Cultura

A centralidade da cultura nas políticas públicas precisa deixar de ser um mote circunscrito apenas à comunidade cultural e se irradiar para a sociedade e as outras áreas do governo

Na atualidade, a área da cultura dispõe de um dos maiores orçamentos que já obteve em sua história.Foto: Reprodução

A cultura brasileira vive hoje situação paradoxal. Os tempos sombrios atacaram o país desde 2016 e se tornaram mais violentos a partir de 2019. As agressões continuadas às liberdades, à cultura, ao orçamento cultural, às instituições da cultura; o retorno da censura; as perseguições aos artistas, intelectuais e fazedores de cultura; o deliberado desmantelamento do Ministério da Cultura e dos seus organismos; a extinção do ministério em 2019; a destruição de políticas, programas e projetos culturais; a pandemia e o pandemônio instalados no país: enfim, o constante e sistemático ataque ao campo cultural, em todas as suas dimensões, por meio da guerra cultural bolsonarista declarada, colocaram a cultura brasileira em situação de profunda gravidade.

O retorno da democracia, ainda frágil no Brasil; a reconquista das liberdades; o fim da censura, das perseguições e das agressões; a refundação do Ministério da Cultura e de suas instituições vinculadas; a reconstrução das políticas culturais; a revitalização dos canais de participação e diálogo do ministério com a sociedade civil; a recomposição dos orçamentos da cultura, derivada da vitoriosa luta da comunidade cultural e da sensibilidade de setores do parlamento nacional, configurada na expressiva conquista das leis Aldir Blanc I e II e Paulo Gustavo, em um contexto nacional, ferido por intensas medidas anticulturais e pela tentativa de imposição de culturas autoritárias: toda essa constelação configura a outra faceta da circunstância paradoxal em que a cultura brasileira vive na atualidade.

Contexto paradoxal com inusitadas composições. Como imaginar que, em instantes tão duros e anticulturais, fosse possível a conquista de um dos maiores orçamentos que a cultura já obteve no Brasil? A história e vida efetivamente não são para principiantes. Nada de visões lineares, nem simplistas. Contradições e paradoxos explodem em todo tempo e lugar na sociedade e na sua dinâmica. A cultura brasileira vivência na atualidade um destes instantes contraditórios e paradoxais. Intensas depressões e possibilidades. O desafio não é grandioso para a sociedade, para a comunidade cultural e para o novo Ministério da Cultura.

No contexto de enormes dificuldades e potencialidades, em especial, a comunidade cultural e o Ministério da Cultura têm que ser capazes de superar a herança maldita do desmonte anterior e, simultaneamente, colocar a cultura brasileira em um patamar condizente com sua qualidade e quantidade. Por óbvio, que o florescimento da cultura demanda tempo e não se pode esperar resultados em prazos tão imediatos. Trata-se então de criar as condições satisfatórias, em termos de institucionalidade, de políticas culturais e de recursos, para que os caminhos para o florescimento da cultura estejam bem nutridos. Tal desafio não é nada desprezível. Ele exige da comunidade cultural e do ministério: perspicaz atenção à conjuntura, sensibilidade, inteligência, sagacidade, criatividade, mobilização coletiva, capacidade de iniciativa e competência de articulação política. As exigências são múltiplas, como os desafios instalados no cenário atual.

O enfrentamento do desafio implica estar totalmente afinado com a refundação da democracia no Brasil, condição básica para a sociedade brasileira sair do atoleiro em que o golpe e o neofascismo ultraneoliberal atiraram o país. A atuação da comunidade cultural e do Ministério da Cultura deve estar sintonizada com a necessidade maior da sociedade brasileira: a refundação da democracia em bases amplas e substantivas. O ministério e a comunidade não apenas têm de produzir radicais políticas culturais democráticas, mas buscar incessantemente contribuir para o desenvolvimento e a consolidação de uma cultura (política) democrática no Brasil. A debilidade da cultura (política) democrática coloca em constante risco a historicamente frágil democracia brasileira. Compreender que a conexão entre cultura e democracia é vital para a sociedade e para a cultura e sintonizar as políticas culturais com tal compreensão é condição fundamental para um atento enfrentamento dos desafios presentes.

Colocar a questão democrática no centro das políticas culturais, implementadas pelo ministério e assumidas pela comunidade cultural, não apenas cria sintonia fina entre eles e a necessidade crucial da sociedade, mas abre um amplo universo de diálogos possíveis para a cultura, em sua transversalidade constitutiva, com diversos campos sociais e áreas de governo, possibilitando à cultura transitar de sua região, quase sempre periférica nas políticas públicas, para localização próxima do centro do poder. A centralidade da cultura nas políticas públicas precisa deixar de ser um mote apenas circunscrito à comunidade cultural e se irradiar para a sociedade e as outras áreas do governo. Nessa perspectiva, a articulação entre cultura e democracia, ao permitir e facilitar as conexões transversais da cultura com outras áreas da sociedade e do governo, parece ser um excelente caminho para transformar em realidade a tão sonhada e pronunciada centralidade da cultura.

A conversa sobre os significativos desafios propostos por tal conjuntura, contraditória e paradoxal, pode trilhar muitas narrativas. Impossível falar sobre todos elas. Mas, uma delas, pelo inusitado da situação, merece especial atenção. Trata-se do orçamento hoje conquistado para a cultura a partir das intensas e improváveis lutas no ambiente altamente anticultural da gestão Messias Bolsonaro. Na atualidade, a área da cultura dispõe de um dos maiores orçamentos que já obteve em sua história. Paradoxal ele ter sido conquistado em contento tão anticultural. Neste âmbito, o desafio hoje torna-se crucial. Como gastar bem os recursos, de modo federativo, envolvendo união, estados, Distrito Federal e municípios, e com eles nutrir políticas culturais e a diversidade das culturas brasileiras? Deve-se esperar aqui um excelente desempenho para que a cultura continue a ter recursos cada vez maiores, para que o florescimento das culturas brasileiras seja mais amplo e rico, a fim de animar a revolução cultural democrática, que o Brasil tanto necessita para sua transformação em um país mais igualitário, diverso, plural, solidário, fraterno, soberano, criativo e democrático.

Antonio Albino Canelas Rubim é pesquisador e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA)