Política

Maestri não suporta a ideia de a Abolição ter sido “negócio de brancos”. Visão que desconsidera a dinâmica intensa da luta de classes contra uma formação social tão violenta como a escravidão

Pintura de Johann Moritz Rugendas (1802-1858) retratando o porão de um navio negreiro. Reprodução

A história não tem linha reta. Sempre defendemos essa visão quando algum interlocutor fala das dificuldades da luta, inevitáveis. Voltamos a isso, depois de termos lido e relido texto de Mário Maestri, publicado em A Terra É Redonda no dia 13 de maio deste ano sob o título “A revolução social vitoriosa do Brasil”, e ele se referia à luta abolicionista, cujo ápice se deu em 1888. Maestri recupera visão histórica abandonada por amplas correntes da esquerda brasileira, assim como por vários segmentos do movimento negro a pretender diminuir a importância do fim da escravidão no Brasil – sim, ali se deu o fim da escravidão como resultado de uma luta extraordinária das pessoas escravizadas, dos negros e negras livres, dos abolicionistas, de milhares seduzidos pela luta antiescravista. É um texto fundamental, a repor a verdade histórica, a provocar quem queira pensar de modo menos raso sobre tal acontecimento histórico.

Que tal a ideia de a Abolição ter sido resultado de uma revolução social vitoriosa, como já dito no título do autor? A única revolução social vitoriosa, nas palavras do autor.

Há um cacoete de parte de nossa esquerda: diminuir as conquistas históricas, sempre colocar um senão em cada passo dado pelo nosso povo. A cada avanço na trincheira da guerra de posição, à Gramsci, aquela parcela da esquerda registra o quanto ainda há por fazer, e usualmente desmerece as conquistas. O quanto por fazer, sempre de acordo, necessário sempre lembrar, porque a história não tem linha reta. E no caso da escravidão brasileira, um conjunto de circunstâncias e singularidades a tornam tanto na compreensão da sua dimensão quanto na superação das suas consequências, mais desafiadora. Afinal, para o Brasil vieram a maioria dos escravizados de todo o tráfico negreiro, algo em torno de 5 milhões de seres humanos. Além do que, por aqui a escravidão foi das duradouras, quase quatrocentos anos, deixando marcas e sequelas que ainda levarão tempo a serem purgadas. No entanto, cabe também lembrar: o Brasil, de modo especial, não é país de rupturas bruscas, o povo não é dado a dar murros em ponta de faca. Nossa história tem sido marcada por “transições por cima”, e isso independe de quaisquer voluntarismos. Talvez aconselhável recorrer a um Carlos Nelson Coutinho para entender isso.

Aí, quando nos deparamos com um acontecimento como a Abolição, um episódio vitorioso de nossa história, nos pomos a lamentar o não-realizado. Volta e meia nos deparamos com análises em torno da anistia de 1979, e com as restrições em relação a ela. Foi, e é preciso dizer alto e bom som, extraordinária conquista. Fruto de significativo movimento, senão de amplas massas, movimento a exigir anistia ampla, geral e irrestrita. Momento especial em nossa história, de entusiasmo, de alegria, de comemoração: volta de exilados, gente saindo das prisões, notáveis lideranças chegando, Arraes, Prestes, Brizola, marco para a retomada da democracia, a surgir, de modo mais nítido, em 1985, e mais ainda, com a Constituição de 1988, um século depois da Abolição, sintomaticamente.

Assim, a história. Passo a passo, avanços, mais lentos ou mais rápidos, nas trincheiras, guerra de posição, tão evidente, e tão presente, inclusive atualmente: o presidente Lula, com toda sua sabedoria e perspicácia, tendo de equilibrar-se num presidencialismo de coalizão, com maioria conservadora no Congresso, obrigado a ceder para continuar a exercitar, no limite, políticas públicas destinadas a enfrentar nossa obscena desigualdade.

Quando pensamos na derrota da ditadura, sempre nos lembramos do terror, dos assassinatos, desaparecimentos. E cabe lembrar, jamais esquecer para nunca mais repetir. Ela, no entanto, não foi derrotada pela luta armada – nesta, fomos derrotados, implacavelmente. Fomos esmagados. Foi derrotada pela reconstrução das lutas do povo, a partir de meados dos anos 1970, uma reconstrução cotidiana, lentamente, luta democrática, até culminar, ganhar velocidade e amplitude na campanha das Diretas e desaguar na Assembleia Nacional Constituinte. A campanha das Diretas, derrotada, foi a representação evidente da força das ruas, a demonstrar a inevitabilidade do fim do regime militar, acontecido em 1985.

Quisermos pensar em revolução, e hoje é palavra pouco utilizada, teremos de repensar nossa história, nossas lutas, não desprezá-las porque parte indissociável da caminhada em busca da liberdade, da democracia, da igualdade, do socialismo, outra palavra proscrita do nosso dia a dia. É justo pensar o passo adiante. Essencial, no entanto, ter apreço pelo tanto já conquistado, com enorme sacrifício. Houve tempo de a palavra revolução ocupar nossos textos, nossos documentos. Povoava nossas preocupações. Queríamos mudar o mundo, colocar outras estruturas no lugar das velhas. Superar o capitalismo. Chegar ao socialismo. O pensamento alcançava primeiro o conjunto, depois o singular. A revolução abarcava o todo, pensava as classes em luta, e nós a imaginávamos liderada pelo proletariado, o sujeito pensado por Marx, cuja situação era a de não ter nada a perder salvo os grilhões a mantê-lo preso à engrenagem cruel do capitalismo. Mas, a história não tem linha reta, e estamos sob outro quadro, outras classes trabalhadoras, a reclamar muito de nossa imaginação e capacidade de análise.

Heroísmo prosaico de cada dia

O povo brasileiro lutou. Às vezes, tais os recortes feitos, tal o desprezo por tantas lutas, tal o esforço de colocar cada movimento numa “caixinha” particular, tem-se a impressão de paralisia por parte de nossa gente, de nossas classes sociais, ou apenas a existência de lutas particulares, não inscritas na dinâmica geral das classes trabalhadoras. Vitórias expressivas como a da Abolição, voltamos a Maestri, foram raras. Mas, nas lutas, nas conquistas parciais, o povo brasileiro ia, vai acumulando forças. É reflexão a ser feita. Aprendizado a ser absorvido, deglutido. Parcelas da nossa esquerda pretendem sempre emprestar à nossa caminhada uma ideia de rupturas bruscas, e se tais rupturas não ocorrem, e não ocorrem mesmo, argumentam sobre as derrotas, superestimam-nas, e agem como se tivessem de começar do zero, e nunca é do zero. Há sempre acúmulo, correlação de forças se modificando, apesar de não acontecer a ruptura tão almejada. O céu está longe.

Gostamos muito, muito mesmo, da reflexão presente em livro de João José Reis e Eduardo Silva. É reflexão em torno da luta dos escravos, Negociação e Conflito. Certamente tal reflexão assusta parcelas de nossa esquerda tão dada a rupturas, teoricamente. Os dois autores constatam: os escravos negociaram mais do que lutaram abertamente contra o sistema. Há um choque na primeira leitura. E João José Reis é dos autores mais férteis na análise das grandes lutas das multidões escravizadas. Tratou, por exemplo, em alentado livro, da Revolta dos Malês, ou da pouco conhecida greve do transporte em Salvador, em 1857. Toda a locomoção na capital baiana era feita por braço escravo. Digo isso porque alguém apressado pode ter a pretensão de qualificá-lo de modo simplista como um conciliador, e não como rigoroso intelectual, atento às movimentações do nosso povo. Conciliadores, quando necessário, eram os escravos, por absoluta necessidade, por sabedoria política, pela análise sábia da correlação de forças, capacidade de buscar improváveis alianças. Conciliadores, se a palavra couber, queria dizer capazes de sempre buscar aliados para fazer valer os objetivos deles.

Eram os escravos praticantes, como dizem os dois autores, do heroísmo prosaico de cada dia. Acho forte, bonita, verdadeira a imagem. Heroísmo prosaico de cada dia. Recorrem à historiadora Sandra Graham, precisa na análise: “apesar das chicotadas, das dietas inadequadas, da saúde seriamente comprometida ou do esfacelamento da família pela venda, os escravos conseguiram viver o seu dia a dia”. Milhões de pessoas escravizadas tocavam a vida, seguiam no duro cotidiano, e buscavam espaço, fazendo alianças para enfrentar a dureza da existência. “Relativamente poucos” – ela dirá – “assassinaram seus senhores, ou participaram de rebeliões, enquanto que a maioria, por estratégia, criatividade ou sorte, ia vivendo da melhor forma possível”. Os escravos, no Sul dos EUA, costumavam dizer: “os brancos fazem como gostam; os pretos, como podem”.

Heroísmo prosaico de cada dia.

Construção cotidiana.

Passos para a libertação.

As pessoas escravizadas jamais hesitaram em construir alianças com os brancos quando eles se abriam para tanto. Exemplo dessa disposição, ocorreu no processo de construção da Assembleia Nacional Constituinte em 1988, quando por meio da unidade de intelectuais, lideranças sociais, artistas e parlamentares, muito deles conservadores, o movimento negro brasileiro firmou uma aliança política de tal ordem com os não negros que resultaram nas três maiores vitórias alcançadas no pós-Abolição. Essas conquistas serviram e servem, não só para combate ao racismo, assim como para a promoção da igualdade racial, além de civilizar o Brasil para a contemporaneidade. Falamos do estabelecimento do racismo enquanto crime inafiançável, posteriormente consolidada pela Lei Caó (Lei 7.716/89), o reconhecimento das terras remanescentes de quilombos (Art.68 da Constituição Federal) e a criação da Fundação Cultural Palmares (Lei 7.668/88).

O caso da Fundação Palmares merece uma atenção especial. Foi e continua sendo a primeira e única instituição do Estado brasileiro que possui na sua missão “a finalidade de promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira”, com o objetivo da inclusão plena dos negros na sociedade brasileira. Não fosse isso, já teria desaparecido, pois não faltaram tentativas, para sua supressão, a exemplo do que ocorreu no governo Fernando Collor de Mello, assim como no governo protofascista de Jair Bolsonaro.

Também naquele momento histórico, parcela significativa da esquerda e do movimento negro brasileiro quiseram reduzir a importância dessas conquistas e acusavam o movimento que fora vitorioso de estar sendo cooptado pelo aparelho de estado. Em verdade o que garantiu essas importantes vitórias foi exatamente a capacidade do movimento negro em conseguir articular de José Sarney a Mãe Stella de Oxossi, de Alberto da Costa e Silva a Abdias do Nascimento, de Fernando Henrique Cardoso a Kabengele Munanga, tendo como eixo central a inclusão plena dos negros nos novos marcos sociais que a Constituinte anunciava. 

Hoje, essas conquistas cumprem papeis essenciais tanto no combate ao racismo como na promoção da igualdade racial e tem servido de exemplo para as novas gerações de que a luta pela igualdade racial no Brasil não é um rol de derrotas, como muitos desejariam que fosse. Além disso, ainda temos um elemento singular e positivo a ser agregado, de termos introduzido a cultura como elemento estratégico para o desenvolvimento não só da nossa luta contra o racismo, como da luta da sociedade brasileira por democracia.

Pensamos: dessas reflexões podemos e devemos tirar lições, não restritas ao período da escravidão. É da formação do nosso povo. Não dar murro em ponta de faca à toa, negociar, fazer alianças, fazer política, e isso nunca quis dizer ausência da luta de classes, tão dura no Brasil. É demonstração da capacidade do nosso povo de, inconscientemente muitas vezes, considerar a correlação de forças, transformá-la pela luta, construindo alianças, dando passos. Na linha do ando devagar porque já tive pressa para buscar inspiração na poesia de Almir Sater.

Nesse sentido, o papel de intelectuais como Mario Mestri, em cenário tão complexo e desafiador, como o que estamos vivendo no momento atual, é de fundamental importância. Não só para que entendamos melhor como funciona essa poderosa rede de interesses econômicos, sociais, políticos e culturais que foi engendrada na América Latina, e mais particularmente no Brasil, rede essa que favorece e beneficia os colonizadores de ontem e de hoje, assim como para forjar os novos mecanismos e alternativas de superação do racismo e das perversas consequências dele. Esse papel será tão ou mais importante quanto maior for a emergência das soluções que as desigualdades raciais nos impõem. Por isso mesmo, repetimos, não podemos ser simplistas, nem muito menos ingênuos para acreditarmos nas linhas retas da bem-aventurança.

Nada de imaginar uma sociedade fraterna, democracia racial, tais besteiras. Os escravizados de ontem e os discriminados e excluídos de hoje sempre souberam aproveitar-se das incertezas do tempo, como dizem João José Reis e Eduardo Silva: especialmente da insegurança causada pelas muitas rebeliões. Exploravam as divergências nas fileiras adversárias, inclusive o medo de uma próxima rebelião, e conseguiam transformar o adversário de ontem no aliado de hoje. Luta e negociação permanentes. Política. E nada de imaginar possam acontecer transformações sem a luta do povo.

Inferno e boas intenções

Agora, nos voltamos ao indispensável texto de Mário Maestri, sem a pretensão de esgotar o significado dele, mas procurando lições para enfrentar equívocos de tantas análises. Maestri não suporta a ideia de a Abolição ter sido “negócio de brancos”, nem nós. Nessa visão reducionista, indiferente à história, negros e negras escravizadas não tiveram qualquer papel e não obtiveram ganhos substanciais, por absurdo. Como se a escravidão chegasse ao fim por decisão das classes dominantes ascendentes, de modo a garantir formas de exploração capitalistas mais dinâmicas. Visão a desconsiderar a dinâmica intensa da luta de classes contra uma formação social tão violenta como a escravidão.

O desafio que tem se apresentado permanentemente para os intelectuais brasileiros, em particular para os intelectuais afro-brasileiros, comprometidos com a transformação social que rompa definitivamente com os paradigmas das desigualdades raciais e sociais na país, tem sido de como subverter a ordem vigente, como alterar o status quo conservador colonial, que ainda se faz presente em nosso país, apropriando-se dos conhecimentos e saberes fruto desse encontro de culturas. Tal apropriação, se realizada pelos intelectuais afro-brasileiros e por negros e negras, impede que tal encontro de culturas seja colocado a serviço dos interesses da elite dominante do Brasil. E essa, ao nosso ver, é a grande contribuição de Maestri em seu ensaio.

Maestri critica também o fato de lideranças do movimento negro abraçar acriticamente a tese da Abolição como “negócio de brancos”. Tais lideranças acreditavam com isso denunciar a evidente situação de marginalização econômico-social e negros e negras. Ao negar o caráter emancipacionista da Abolição, argumentava-se a inexistência da indenização dos trabalhadores escravizados. Teria sido realizada, numa óbvia e rasteira redução economicista, de modo a criar mão de obra barata para o capitalismo nascente. Argumentos a sugerir também terem piorado as condições de vida das massas negras depois de 1888 acompanham análises desconhecedoras do significado da Abolição, a revelar saudosismo dos tempos da escravidão.

Não podemos perder de vista que toda e qualquer sociedade é dinâmica, do mesmo modo que os movimentos sociais e que seus resultados dependem da correlação de forças, consequentemente passível de transformações ao final do processo. E que essas podem ocorrer tanto de maneira conflituada quanto dialogada. No caso brasileiro o diálogo e o conflito sempre estiveram presentes, queiramos ou não. Portanto, apesar do caminho percorrido nessa empreitada ter sido tortuoso e desafiador, com certeza os resultados de tal empreitada foram extremamente importantes para o processo de democratização das relações tanto raciais quanto sociais no Brasil. Ou seja, para o avanço civilizatório.

A crítica do 13 de Maio, ao denunciar a real situação da população negra contemporânea, confundia, na avaliação de Maestri, libertação civil e emancipação social. Um primeiro passo, o da libertação civil, fora inegavelmente dado. A emancipação social seria fruto de outro longo processo, em andamento até hoje, possibilitada, como se tem visto, por aquele fundamental acontecimento histórico. O movimento negro passou a defender o 20 de Novembro como o Dia Nacional da Consciência Negra, em contraposição ao 13 de Maio, data do “negócio de brancos” ou da “mistificação branca”.

Nessa anteposição das duas datas, Maestri mexe na ferida. A epopeia palmarina, como ele recorda, envolveu parte das colônias escravistas nordestinas e jamais propôs, e nem poderia ter proposto, a destruição da escravidão como um todo. Palmares, e isso é inegável, resistiu por décadas, determinou a história do Brasil de então, mas foi derrotado. Cabe insistir, e Maestri insiste: a revolução abolicionista, tardia tenha sido, e foi, envolveu toda a nação e diversas classes sociais. E foi vitoriosa, colocando ponto final no escravismo, inaugurando uma nova era no país.

Tentar desacreditar o mais importante acontecimento histórico brasileiro, ao menos do ponto de vista dos de baixo, das massas escravizadas, significava, significa, na esteira do dito por Marx, pavimentar o caminho do inferno de boas intenções. Tenta-se, com tais boas intenções, sepultar uma rica história, e Maestri faz questão de recuperar entre vários autores o pioneirismo de um Clóvis Moura com seu Rebeliões da Senzala, capaz de apreender o significado daquela empreitada revolucionária.

Segundo Kwame Anthony Appiah (1997), filósofo e escritor anglo-ganês, no antológico Na Casa do Meu Pai, o racismo de um lado e o pan-africanismo no campo da diáspora são em verdade faces de uma mesma moeda que é a racialização das relações humanas. Essa racialização, presente em quase todas essas análises reducionistas da importância do movimento abolicionista no Brasil, se faz presente, por única e exclusiva razão, dele ter sido amplo o suficiente para romper com as amarras racialistas e ter se transformado num movimento de massa. E nesse sentido, Appiah nos convida a refletir sobre a profunda subalternidade existente na elite política e intelectual tanto africana quanto afrodescendente aos paradigmas estabelecidos pelo colonialismo, sendo um deles esse racialismo (intrínseco e extrínseco) que tantos danos têm trazido para a humanidade e em particular para os africanos e seus descendentes e mais particularmente ainda para a luta antirracista no Brasil.

Nas tentativas negacionistas, reducionistas da Abolição há uma impressionante desconsideração da história, em amplo sentido. A Abolição é fruto não só das extraordinárias lutas do século 19 como do acúmulo centenário de três séculos das batalhas cotidianas das pessoas escravizadas no campo e na cidade, seja o acúmulo de rebeliões, seja o recurso da organização de quilombos país afora, seja o sempre lembrado e indispensável heroísmo prosaico de cada dia.

A Abolição, olhada mais de perto, é resultado da luta dos escravizados, capazes de pela luta preparar e impor o fim da ordem escravista, luta sustentada em bloco pluriclassista radicalizado. A assinatura, pelo poder, veio como consequência. Nunca foi um simples ardil das classes dominantes de então. A crítica, por mais bem-intencionada fosse, ignorava “ter sido a Abolição a única revolução social até hoje vitoriosa no Brasil”, na esteira de Maestri. Conquista de uma insurreição dos cativos, não sempre incruenta, a conseguir a importante adesão de aliados abolicionistas.

Foi constante o abandono de fazendas, reivindicação e obtenção de relações contratuais de trabalho, arrancadas dos proprietários, apavorados com toda aquela movimentação. Nada foi de graça. Era luta de classes na veia. Dourar a pílula, querendo atribuir a Abolição a um gesto de uma princesa, chega a ser ingênuo, se não for exercício intelectual preguiçoso ou, para ser mais duro, desonesto, a tentar desfigurar a história. Não fosse o movimento das massas escravizadas, e certamente a escravidão seguiria ainda por alguns anos. A caneta da princesa Isabel não seria utilizada. 

 A Abolição não foi um acontecimento qualquer.

Em 1888, a revolução abolicionista destruiu o modo de produção escravista colonial, conceito desenvolvido por Jacob Gorender, e isso foi passo histórico decisivo para as classes trabalhadoras, e agora classes trabalhadoras livres. A extraordinária vitória da Revolução Abolicionista, e recorro novamente a Maestri, “foi a liberdade civil e o fim da organização escravista da sociedade e da produção”. A reivindicação da liberdade civil uniu a luta dos cativos rurais e urbanos. Não esqueçamos que a abolição da escravatura pôs em liberdade aproximadamente 800 mil escravizados, segundo estimativas da época, representava quase oito por cento da população brasileira. Isso não era pouca coisa. Comparado aos dias atuais, era como se libertássemos dezesseis milhões de pessoas, ou seja – mais que um estado da Bahia inteiro. Esses números por si só deveriam ser suficientes para a demonstração da grandeza da luta abolicionista.

Absurdo pretender uma Abolição sem conteúdo porque os cativos não foram indenizados. Desvalorizar a liberdade é para os que sempre a gozaram. Na transição do escravismo ao feudalismo, do feudalismo ao capitalismo, não houve emancipação social plena e indenização dos produtores diretos. Teoricamente, a Abolição poderia ter assegurado melhores condições materiais aos ex-cativos e ex-libertos por meio da distribuição de terras. O enorme poder dos latifundiários impediu isso, e inegavelmente havia a prioridade central da conquista da liberdade.

A conquista da distribuição de terras, única indenização possível, teria exigido uma ampla, consistente união de cativos, caboclos, posseiros, colonos europeus, todos os envolvidos no mundo do trabalho, unidade impossível nas condições de consciência do mundo do trabalho de então, da elevada heterogeneidade e dispersão das classes exploradas. O fato é que os cativos não reivindicaram com a força necessária a divisão da terra. A prioridade foi a luta pela liberdade civil e por condições contratuais de trabalho, não obstante houvesse a defesa da concessão de terras aos ex-cativos por abolicionistas, como lembrado por Maestri.

Equívoco, e profundo, querer a Abolição como um “negócio de brancos”. Os escravistas sempre quiseram mais negros, e não se livrar deles. E para continuar resistindo, os africanos submetidos ao cativeiro e seus descendentes tiveram que refazer tudo, refazer linguagens, refazer parentescos, refazer religiões, refazer encontros e celebrações, refazer solidariedades, refazer cultura e refazer a política.

Será por acaso ter sido o Brasil um dos últimos a conquistar o fim da escravidão?

Ou será pela simples razão de que os escravocratas brasileiros resistiram o quanto puderam para manter o modo de produção escravista?

Nos meses finais da escravidão, os escravocratas mais persistentes já reconhecendo a inevitabilidade do fim dela, faziam de tudo para explorar os cativos alguns meses, alguns dias, algumas horas a mais e, sobretudo, reivindicavam a indenização pela libertação de propriedade, reconhecida por lei, o que não aconteceu.

Os limites históricos da Abolição, reais, até porque a história não tem linha reta, e como se disse no começo desse texto o Brasil é mais dado à guerra de posição do que à de movimento, tais limites não podem, não devem minimizar a importância da conquista de direitos políticos e civis, mínimos que sejam, e não foram mínimos.  

Naquele 13 de Maio, superava-se a distinção entre trabalhadores livres e escravizados. De alguma forma, pode-se dizer: nascia a classe operária brasileira, fundamental em toda a história do século 20 e nesse século 21.

Maestri assinala: com o avanço sem travas do conservadorismo mundial e nacional, o círculo da negação da Abolição se encerra com idêntico silêncio sobre o 20 de Novembro, apenas menos explícito.

“Senzala, eito, tronco, quilombo, trabalho escravizado, resistência servil¸ revolução abolicionista são eventos atinentes ao mundo do trabalho, hoje derrotado, negado e desvalorizado”.

Maestri é crítico impiedoso do novo movimento negro identitário, nascido à sombra do grande capital e do imperialismo. Tal movimento não sonha em virar a mesa como tentaram sem sucesso Zumbi e milhares de quilombolas e cativos insurrecionados. “O identitarismo procura, apenas, que lhe sejam cedidos alguns poucos lugares, nas últimas fileiras, no jantar dos poderosos”. Aliás, o que tem nos chamado atenção, no caso do identitarismo brasileiro, é que há uma intencionalidade política das mais perversas, por parte das nossas elites, no uso em particular da juventude negra, na disputa por esses espaços de celebridade ou de lacração, na fila do jantar dos poderosos, conforme afirma Maestri.

Concluído em 13 de Maio de 1888, a Revolução Abolicionista foi o primeiro grande movimento de massas nacional e moderno do Brasil, promovido pelos abolicionistas e sustentado e realizado pelos trabalhadores escravizados, lado a lado com trabalhadores libertos livres, camadas médias e alguns poucos proprietários não-escravistas. “Até agora, foi a única revolução social vitoriosa do Brasil, que dissolveu a organização da sociedade então dominante, dando lugar a outra, mais avançada”.

Os trabalhadores escravizados, apesar dos muitos riscos, dos perigos a rondá-los, ousaram abandonar as senzalas, empunhando enxadas, as únicas armas disponíveis, de modo a acabar com a ordem escravocrata. E Maestri segue a reflexão, e conclui, pessimismo da inteligência, otimismo da vontade.

É dura a situação atual, com o predomínio do capitalismo rentista, do neoliberalismo, com tudo de degradante oriundo dessa nova ordem para o mundo do trabalho. Tudo muito brutal, a nos desafiar. Nossos ancestrais, nos limites das possibilidades deles, fizeram uma revolução. A nós, cabe saudá-los, e inspirar-se neles para levar à frente a ideia da revolução, de transformar esse mundo tão cruel, o mundo do capital rentista, neoliberal. Saudar os corajosos, decididos trabalhadores escravizados e abolicionistas. No 13 de Maio de 1888, nos apontaram o caminho a seguir. Resta sejamos capazes. Viva a Abolição! (obrigado a Mário Maestri, inspirador desse texto, de quem se tenta recolher algumas preciosas lições).

Referências

APPIAH, Kwame Anthony. Na Casa de Meu Pai: a África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

COUTINHO, Carlos Nelson. A Democracia Como Valor Universal: Notas sobre a questão democrática no Brasil. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1980, 118 p.

COUTINHO, Carlos Nelson. De Rousseau a Gramsci: ensaios de teoria política. São Paulo: Boitempo, 2011, 179 p.

GORENDER, Jacob. A Escravidão Reabilitada. São Paulo: Expressão Popular, Fundação Perseu Abramo, 2016, 296 p.

GORENDER, Jacob. O Escravismo Colonial. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 4ª edição, 2010, 650 p. 

MAESTRI, Mário. “Abolição: A revolução vitoriosa do Brasil”. A Terra É Redonda, 13/05/2023

Emiliano José é jornalista, escritor, integrante da Academia de Letras da Bahia. Como deputado estadual entre 2003-2007, presidiu a Comissão Afrodescendente da Assembleia Legislativa da Bahia

Zulu Araújo é arquiteto, mestre em cultura e sociedade, ex-presidente da Fundação Cultural Palmares, conselheiro do Grupo Cultural Olodum e doutorando em Relações Internacionais (UFBA)