A máxima do momento era: “o governo já tem muitos adversários, cabe aos movimentos apoiá-lo”. Foi um desastre.

A Ação Penal 470 (2007), que julgou os acusados de corrupção no que ficou conhecido como o “escândalo do mensalão”, foi o primeiro choque de realidade que experimentara o governo. Partindo de uma denúncia de Caixa 2 feita por um dos notórios bandidos do Centrão, Roberto Jefferson (PTB), a mídia e os partidos de oposição criaram uma trama persecutória que quase depôs o presidente.

Na sequência, foi protagonizado o Caso Francenildo, que levou o “queridinho” do Mercado, o indefectível Antônio Palocci, a se demitir do cargo de ministro da Fazenda. A série de ataques, cuja “bala de prata” seriam os “aloprados” em 2006, não fez cair a ficha da direção do PT, que enebriada pela ilusão de classe, interpretava os “causos” como acidente de percurso.

A segunda Presidência de Lula

Reeleito, Lula ampliou consideravelmente sua base de apoio no Congresso Nacional. Esse apoio, entretanto, não permitiu que houvesse a prorrogação da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), criada no governo FHC. Com a sua extinção, deixou-se de arrecadar aproximadamente R$ 50 bilhões para os cofres públicos. O aumento da alíquota sobre heranças também foi derrotado em plenário por uma manobra parlamentar de um “membro da base aliada”.

É inegável que a realização de dezenas de conferências setoriais, englobando os mais variados segmentos populares, bem como a criação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, foram avanços significativos na dinâmica brasileira. Vistos com ceticismo pela mídia tradicional, principalmente a Conferência de Comunicação, todas foram sucesso. Essas ações demonstraram que era possível avançar na aridez do debate político no país.

Foi nesse período também que se deu a consolidação do republicanismo por parte do governo, com a nomeação das listas tríplices para o Ministério Público Federal e a nomeação de juízes para os tribunais sem nenhum critério. Ou melhor, na base da nefanda meritocracia. Deu errado.

O governo Dilma 1

Ancorado na imensa popularidade, o presidente Lula surpreende o mundo político e lança como candidata a sucedê-lo sua então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff. Sem nunca ter disputado um cargo eletivo, Dilma, com uma trajetória vinculada aos movimentos de enfrentamento à ditadura, encabeça uma ampla frente de partidos costurada pelo presidente e que tem como seu candidato a vice o veterano peemedebista Michel Temer. Venceram. Os bons ventos que sopravam pós-Lula, com uma economia que no ano da eleição crescera 7,5 %, o governo se inicia eivado de expectativas. Não foi o que ocorreu.

A crise que em 2008 passou como uma “marolinha” no governo Lula explodiu no colo de Dilma. O início da contração econômica se somou a um certo mal-estar entre o governo e setores dos movimentos populares que alegavam – com certa razão – ausência de interlocução com o Planalto.

2013: O golpismo se inicia

As chamadas “jornadas de junho” de 2013 foram o pontapé inicial no emparedamento do governo. Convocadas inicialmente pelo movimento paulista pelo Passe Livre contra o aumento de R$ 0,20 no preço das passagens, descambaram para “hospitais padrão Fifa” e o “não vai ter Copa”, com vociferantes críticas deslocadas, mas ao gosto da despolitização, às obras realizadas para que o Brasil sediasse a Copa do Mundo. O que parecia ser movimento de viés progressista revelou-se um caminho para o oposicionismo rasteiro.

A captura da pauta pelo movimento em defesa da PEC 37, uma afronta ao Estado Democrático de Direito, de autonomia absoluta do Ministério Público, parece ter sido a senha para que, já na virada de 2014, se iniciasse com pompa, circunstância e cobertura total da mídia, a Operação Lava Jato.

Recebidos como heróis em todos os cantos, inclusive na sede da CIA, nos Estados Unidos, o juiz Sergio Moro e o procurador Deltan Dallagnol deram a largada para a obstrução do governo Dilma e a uma perseguição implacável ao PT. O cerco jurídico-midiático não conseguiu, no entanto, pela via eleitoral e do escracho, derrotar a candidatura da chapa Dilma-Temer à reeleição.

O candidato adversário, Aécio Neves, dava como certa a vitória. Estufado pela capa da revista Veja, que circulou no dia da eleição, Aécio já se considerava presidente. Na capa, lia-se a frase do velho conhecido da justiça Alberto Yousseff que dizia: “eles sabiam de tudo”, ilustrada com a foto de Dilma e Lula, prato cheio para o consórcio midiático que a reproduziu de forma sensacionalista. Ao não reconhecer a derrota, Aécio abriu a temporada de inviabilização do governo, com a aprovação das chamadas pautas-bomba, já contando com o auxílio do deputado federal Eduardo Cunha (PTB). Os rescaldos da crise de 2008, a aprovação das pautas-bomba e o bombardeio diário da mídia, alimentada diuturnamente pela Lava Jato, criaram um ambiente de inviabilização da gestão de Dilma.

Na ocasião, vários setores políticos avaliaram que para conter os avanços da “república de Curitiba”, como eram denominado jocosamente o conluio judicial da Operação, teria de “tirar a Dilma”. Foi nesse ínterim que o ex-presidente Lula virou o alvo principal da perseguição. Juntando Temer e seus áulicos sequiosos pelo poder, a Faria Lima, região paulistana de forte movimentação empresarial e financeira, a sede da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp) que se tornou tela de cinema do golpe que viria, além de parte do Judiciário, da mídia, sob a batuta do maestro Eduardo Cunha deu-se o desenlace.

O verdadeiro “strike” no sistema político brasileiro despertou a cobiça dos militares, que, apesar de terem deixado o governo em 1985, nunca se sentiram à vontade longe do poder Executivo. Mero espantalho das forças reacionárias e deputado do “baixo clero”, surge a figura do capitão Jair Bolsonaro, festejado por suas baixarias em programas de TV como Superpop (RedeTV), Pânico (RedeTV e Jovem Pan) e CQC (Band). Hoje já se consegue assistir nos youtubers da vida o então deputado capitão sendo recebido aos gritos de mito, na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), o que é proibido pela lei.

Visto como a solução conservadora, o projeto de poder Bolsonaro logo se alia a Donald Trump e Steve Bannon, importando para cá o exército de notícias falsas e as redes de robôs que deram a vitória a Trump contra Hillary Clinton em 2016, nos Estados Unidos, e que já teria sido usada com êxito na campanha do Brexit, no Reino Unido, conforme notoriamente noticiado pela imprensa de todo o mundo.

A prisão e inviabilização da candidatura de Lula em 2018, o enfraquecimento da centro-direita pelo discurso antissistema e a “escolha difícil” da mídia cultivaram e espessaram o caldo de cultura que desaguou na trágica eleição de Jair Bolsonaro e seu vice, o general Hamilton Mourão. O famoso tuíte do general Villas Boas, que enquadrou e intimou o STF antes do julgamento de habeas-corpus de Lula, de teor incendiário, foi sanha garantidora para que se usasse o poder Judiciário para impedir, inclusive, que Lula desse entrevistas na Polícia Federal em apoio a seu candidato, Fernando Haddad.

O fascismo bate à porta 

A vitória de Bolsonaro no segundo turno das eleições de 2018 foi uma espécie de “reentre” dos militares no governo federal. Patente foi o agradecimento público do presidente eleito ao general Vilas Boas, dizendo dever a ele sua assunção ao governo. A ocupação de cargos na administração por esse estamento não tem paralelo na história da República. Mais de 12 mil militares de várias patentes foram nomeados para cargos na Esplanada.

A junção do conservadorismo militar, o olavismo – traço dos seguidores do “filósofo” Olavo de Carvalho, morto em 2022 – e o fundamentalismo religioso deram o tom inicial do governo. Sua dificuldade de interlocução no parlamento foi resolvida com a aliança com, de novo em nossa história, o Centrão – agrupamento de caráter fisiológico e que, com sua sede inesgotável por cargos e dinheiro, fica à espreita de qualquer governo de plantão que possa saciá-lo.

Para compor com parte do establishment, foi convocado o ultraliberal Paulo Guedes. Foram entregues a Agricultura, a Funai, o Ibama e o Meio Ambiente para o setor mais atrasado do agronegócio – que, em sua aliança histórica com os militares, empreendeu o passar da boiada. A captura dos órgãos públicos pelo atraso secular sucumbiu no maior desmatamento que se tem notícia no país; os povos indígenas viram seus rios e córregos invadidos pelo garimpo ilegal de pedras preciosas em terras demarcadas e protegidas; a grilhagem de terras públicas e indígenas deu-se indiscriminadamente, causando perplexidade e assombro em toda a comunidade internacional.

Assumindo um negacionismo exacerbado no enfrentamento da pandemia da Covid-19, promotor de curas por medicamentos paliativos e com um discurso ferozmente negativo contra a ciência, Bolsonaro, responsável maior pelas 700 mil mortes na pandemia, começou a sofrer fissuras em parte de sua base política e militar. Deu-se aí a saída de alguns generais e o rompimento com o PSL – partido pelo qual concorreu em 2018 e cujo rompimento dividiu a base na Câmara.

Visto como pária na arena internacional, Bolsonaro passou a inventar “arengas” mundo afora. O Itamaraty, cujo prestígio pela excelência de sua composição é reconhecido internacionalmente, foi capturado pela lógica obscurantista e transformado em puxadinho da extrema-direita e passou a disseminar e defender infâmias pelo mundo.

Testando os limites da institucionalidade, Bolsonaro, sempre contando com o respaldo das Forças Armadas, resolve, então, contestar as urnas eletrônicas. “Case” de sucesso mundial, as urnas eletrônicas nunca foram questionadas por sua integridade com provas materiais. Não se vê por aqui, há muito tempo, as aberrações observadas nos pleitos eleitorais nos EUA, por exemplo, onde a apuração dos votos no papel leva dias e dias.

A firme decisão do Tribunal Superior Eleitoral em defender a integridade do processo desencadeou um ataque sem precedentes à instituição e aos seus componentes. Além dos disparos verborrágicos do presidente da República contra o TSE e, em consequência, o Supremo Tribunal Federal, por uma bem montada indústria de notícias falsas – as famosas fake news –, nesse ambiente tóxico se iniciou o processo eleitoral de 2022.

Bolsonaro resolve “mudar” a composição de sua chapa, indicando o general Braga Netto em substituição a Mourão, consagrando a textura militar de seu projeto político.

O extremismo de Bolsonaro e sua opção política de manter a chamada “guerra cultural”, dando publicidade sistemática à chamada pauta de costumes, desagradou alguns segmentos militares e civis que, aos poucos, debandaram do governo. Já parte dos segmentos do centro-democrático, compromissados com o aprofundamento da pauta neoliberal, e germinando a velha contenda entre o PT e o PSDB, com o apoio substancial da mídia empresarial, resolveu construir a chamada terceira via. Não deu certo.

A emergência da questão democrática 

“A história se repete pelo menos duas vezes, disse Hegel, e eu acrescento: a primeira como tragédia, a segunda como farsa”, pontuou Marx, no célebre O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, no qual discute o golpe de Estado pelo sobrinho de Napoleão, em 1848, na França.

No Brasil de 2022, a perspectiva da reeleição de Bolsonaro, o endurecimento de seu discurso e o uso desbragado da máquina pública – tanto no Congresso Nacional, pela via do orçamento secreto, e no Executivo, pelo uso descontrolado de recursos públicos promovendo a céu aberto a maior compra de votos da história republicana brasileira – acenderam um sinal de alerta nas forças democráticas.

O primeiro a perceber, pela experiência e tino político, que era preciso alargar o espectro de sua composição político-eleitoral, foi o ex-presidente Lula. Ao sinalizar para uma aliança com o antigo adversário Geraldo Alckmin, Lula, contando com a incompreensão inicial de alguns de seus pares e de aliados do campo progressista, enxergou longe. Com a aliança construída no segundo turno das eleições, Lula desnorteou a extrema-direita e abriu caminho para seu terceiro mandato. Na montagem do governo, ao trazer setores da centro-direita liberal para compô-lo, suscitou em setores à esquerda do espectro político que o presidente estaria recuando de posições históricas.

A presença à porta dos quartéis de recalcitrantes da derrota e viúvas do bolsonarismo trazia, em si, um viés do autoritarismo e golpista. Apelavam para uma solução de força contra a institucionalidade e o desejo da maioria do eleitorado, dirigindo o apelo às Forças Armadas apontava o cenário que, ao escolhê-los como árbitros de contendas políticas, evocando a aplicação do mal formulado artigo 142 da Constituição, assim sendo, vislumbrava-se a expectativa de uma ruptura da ordem, com a consequente intervenção no processo eleitoral e a anulação da vitória de Lula.

A negativa dos militares em retirar os golpistas de suas cercanias, explicada pela presença de vários componentes da chamada “família militar”, ao mesmo tempo que alentara aos recalcitrantes levara aos tenebrosos acontecimentos do 8 de janeiro em Brasília. O sacolejo no Estado de Direito é uma tônica da vida nacional. Soma-se, ao parco entendimento de parte das forças populares do papel estratégico da democracia, para que se promova avanços no injusto e excludente capitalismo brasileiro.

Ainda nos idos de 1962, o intelectual e general brasileiro Nelson Werneck Sodré escreveu em Quem é o Povo no Brasil?:

“O avultamento do problema democrático deriva do fato de que a manutenção das liberdades democráticas permite o esclarecimento do político, e o esclarecimento político permite a tomada de consciência pelo povo, e a tomada de consciência pelo povo permite a execução das tarefas progressistas que a fase histórica exige.

Manter as liberdades democráticas significa, pois, inevitavelmente, ter de enfrentar aquelas tarefas e resolvê-las, segundo a correlação de forças, quando as populares são muito mais poderosas do que as que estão interessadas na manutenção de uma estrutura condenada. Para mantê-la, torna-se indispensável suprimir as liberdades democráticas. O clima democrático asfixia progressivamente as forças reacionárias, que se incompatibilizam definitivamente com ele. Pedem, imploram um governo de exceção, um golpe salvador, uma poderosa tranca na porta a impedir a entrada do progresso”.

As variadas conceituações sobre o governo Bolsonaro: cesarismo, fascismo, bonapartismo praticadas pela academia, apesar de suas diferenças, se congregam em reconhecer o caráter ditatorial e antidemocrático dele e de seus pares. A insígnia que os move – Deus, Pátria e Família – foi a mesma usada por Benito Mussolini e as tropas fascistas na “marcha sobre Roma”. O desprezo pelos diferentes, a intolerância e a xenofobia dão o fecho da caracterização. A agressividade e o universo paralelo que se criou no entorno do bolso-fascismo veio para ficar.

As esquerdas e o conjunto do campo progressista enfrentam com esses setores uma guerra híbrida de narrativas. Precisamos entender a razão dialética que nos fará acumular forças para continuar o combate contra a regressão reacionária. A batalha não será vencida na retórica pura e simples, e sim com a agregação de largos setores populares e das camadas médias, resistentes ao atraso. São estágios variáveis: um tempo a guerra de posições, em outro a guerra de movimento, como acertadamente propugnou o dirigente político e filósofo italiano Antônio Gramsci.

Para isso, há que se ter a compreensão de que a democracia é um valor universal, como já propugnava, no final dos anos 1970, o filósofo baiano Carlos Nelson Coutinho, não uma etapa para a conquista do poder. É essa vacilação ideológica, neopositivista, combinada com a má compreensão da dialética, que levou a esquerda brasileira a seguidas derrotas.

Existe insígnia mais neopositivista/idealista do que “o mundo marcha inexoravelmente para o socialismo”? Essa visão determinista presidiu e ainda preside vários segmentos do campo progressista. É essa miopia ideológica que nos faz ano após ano, décadas após décadas, a andar em círculos.

A esquerda brasileira precisa construir um horizonte que permita vislumbrar um futuro diferente do barbarismo neoliberal. Esse futuro passa pela solidariedade humanista e ecologicamente sustentável do socialismo democrático.

Essa construção pressupõe o alargamento da democracia e a inclusão de milhões de brasileiras e brasileiros que vivem completamente à margem da cidadania. Uma democracia substantiva com perspectivas de alternância nos poderes e amplamente representativa e participativa.

 

Alberto Cantalice é membro do Diretório Nacional do PT e diretor da Fundação Perseu Abramo