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Diversas vezes, o presidente Lula mencionou a “misoginia” como a raiz das violências e a desigualdade de gênero como “a mais grave” entre as desigualdades

Cerimônia de celebração do Dia Internacional das Mulheres, no Palácio do Planalto, quando foi anunciada a retomada do Programa Mulher Viver sem Violência. Foto: Ricardo Stuckert/PR

Desde as reuniões da equipe de transição do então futuro governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sabia-se – e sentia-se nos territórios – que o desmonte de políticas públicas, em especial na área de políticas para as mulheres, havia sido forte. Porém, a profundidade e os impactos negativos foram vistos integralmente após a posse do presidente Lula e da ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, na primeira semana de janeiro de 2023.

Entre 2015 e 2022, a concepção de políticas para as mulheres sofreu perdas em orçamento, transversalidade, garantia de direitos e autonomia. Prevalecia a visão familista, em que a valorização, apoio e inclusão nos programas e políticas públicas vinculava as mulheres exclusivamente ao papel de mãe e cuidadora.

No início de 2023, encontramos os poucos projetos de construção e implementação de serviços de atendimento às mulheres em situação de violência totalmente dependentes de emendas parlamentares, sem orçamento próprio do Poder Executivo.

Cabe ressaltar que isso aconteceu em um ambiente de incentivo e maior liberação ao armamento da sociedade civil, à misoginia – o ódio contra as mulheres –, ao racismo e ao preconceito contra as pessoas LGBTQIA+. Esse ódio foi vociferado pelos ultraconservadores, elegendo como inimigas as mulheres que não estivessem dentro do estereótipo preconizado por eles.

Do ponto de vista institucional, a estrutura do antigo governo expressava essa hostilidade e a subordinação das políticas para as mulheres a uma pasta genérica e esvaziada.

Em pleno século 21, a reconstrução da agenda dos direitos das mulheres, compreendida em toda a sua diversidade, exige do atual governo uma tarefa discursiva, simbólica, mas também prática e estrutural.

A situação que herdamos é dramática: a cada duas mulheres que foram assassinadas no Brasil, uma foi por arma de fogo. Entre os anos de 2021 e 2022, o aumento dos feminicídios superou 6%. Homicídios dolosos, com a clara intenção de matar, aumentaram 1,2%. Agressões domésticas, 3%. As ameaças contra as mulheres cresceram mais de 70%. O aumento dos casos de assédio sexual chegou a 50%, e os de importunação sexual, 37%.

Estupros de vulneráveis contra crianças com idade entre zero e quatro anos aumentaram 10%, enquanto os casos contra crianças entre 10 e 13 anos cresceram 33%. Precisamos enfrentar e reverter essa chaga e mudar a mentalidade de ódio às meninas, que têm marcado suas vidas e o futuro e o ódio às mulheres que tem ceifado seus direitos sexuais e reprodutivos.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2022 foram 74.930 mil estupros, sendo que mais da metade – 56.820 mil – são de pessoas vulneráveis, ou seja, com menos de 14 anos. A maioria meninas e pessoas negras, sendo 88,7% meninas e 11,3% meninos.

Nesse contexto, é importante frisar que a referência na área, a Central de Atendimento à Mulher - Ligue 180, quando lá chegamos, não apenas tinha equipes diminutas, como havia recebido a tarefa de atender ligações sobre assuntos diversos, muitos sem conexão com a atividade para a qual havia sido criada. A equipe registrava, mas não orientava e nem acompanhava os casos de violência contra mulheres. Fizemos a capacitação das atendentes, lançamos o atendimento nacional e internacional por WhatsApp pelo número (61) 9610-0180 e atualmente estamos em processo de licitação a fim de realizar uma profunda reestruturação e qualificação deste importante serviço, através da ampliação do atendimento, visando que seja humanizado, acolhedor e integrado à rede de serviços de enfrentamento a violência de gênero no país.

O Brasil está voltando a respirar e finalmente temos um Ministério das Mulheres. Temos trabalhado com os eixos de Igualdade e Respeito para todas as mulheres, por meio de quatro secretarias: a Secretaria Executiva, que atua para que trabalhemos todas de forma integrada; a Secretaria Nacional de Autonomia Econômica e Política de Cuidados (Senaec); a Secretaria Nacional de Articulação institucional, Ações Temáticas e Participação Política (SENATP); e a Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência contra Mulheres (Senev), a qual tenho a responsabilidade de estar à frente.

Ademais, mantemos e estamos aprofundando também o estratégico e fundamental diálogo e integração com os demais ministérios do governo federal, numa concepção de transversalidade para a elaboração e execução dos programas e das políticas públicas.

Antes de completarmos os primeiros 100 dias de governo, já no 8 de março de 2023, Dia Internacional das Mulheres, foram apresentados cerca de trinta projetos e programas transversais, realizados em parceria com três dezenas de ministérios e outros órgãos públicos federais.

Entre essas iniciativas, tivemos a apresentação ao Congresso Nacional, pelo presidente Lula, do Projeto de Lei 1.085/2023, que torna obrigatória a igualdade salarial para homens e mulheres que exercerem funções iguais no mundo do trabalho, posteriormente aprovada pelos parlamentares, tornando-se a Lei 14.611/2023 – a primeira e única proposta pelo governo federal e sancionada pelo presidente da República neste ano.

A igualdade salarial, assim como uma política de cuidados e igualdade integral no mundo do trabalho, é, desde o início, uma forte demanda das mulheres. A consolidação da lei da igualdade salarial será construída a partir da regulamentação, em um processo coletivo, envolvendo empresas e organizações trabalhistas. A organização popular está no cerne das políticas do nosso governo. A Senaec coordena, junto com o Ministério do Trabalho, um grupo de trabalho interministerial sobre o tema da igualdade no trabalho, pelo qual desenvolverá um trabalho transversal e interfederativo.

A discriminação e o assédio sexual no trabalho, sejam no setor público ou privado, também vem sendo encaradas sem tergiversação. Está em elaboração uma Política Nacional de Prevenção e Enfrentamento sobre o tema, com um Grupo de Trabalho Interministerial, coordenado pelo Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, incluindo o Ministério das Mulheres e outras pastas. Para reforçar esse objetivo de enfrentar o problema na administração pública, a Advocacia Geral da União (AGU), por meio de parecer aprovado pelo presidente Lula, fixou pena de demissão aos servidores nos casos em que, após os procedimentos disciplinares e investigativos, houver comprovação da ocorrência de assédio sexual.

Na área de enfrentamento à violência, seis novas leis foram sancionadas em apenas nove meses, no sentido de facilitar o acesso das mulheres à Justiça, inseri-las no mercado de trabalho e amparar as famílias.

No dia 14 de setembro, o presidente Lula sancionou a Lei 14.674, que prevê auxílio-aluguel a mulheres em situação de violência e vulnerabilidade social. Paralelamente no caminho de atuar com rigor junto às famílias que passam pela situação da violência de gênero, os/as órfãos do feminicídio – crianças e adolescentes de famílias de baixa renda que perderam suas mães para o machismo – receberão pensão paga pelo Estado até completarem 18 anos.

No âmbito do Executivo, tivemos uma ação fundamental, a retomada do Programa Mulher: Viver sem Violência (Lei instituída pelo Decreto 11.431/2023). Entre as diversas ações do decreto está a implantação da Casa da Mulher Brasileira, que o golpe que tirou do poder a então presidenta da República Dilma Rousseff, em 2016, e o período que se seguiu frearam. Atualmente temos sete casas em funcionamento. Em parceria com o Ministério da Justiça e Segurança Pública, o Ministério das Mulheres irá construir e colocar em funcionamento outras 44, boa parte delas já com o processo de execução iniciado.

As casas oferecem atendimento multidisciplinar, multiprofissional e humanizado, e possuem projetos arquitetônicos voltados à multifuncionalidade, para abrigar num só local os diferentes serviços públicos que existem para atender as mulheres em situação de violência, com discrição, dignidade e eficiência.

Além da construção física das Casas da Mulher Brasileira, algo por si só harmônico, há também o envolvimento e grande articulação com os entes que a compõe: Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam), Promotoria Pública, Defensoria Pública, Juizado especializado no enfrentamento à violência doméstica e familiar, alojamento e atendimento psicológico e social, assim como a promoção da autonomia econômica. O poder público atua de perto nos territórios com os quais firmamos acordo para sediá-las e administrá-las, o que se reflete na aproximação das populações com o projeto.

Neste terceiro governo Lula, o Ministério das Mulheres inova, com a criação das Casas da Mulher Indígena, que terão seis unidades, uma em cada bioma brasileiro, objetivando atender e proteger as mulheres indígenas, diante das especificidades das diversas violências sofridas.

O trabalho de fechar parcerias com prefeituras e governos estaduais exige articulação política entre concepções diferentes, visando o entendimento quanto ao emprego desses aparelhos públicos dentro de uma visão de transversalidade operativa e de um conceito emancipatório das mulheres que ali forem atendidas. Em seguida, outro desafio: envolver de forma objetiva a participação e controle social na aplicação da política, de maneira a barrar seu uso para outros objetivos, a despeito dos governos de turno.

Essas políticas têm sido debatidas com o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM). Ademais, nada disso está descolado do diálogo político com os executivos municipais e estaduais, pelo contrário. Exemplo disso é o fortalecimento do Fórum dos Organismos de Políticas para as Mulheres (OPM’s), que são as secretarias municipais e estaduais de políticas para as mulheres, espaço permanente e fundamental de fortalecimento e implantação de todas as políticas aqui citadas, sob coordenação da SENATP, no Ministério das Mulheres. No final de setembro, o ministério anunciou um edital de R$ 4,2 milhões com o intuito de estruturar e fortalecer as secretarias estaduais.

Outra construção essencial em andamento é a do Pacto Nacional de Prevenção aos Feminicídios, abrangendo ações e metas de vários ministérios, prefeituras e governos estaduais, prevendo a implantação de ações de prevenção primárias, secundárias e terciárias. O objetivo é enfrentarmos a grave e dramática situação atual de violência de gênero por meio de um grande e unificado acordo.

Há diversos outros exemplos, além dos já citados, de ações anunciadas e em processo de execução, como as apresentadas durante a Marcha das Margaridas, em agosto, envolvendo a futura aquisição de veículos automotores adequados para o atendimento in loco das mulheres rurais, que vivem em territórios afastados dos grandes centros, assim como a futura aquisição de barcos para atender populações ribeirinhas; e as que envolvem o grave problema da violência política contra candidatas, parlamentares eleitas e ativistas, a partir do Grupo de Trabalho Interministerial coordenado pelo Ministério das Mulheres e que será responsável pela criação de uma Política Nacional sobre o tema.

Enfrentar a violência e a desigualdade de gênero tem sido uma perseguição constante do presidente Lula. Em diversos discursos pelo Brasil e pelo mundo, o líder político já mencionou a “misoginia” como a raiz das violências e a desigualdade de gênero como “a mais grave” entre as desigualdades. Ter as mulheres no centro de programas do governo federal mostra seu comprometimento com essa parcela da população – representadas pela maioria (52%) do total de brasileiros. Para citar apenas alguns exemplos de programas que priorizam e impactam fortemente a vida de mulheres: Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, Quintais Produtivos, Desenrola Brasil, Proteção e o Promoção da Saúde e Dignidade Menstrual, Mais Médicos, Programa Nacional de Acesso ao Ensino e Emprego e o fundamental Plano Brasil Sem Fome.

Igualmente importante e potente, e para nós essencial, é a articulação com os diferentes movimentos sociais feministas, de mulheres, sindicais e demais organizações da sociedade civil, parlamentares, empresas e entidades da cultura e do esporte.

Desses diálogos, grupos de trabalho, conselhos e iniciativas necessárias para a reconstrução das políticas para as mulheres, temos começado a colher frutos, transformados em políticas públicas atuais ou futuras.

A luta é também por transformação de mentalidades, cuja missão principal deve ser a de derrotar a misoginia, o machismo, o racismo e os múltiplos preconceitos e ódios de gênero e sexuais. É nosso desejo a construção de uma maioria afinada com o feminismo, a garantia de direitos e o respeito às mulheres, e isso só se faz com o diálogo permanente com as lutas sociais organizadas.

Desta forma estamos construindo uma grande mobilização nacional, envolvendo diversos setores e movimentos que culminará no lançamento da “Marcha contra a Misoginia” no mês de outubro.

Denise Motta Dau é assistente social com mestrado em saúde coletiva. Foi Secretária Municipal de Políticas para as Mulheres de São Paulo de 2013 a 2016. É secretária Nacional de Enfrentamento à Violência contra Mulheres do Ministério das Mulheres desde janeiro de 2023