Política

No dia Dois de Julho, os baianos, como fazem há quase 200 anos, irão celebrar a independência do Brasil na Bahia, em uma das mais efusivas celebrações político-culturais do país

No bicentenário, as lutas contra as tiranias demonstram toda sua atualidade. Foto: Reprodução do Portal Guia Negro

Vivemos tempos de bicentenários das independências nacionais. Comemorações pipocam em muitos países. Enquanto as celebrações latino-americanas, em geral, já ocorreram, no Brasil tal temporada se abriu apenas em 2022, no dia Sete de Setembro, data entronizada como marco da independência, depois do esquecimento da disputa com outras datas. Não cabe no âmbito do texto tratar das competições ensejadas, mas tão somente assinalar que o Sete de Setembro, com seu grito de independência ou morte no riacho do Ipiranga, é uma construção histórica, não qualquer realidade factual, que se imponha sem discussões e disputas.

As datas históricas são inventadas e fabricadas na e pela história, a exemplo das tradições, como ensinou Eric Hobsbawm. Elas podem expressar simbolicamente processos históricos de prazos mais longos e/ou produzir esquecimentos de acontecimentos, personagens e coletivos destoantes com a história imposta pelos segmentos dominantes, que emolduram a vida nas sociedades de classe. As datas conjugam rememorações e esquecimentos.

O Sete de Setembro teceu em sua construção uma história contaminada por uma versão paulista de independência. Tal visão histórica se assenta no culto de heróis, como o controverso D. Pedro I; na centralidade do episódio do grito do Ipiranga e na afirmação do caráter pacífico da independência. Uma transição pelo alto, sem participação popular, quase em família, sem conflitos e lutas entre povos fraternos, os quais teriam conseguido se separar amigavelmente. Tudo sob o manto do herói destinado à independência.

A potência da imposição se expressa na assimilação, quase senso comum, do quadro de Pedro Américo, Independência ou Morte ou O Brado do Ipiranga. Apesar de ter sido pintado em 1888, 66 anos depois da ocorrência, ele tem sido fabulado como retrato fiel do instante da independência. As licenças poéticas que conformam o quadro são muitas: cavalos em lugar de mulas, animais usados para viagens longas; vestes de honra em vez de vestuário mais adequado aos percursos maiores; casa ao fundo onde não existia nada e inspiração demasiada no quadro do francês Ernest Meissonier, intitulado Friedland (1807). Licenças poéticas próprias da imaginação artística e de seu processo de recriação. A arte não é mera repetição do mundo da vida.

A independência viveu celebrações em datas redondas complicadas. Em 1922, a oligárquica república velha, no centenário da independência, desejou mostrar ao mundo um pretenso e arcaico Brasil moderno, através da exposição internacional. Em 1972, a ditadura civil-militar tentou mobilizar nacionalismos, tipo “Brasil, ame-o ou deixe-o”, por meio de obras faraônicas, como a rodovia Transamazônica; da Minicopa, realizada a reboque da euforia tricampeã conquistada na Copa do Mundo de Futebol em 1970, e de desfiles necropolíticos, como o translado do corpo de D. Pedro I para o Brasil do Ipiranga, antecedido por sua exibição em cortejos públicos, realizados em inúmeras cidades brasileiras.

No ano passado, novamente se recorre patrioteiramente ao corpo de D. Pedro I. Agora o empréstimo de seu coração para se prestar a cerimônias do bicentenário. Por testamento, o coração foi doado por D. Pedro I do Brasil e IV de Portugal à cidade do Porto. Novamente um expediente macabro buscou mobilizar nacionalismos e conseguir apoios políticos para a gestão do capitão genocida. A história se repete como farsa.

Fora isso, quase nada aconteceu no bicentenário brasileiro. A proposição de Eduardo Lourenço de que o Brasil e os brasileiros desconsideram a história parecia se confirmar. Diferente de muitos vizinhos latino-americanos, que planejaram anos e comemoraram exaustivamente seus bicentenários, a gestão Messias Bolsonaro, fora a utilização tétrica do coração de D. Pedro I, quase se esqueceu dos 200 anos. Mas eles não passaram despercebidos por conta de outras macabras ocorrências.

Talvez pior que o esquecimento, nos Sete de Setembro Messias Bolsonaro buscou concretizar sua obsessiva e maior obra. Com esse objetivo, manipulou desfiles, sempre militares e sem participação da sociedade, a não ser pelo Grito dos Excluídos, anexado ao cortejo por meio da luta popular, desde 1995. Tentativas de instrumentalização da data se repetiram, especialmente, em 2021 e em 2022. O apogeu da celebração do bicentenário seria a coroação de mais um golpe contra a frágil democracia brasileira. Ambição e obra maior bolsonarista, o golpe ameaçou se conjugar umbilicalmente com o Sete de Setembro do segundo centenário.

Em 2023, outro bicentenário pode ser anunciado. Diferente da versão do grito do Ipiranga paulista, antes e durante os anos do processo de independência, existiram lutas no Brasil. Embates aconteceram em diversas regiões do país, a exemplo da Bahia, Piauí, Maranhão, Grão-Pará e província Cisplatina. Em lugar da independência Ipiranga, tivemos muitas independências do Brasil. Ou melhor, como intitulou perspicazmente o historiador Luiz Henrique Dias Tavares em seu estudo sobre o caso baiano: “independência do Brasil na Bahia”. Muitas independências do Brasil ecoaram em diferentes territórios pelo país. Urge que sua invisibilidade, produzida pela imposição unilateral do Sete de Setembro, seja superada. Um Brasil diverso e plural deve emergir inclusive no seu passado, em luta e disputa.

As independências do Brasil em diversas terras brasileiras precisam se tornar visíveis para que se entenda a complexidade do processo de independência, seus avanços e limitações, suas rupturas e continuidades, seu caráter de lutas, que desafiam a visão apagadora e pacificadora de conflitos, que os dominantes tentam impor à vida nacional. O país sem conflitos nada mais é sempre paz de cemitérios, onde os vencidos foram desaparecidos e soterrados.

Que as mais distintas modalidades de celebrar sejam acionadas para rememorar lutas, vitórias e derrotas. Vida tecida por tensões vitais, cheias de riscos e de imaginações. Um bicentenário virtuoso não pode se contentar com a repetição das narrativas dominantes, sem mais e sem crítica. Ele mobiliza forças diversas e plurais que trazem para a cena novas maneiras de olhar o passado, agir no presente e criar o futuro.

No dia Dois de Julho, os baianos mais uma vez, como fazem há quase 200 anos, irão celebrar a independência do Brasil na Bahia, agora bicentenária, com seu desfile cívico e seu povo participando em festa, em uma das mais efusivas celebrações político-culturais que acontecem em todo país. Baianos e brasileiros, iremos cantar e gritar mais uma vez: “Com tiranos não combinam. Brasileiros, brasileiros corações!”. Inspirado refrão dos combates celebrados e acolhidos pelo hino do Dois de Julho, hoje hino oficial da Bahia. No bicentenário, as lutas contra as tiranias demonstram toda sua atualidade.

Antonio Albino Canelas Rubim é pesquisador e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA)