Política

Não há como obscurecer os vínculos diretos entre os fatos de 8 de janeiro e os defensores e herdeiros diretos do golpe de 1º de abril de 1964.

A memória se constitui como fato relevante na história e nas culturas dos povos quando convertemos as recordações individuais ou de grupos em ação coletiva. Portanto, em Política. Em ação cultural permanente voltada para esculpir, em todas as linguagens, valores que dialoguem com as gerações presentes e futuras. Assim se desenha a fisionomia de uma nação. Com objetivos definidos e projeto de desenvolvimento soberano. Fora isso, é condenar-se a repetir a tragédia circular da submissão colonial que nos persegue há cinco séculos.

Diante do silêncio do Estado, os segmentos democráticos da sociedade brasileira não podem renunciar ao seu direito de recuperar a trajetória dos movimentos sociais e populares que resistiram à ditadura de todas as formas e em todas as frentes. Essa é uma tarefa indispensável para romper o cerco do neofascismo e do neoliberalismo que nos sitiam – um e outro são incompatíveis com a democracia – e dar o passo seguinte na reconstrução democrática.

A punição – em curso – dos responsáveis pelo 8 de janeiro, não pode ser compreendida e executada como uma operação cirúrgica que em si mesma se encerra. Nunca foi tão oportuno recuperar a reflexão de Nabuco se referindo à escravidão: “Acabar a escravidão, não basta. É preciso acabar com a obra da escravidão”. Esse crime continuado que deixou marcas profundas, indeléveis, nas relações sociais do Brasil.

Não basta, portanto, punir os planejadores, executores, mandantes e financiadores do 8 de janeiro, perpetrado pelas hordas neofascistas. É necessário abolir a cultura golpista, que deitou raízes profundas no estamento militar brasileiro, cultivada ao longo do século 20. Não é compreensível que a redemocratização do país, após a Constituição de 1988, não tenha produzido uma profunda reforma curricular nas Escolas Militares. Elas foram os mecanismos responsáveis pela formação dos quadros dirigentes do golpe de estado que pôs abaixo o governo democrático do Presidente João Goulart.

O 1o de abril de 1964, os Atos Institucionais, em particular o Ato Institucional Nº 5, de 13 de dezembro de 1968, cristalizaram a cultura autoritária que permeia a historicamente a ação do Estado até o último guichê, no último município do Brasil em sua relação com as cidadãs e os cidadãos, na prestação dos serviços públicos do dia a dia.

A partir do momento em que absorveram a noção do “inimigo interno”, disseminada pela estratégia do Império no marco da guerra fria, que polarizou o mundo do pós-guerra, os militares brasileiros passaram a se perceber como tropa de ocupação num território hostil.

Quem eram as forças hostis? Quem era o inimigo? Era o povo. Eram as classes trabalhadoras assalariadas, eram os camponeses mobilizados nas Ligas, mais aquele imenso contingente de excluídos de qualquer oportunidade na competição desigual estabelecida pelo capitalismo industrial em ascensão.

Essas forças sociais, à medida em que se organizaram nos seus sindicatos e associações, foram vestidas cuidadosamente pelo discurso conservador com a fantasia do “comunismo” que ameaçava deus, a família, a propriedade e a civilização ocidental. Suficiente para justificar o golpe de Estado que rasgou a Constituição de 1946, depôs o Presidente legítimo João Goulart pela força das armas e se atribuiu a legitimidade da boca dos canhões. E permaneceu por mais de vinte anos no poder.

Entre 1964 e 1988, quando o país novamente pode escrever uma nova Constituição pelas mãos dos seus escolhidos, a ditadura civil-militar havia instituído o mais capilar sistema de informações, controle social e repressão que o Brasil já conhecera.

A partir de 1968, com o Ato Institucional no 5, o regime consolidou o Estado Policial, centralizando no Sistema Nacional de Informação – SISNI, ligado diretamente ao gabinete do comando do Exército, todo o aparato repressivo: desde os alcaguetes recrutados dentro das prefeituras dos mais longínquos municípios, os Rotary Clubes, os Lions Clubes, as salas de aula, as Delegacias de Ordem Política e Social, os DOPS, as Divisões de Segurança e Informações nos Ministérios (DSIs), os Serviços de Informações de cada uma das Forças Armadas (CIEx, CISA e CENIMAR), o sistema dos DOI-CODIs, coordenados todos pelo Serviço Nacional de Informações (SNI).

Aqui está esboçada de forma panorâmica a estrutura material que deu suporte ao exercício do arbítrio e da violência, das torturas, dos assassinatos e desaparecimentos forçados contra cidadãs e cidadãos brasileiros ao longo dos anos de chumbo e não foi desfeita essa teia, pelos regimes democráticos a partir de 1988.

É conhecido o relato de um educador popular na periferia de uma grande cidade brasileira, depois de uma chacina, sobre a monstruosidade do AI-5 e seus efeitos na época da ditadura, sua duração por dez anos e a resposta contundente de um dos seus interlocutores: “Aqui ele nunca foi revogado”. A militarização das polícias estaduais constituiu um modelo de “forças auxiliares” equipadas e treinadas para reprimir os negros, os pobres, os vulneráveis, esse imenso contingente de marginalizados, expelidos pelo mercado de trabalho formal.

Esse modelo herdado da ditadura civil-militar se perpetua até hoje em cada chacina contra a juventude negra das periferias, contra os negros e os pobres do Brasil. Como se vê, a obra da ditadura permanece e se aprimora: é um passado que se recusa a se afastar de nós.

Diferentemente dos nossos vizinhos mais próximos, alvos das sangrentas ditaduras comandadas pelo Departamento de Estado, que assolaram o continente durante os anos 1960/70, não podemos afirmar que o Brasil viveu um efetivo processo de Justiça de Transição. A conciliação pelo alto, mais uma vez não permitiu. Lá, na Argentina, no Uruguai, no Chile os generais foram para a cadeia. Aqui para aposentadoria.

Insinua-se, sempre que se apresenta essa cobrança, feita pelos diretamente atingidos pela repressão da ditadura – e os familiares de mortos e desaparecidos políticos – que houve um pacto para que se consumasse a transição para a democracia. Nesse momento é sempre oportuno lembrar Mandela: “Prisioneiros não fazem pactos”. Trata-se de uma falácia. Tratou-se, na realidade, de uma imposição que permitiu aos fardados a retirada da cena política sem perdas, arrastando consigo sob o manto verde-oliva para a impunidade, a escória de torturadores, assassinos, estupradores, responsáveis por crimes imprescritíveis contra a humanidade.

Ninguém está interessado em remoer o passado. Ao contrário, o que exigem os setores democráticos da sociedade é a efetivação das medidas cabíveis, pertinentes ao Estado. Elas não são muitas.  As 29 recomendações da Comissão Nacional da Verdade (CNV), entre elas a conclusão das buscas dos mortos e desaparecidos, já seriam um avanço considerável, que permitiria ao país “virar a página”. E, a partir daí, reconstruir o caminho da Democracia, liberto de uma vez por todas dos fantasmas que o atormentam sempre que a oportunidade se ofereça, como ocorreu no 8 de janeiro de 2023.

Não há como obscurecer os vínculos diretos entre os fatos de 8 de janeiro e os defensores e herdeiros diretos do golpe de 1º de abril de 1964.

Além de todas as evidências ostentadas por seus promotores, as investigações conduzidas pela Polícia Federal, pelo Ministério Público e pelo Judiciário lançaram luz, por exemplo, sobre a participação direta de tipos como o general da Reserva do Exército Augusto Heleno Ribeiro, o mesmo esbirro que era ajudante de ordens de Sylvio Frota, quando da tentativa de golpe derrotada por Ernesto Geisel em outubro de 1977 e Chefe do Gabinete Institucional da Presidência da República, durante o mandato do energúmeno.

É preciso que se diga: se o 1o de abril de 1964 foi a tragédia para o país que todos conhecemos, que travou por mais de duas décadas o projeto de desenvolvimento soberano do país, ao preço do sangue dos que resistiram em nome dos interesses nacionais e da democracia, o 8 de janeiro de 2023 encenou a farsa que hoje está sendo exposta pelas instituições, aos olhos da cidadania.

Os desafios da reconstrução democrática sob o cerco do neofascismo não nos permitem inventar atalhos. A sombra projetada pela ditadura civil-militar sobre nós, interpela de diversas formas a sociedade brasileira. A marca da violência que define as relações entre Estado e Sociedade e se dissemina de forma assustadora nas relações intersociais – nos discursos de ódio – nos impõe a necessidade de refletir sobre o que poderíamos definir como “a banalidade da tortura”, parafraseando Hannah Arendt.

“A tortura é um crime hediondo, não é ato político nem contingência histórica e afeta toda a humanidade, na medida em que a condição humana é violentada na pessoa submetida a esse crime. Quando alguém é torturado, somos todos atingidos duplamente: em nossa humanidade e em nossa cidadania. A prática da tortura é inaceitável e seus executores deverão ser punidos a qualquer tempo”. (Marco Antônio Barbosa, Jurista, ex-Presidente da Comissão Especial sobre mortos e Desaparecidos Políticos, 2006).         

A lúcida reflexão de Marco Antônio Barbosa converge com o desafio da sociedade brasileira no momento dos sessenta anos do golpe de estado de 1o de abril de 1964. Trata-se de um exercício indispensável para que possamos encarar o espelho do passado como uma nação madura e incorporar as áreas de sombra no rosto que moldamos naquelas duas décadas. E para entendermos sua solução como Política de Estado. Um conjunto de critérios e procedimentos perenes capazes de transcender as contradições inevitáveis deste ou daquele mandato.

Não seria compreensível nem tolerável, que a reconstrução da democracia alemã depois da derrota do nazismo, convivesse no pós-guerra com o silêncio ou a cumplicidade com figuras sinistras como Martin Boormann, Joseph Mengele, Klaus (Altman) Barbie, Rudolf Hess, Eichmann e com os crimes que cometeram contra os judeus, os ciganos, os comunistas, os homossexuais, etc. Lá, eles foram responder diante dos tribunais, aqui para a reserva remunerada, celebrados, emprestando seus nomes às novas turmas de cadetes.

Herdeira de um império escravocrata, a sociedade brasileira alcança o século XXI com uma república inconclusa, emparedada por uma cultura oligárquica e uma democracia trêmula, sitiada por um passado que se recusa a ser passado e atormenta o cérebro dos vivos.

Brasília, 1o de abril de 2024.

 Pedro Tierra, poeta. Ex-presidente da Fundação Perseu Abramo. Militante da Resistência à ditadura (1964-1988) e ao neofascismo contemporâneo.

Emiliano José, jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros